A porta que dava pro terreiro dos
fundos se abriu. Lá dentro tudo escuro. Pondo ainda mais luto, na viuvez de
marido vivo, de minha vó, que olhava a luz do mundo. E de tanto olhar, viu mais
um dia chegando. O primeiro, do mês de agosto. Sequer deu-lhe passagem, mesmo
assim ele entrou. Gélida mão do tempo, penteara seu fino cabelo liso. Com tanta
força e vontade o fizera que se tornaram brancos como as nuvens que estavam lá.
Seus olhos, duas pedras de sal, de lágrimas que nunca caíram pelo seu rosto. E
toda a verdade do dia, sem dó nem piedade vinha lhe abraçar. Triste, tristemente
frio. O terral fumou o caminho da roça. Fumou a serra, e a roça. Não dava pra
ver, mas estava tudo lá. Sempre estariam. As nuvens escondiam tudo. Tudo o que tinha
nela, e pra além dela.
A casa da roça era de taipa. Cedo
ainda o feijão ia pro fogo, a lenha. Meu avô dali a pouco iria pra barbearia.
No gole de café de ver pela janela, a quebra do jejum. A filha primogênita sonolenta
surgiu no umbral da porta do quarto. “Sua benção meu pai.” “Deus lhe abençoe.”
“-É pra você ir pra roça. Catar algodão mais sua mãe. O tempo promete muita
chuva! E se não for catado vai se perder.” Se amanhecia com neblina, era sinal
de um dia muito quente, e era. Assim o sertanejo conseguia decifrar ao longo
dos tempos, os sinais vindos dos céus. Tudo isso ia passando de geração a
geração. E na hora oitava, da primeira metade do dia, se fez com muita luz e
calor, abafado. Como se era esperado. Os capuchos de algodão saltavam do pé pro
saco feito pipoca. E a moça dos olhos tristes de cristãos, sem costume da lida
da roça acabaria adoecendo. Lá da infância voltou a asma, reação alérgica, a
poeira vermelha da estrada, o cisco do mato seco. Com água quente de barreiro
banhou o rosto, em fogo. Tinha muita sede mas não tinha coragem de beber. O sol
ardendo na cabeça. A noite teve alucinações, sonhou com seu primo, que foi pra
São Paulo, que um dia prometera vir buscá-la. E o enorme sapo que quase não a
deixou passar na estrada, saltando entre as poças d’água, sem o beijo da quebra
do desencanto, jamais se transformaria no seu príncipe encantado. Madrinha Moça
ao pé da cama enxugava o suor da testa, da sua febre alta, dos delírios. E
ouvia toda confidência duma alma cheia de ansiedade, medos, dúvidas. E a
beberagem feita com fezes de porco, que era tida como remédio eficaz, a mãe não
a obrigou beber. Também achou asqueroso, fétido! Moreninho farmacêutico quando
chegou das bandas do Capim, recomendou quatro injeções, que só ia encontrar em
Santana. Um motorista dum caminhão Ford que vinha somente dia de feira, dias
depois traria a encomenda. Depois de três delas aplicadas, se sentiu curada, e
acabaria não tomando a quarta.
Manoel nunca voltaria pra
revê-la. As cartas cheirando a pó de arroz, amarradas com fitilho vermelho,
traziam num cantinho escrito à nanquim, em esmeradas letras cursivas: “A você que
tanto amo, com muito amor...”. De tão triste, e de tanto esperar, desbotaram,
as cartas e o amor. E para sempre guardas ficariam numa lata de bombons Sonho
de Valsa. O casal na embalagem indiferentes ao que acontecia dançava e dançava.
Ao som do bandolim, cujas notas musicais se materializando iam trazendo um
gosto cor de rosa. O primo “Casteado” acertou um dia de serviço pra fazer o
serviço que a moça não conseguiu terminar. E sentado bem ali, naquele banco que
tem o apelido de “Péla Porco” comeu cuscuz com leite, numa tigela de barro de
louça que não tinha mais tamanho. Segurava pelo fundo com uma das suas enormes
mãos, bem próxima do rosto, enquanto a colher vadiava noutra. Queria saber: “-Por
que madrinha Amância botou luto, se padrinho Thomaz estava vivo?” Era uma
promessa que tinha feito a “meu” padrinho Ciço Romão Batista. Outra pergunta: Queria
saber qual era. Não contaria pra não perder de alcançar a graça. A moça sabia,
a promessa era porque tinha receio de estar grávida. Uma gravidez que acabaria se
confirmando, e ficaria morta de vergonha. Na idade que estava, grávida! Seria
motivo de comentários, e isso era odioso. Nos próximos nove meses não mais
sairia de casa pra rua. Seria de casa pra roça, assim mesmo de madrugada. Se a
promessa não vingasse, a criança nasceria no finalzinho do mês abril, do ano
vindouro.
A criança, uma menina, deu de vir
ao mundo. Tanta foi a comoção, e a moça chorou quando viu pela primeira vez a
irmãzinha. Aquele novelinho de gente, chorona que só! Os cabelinhos preto, a
pele vermelha, ora todo mundo estava vendo, que ia ficar moreninha. E assim
foi. Contava com sete anos mais ou menos estava a mesa, a tomar café com leite,
num pires. A dar chupões no beiço da louça produzindo barulho característico.
Ao tempo que fazia uma munganga, um requebro. De repente caiu de rosto no chão,
um caco do pires quebrado provocou um corte enorme próximo ao supercílio
direito, o que deixaria imensa cicatriz. Cresceu, esticou-se mais que a irmã,
virou moça também. Metiam-se a cantar durante os afazeres doméstico, varrer a
casa e forrar as camas o serviço de Maura. O mais pesado, o da cozinha, ficava
com a irmã mais velha, que em vão reclamava. Filha caçula sempre fora o xodó
dos pais. Um dia, participaria na encenação duma peça, na escola, no papel duma
negra empregada. Tantos trejeitos criou pra personagem, a torná-la caricata por
conta própria. Muitos risos arrancou duma platéia surpresa. Leônidas um
rapazote metido a galanteador, pendeu as asas pra Maura. Os pais do moço, no
entanto, não aprovaram o namoro nem bem começado. Temiam que desse em casório
cedo. Cuidavam que devia estudar, se formar, trabalhar. Mandaram-no pra
Cacimbinhas, pra casa duns parentes, como se fosse o fim do mundo, e era.
Chegou Juvêncio vindo de Pão de Açúcar, conquistou o coração da morena, e a
menina acabaria nos pés do altar, declarando fidelidade pro resto de sua vida
aquele pedreiro, metido a pescador, fichado no Dnocs. Um dos que estava na
turma que sentou as pedras de fundação da ponte General Tubino.
João Doroteu, irmão da minha vó,
gostava de cantar em velórios. Quando alguém morria nas redondezas, ele era
avisado e lá ia cantar no velório. Naquele tempo, velava-se um defunto com
cantoria a noite todinha. Sendo os cantores acompanhados por tocadores com seus
instrumentos musicais, sanfona, viola, até amanhecer o dia. Quando foi um dia,
lá estava João Doroteu velando um morto. Às seis da manhã, o caixão saiu para o sepultamento.
Naquele mesmo dia Seu João se encontrou com o compadre Antonio Tenório, no
povoado Pilões, foi um encontro ao acaso, os dois conversavam e ele lhes dizia:
“-Esta noite compadre, enquanto velava um defunto, eu tive uma visão: Um sinal.
Dizia que num determinado local, bem adiante daqui, num lugar onde há uma Santa
cruz na beira da estrada, dois homens estariam de tocaia, lhe preparando uma
emboscada. De modo que o melhor que compadre faz é não viajar esta noite. Vamos
pernoitar numa pousada que tem aqui, amanhã viajaremos, retornaremos por outro
caminho” O compadre concordou.
Quando o dia amanheceu, Antonio
Tenório acudiu a chamar o compadre pra viajarem. Achou estranho pois ele não
se encontrava mais ali. Pensou, lá com ele mesmo: “-O compadre devia estar apressado,
se adiantou. E voltou sozinho pra casa. Mantendo o cuidado de não passar no
local onde estaria a tocaia. Assim chegou ao destino, tendo retorno seguro.
Qual não foi sua surpresa ao chegar a casa, e ficar sabendo que seu compadre
João Doroteu, naquela noite que ele jurava tê-lo encontrado, jamais estivera no
povoado Pilões. Enquanto cantava, e rezava, tivera um enfarto e morrera, na casa onde velava um
defunto.
Fabio Campos
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