Sem Ana ( Para Sempre...)

Terça-feira
Havia uma menina, tinha os olhos grandes. Olhos que vasculhavam o mundo como quem precisava urgentemente descobrir coisas. Conhecer pessoas, de certa forma interessante. Sem essa de medir olhar. Isso pra ela, era como emprestar pro mundo palmo e meio de atenção. E não eram os outros, (fosse quem fosse) o que de mais importante existia na face da terra. Academia só a partir das terças-feiras. As coisas que precisavam deixar de serem feitas eram as que mais lhes interessavam. E ficava assim, a ouvir música, enquanto olhava, e roia as unhas.

Quarta-feira
Ana teve um sonho. Sonhou que estava num lugar onde as pessoas tinham os rostos voltados pra trás. E ela só conseguia ver-lhes a nuca. Quem havia roubado os rostos das pessoas? Nesse sonho sua mãe morria (provavelmente às três horas da tarde) num dia de quarta-feira. Por isso não tinha limões na geladeira, que eram comprados na tolda de Seu Alípio, bem próximo ao Mercado de Carne. Desse modo não podia fazer limonada. Mesmo morta sua mãe lhe sorria. O mais incrível disso tudo é que ela mesma não via nada de anormal em nada daquilo. A mãe mortinha da silva e ela nem aí, nem se quer chorava! O caixão teria sido colocado no cais do porto, por quatro homens de terno preto e cartola, que ficavam parados por alguns instantes, mas logo iam embora. Um barco com marinheiros viria buscá-la. Num dia de chuva, mas só chovia no cais, lá no horizonte havia sol. Os homens do mar tinham boinas na cabeça, camisas brancas com listras pretas. Eram galegos fortes, de braços hercúleos e longas costeletas. Sorriam e acenavam pra Ana, enquanto se iam com sua mãe.

Quinta-feira
Ana ficou com Carlos Antonio. Eles sequer namoravam. Eram apenas bons amigos, e vizinhos. A casa onde moravam ficava afastada do povoado. Ao voltarem da escola já era noite, desceram do ônibus (nenhum irmão de Ana teria ido à escola naquela noite) tinham que andar ainda um quinhentos metros até chegarem as suas casas. Ao passar próximo ao campinho, sem saber por que pararam. Ficaram um de frente pro outro, daí começaram a se beijar. E despiram-se, e fizeram amor com frenesi. Ana passou a quinta-feira toda dormindo. Uma da tarde, e continuava deitada, trancada no quarto, tentando entender porque fizera aquilo. Arrependida? Talvez, porem não dava o braço a torcer. Vá lá entender, quem sabe fez só pra se mostrar pra amigas. Ou a dizer pra si mesma que não era careta. Quantas vezes na roda de conversas, ela mesma vira as amigas ralhar outras meninas, só porque sabiam que eram virgens. Tantos mitos criados, tantos tabus caíram por terra. E as coisas que nunca tivera com quem tirar dúvidas se dissiparam. Delas que dizia que na primeira vez doía muito. Que a mãe iria descobrir, e que pra isso bastava olhar fixamente nos olhos, ou descobriria simplesmente ao vê-la andar.

Sexta-feira
Camila sua melhor amiga, contou uma mentira ao namorado, o que fez com que Ana e Carlos acabassem brigando. O fuxico seria especulação sobre uma ter ouvido da outra, que aquela primeira estaria apenas ficando com ele, mas gostar mesmo não gostava. Mas (todo mundo sabe como é) amiga é amiga, estão sempre ali pronta para nos amparar, a dar um ombro pra apoio na hora da dor. Deram as duas, de faltar às aulas, preferindo ir a praça encontrar-se com os meninos. Afinal era sexta-feira. Ana emprestou pra Camila uma calça jeans, e uma blusa lilás de alça que tanto gostava. Pra que pudessem ir a uma festa de vaquejada, escondido das mães. Um dos meninos levaria as duas na garupa duma moto. Não precisava nem dizer que não fora uma boa ideia. Num certo trecho da estrada de barro, o desequilíbrio e a queda. Os vapores de álcool a mais, fizeram o garoto acelerar, a por mais adrenalina na ação. O resultado foi muitas escoriações nos braços, nas pernas. Um corte profundo na testa de Ana. Um braço quebrado de Camila. Carlinhos ficou com dois dentes a menos no sorriso que já era torto.

Sábado
 Lucimara a mãe de Ana era uma mulher bonita. Mulher pra um artista deitar os olhos sobre seu corpo, e desejar. Desejar ardentemente pintá-la, em um nu artístico. Êxtase de ateliê,  pincéis e telas. Aturdido a buscar a cor daquele corpo. Lânguido corpo, moreno, cujas auréolas dos seios intumescidos de encher de arrepios. Sobre o cetim encarnado do divã. A taça de cristal, o cacho de uvas, o champanhe. A moldura cor de ouro, envernizada pra destacar ainda mais aquela pele morena. Os cílios, os olhos enchendo-se de lágrimas mornas. As coxas roliças a se roçarem liberando cheiro de fêmea. Inebriou-se o artista, tomado de volúpia e furor, a fazer sexo consigo mesmo. Os cabelos negros, a púbis febril. Aquela boca carnuda, de alvos dentes perfeitos, (encerrava) um sorriso de Mona Lisa. Doce Lucimara, por três longos anos estivera casada, agora viúva. Alcoólatra e diabético, se fora o pai de Ana dar trabalho a São Pedro. E a mãe, teve que criar a filha sozinha. Tão bom quando era apenas uma bebezinha! Angustiava-se agora, ao ver a rebeldia da menina, pouco a pouco se embrenhando por um caminho quase sem volta. Difícil, pra ambas. Seria falha de sua parte? Questionava-se. Estaria faltando diálogo entre elas? O trabalho na loja de cosmético, até os sábados, a venda de confecções porta a porta, nos finais de semana. Um fosso do tamanho de um coração fendido, incrivelmente pulsando a separar mãe e filha.

Domingo,
Em que, ou o que pensa uma menina de quinze anos? Ora, dizia consigo mesmo: “-No meu tempo, ninguém parava pra pensar nisso não. Acordava-se cedo pra lida no campo. Numa casa onde vivia com dez irmãos. Num total de treze ao todo. As tarefas da casa eram divididas. A ela Lucimara, cabia a lavagem de roupa nuns dias, o feitio de comida na cozinha noutros. Assim varava a semana. O pai era rígido nunca deixando irem a uma festa, a não ser em casos muito especiais. Um batizado, ou um casamento, de um membro da família. A bruteza da vida campesina, no entanto, jamais lhes tiraria a feminilidade. Ingênuas mulheres na ida pra roça. Com alegria, pareciam crianças a brincar de roda no terreiro de casa. Sem nunca se darem conta que o mundo um dia se lhes apresentariam homens perversos, maus intencionados. Tanto quanto (iguais e) diferentes de seu pai e irmãos. E que um dia ainda elas sentiriam saudade daquela vida monótona. Vida de viver. Despretensiosa, simplesmente vida. De colher umbu no pé, de ir a casa dos tios e primos aos domingos. De andar a cavalo. E ter que se virar sozinha ao menstruar pela primeira vez, e ficar com vergonha de dizer a mãe e as irmãs. No entanto era fácil descobrir, porque ficaria o dia inteiro se preciso fosse sem sair do quarto. Vergonha dos irmãos e do pai, que passariam a encará-la como um bicho estranho. Apesar de não se sentir, não mais menina, seria agora tratada como uma moça.

Segunda-feira
Para alguns o melhor, para outros o pior, dia da semana. Às vezes quando nos falta o que fazer passamos a ouvir a nós mesmo, ou (quem sabe) outros nós mesmos. O espelho é cruel. No reflexo, todo mundo é outra pessoa. Na frente dele se pode ser tudo, menos nós mesmos. A menina penteava-se. De dentro da boca fechada uma música, querendo vir de lá da infância, (cantava) “-Uuuummm.” Fez uma franja. Trouxe todo o cabelo de lá trás pro colo, e pôs-se a alisar. Enquanto olhava bem lentamente pra cada linha de seu rosto, pros seus traços. Quem seria aquela estranha? Batom vermelho nos lábios beijou a superfície polida. Escreveu algumas palavras. Deitada na cama. Havia uma menina, de olhos grandes. Não mais vasculhavam o mundo como quem precisava urgentemente descobrir coisas. Vítreos, opacos, sem vida a fitarem o teto aqueles ohos. Braços estendidos. Duas imensas nódoas vermelhas de sangue vertidas dos pulsos. As coisas que precisavam deixar de serem feitas, infelizmente se fizeram.


Fabio Campos

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