OLivro de Ezequiel (Parte 3)

A rua a praça,  a cidade a praça,  a igreja e a praça. As árvores da praça. Estava tudo lá. Tudo imperfeitamente no mesmo lugar. Tudo tão pálido de concreto, aço, e desfalecimento. E o céu parecia estático esperando acabar novembro, para ficar assim inflamado de segredos. E todas as coisas ficavam com cara de livro guardado em biblioteca. Sem destino, amofinando suas malditas incertezas.

A perdição de um homem, talvez resida em descobrir, depois de maduro, não ter mais um destino pra seguir. Constatar que a vida, gastara inutilmente. E que a única coisa que restava era voltar pra casa. Tentar reencontrar-se a si mesmo.  Vinte anos virados em riscos de carvão, numa suja parede de cela de cadeia. Vinte calendários de eterno outono. A tirar-lhe o brilho dos olhos,  a colocar sal nos cabelos, e insipiência nos gostos. E as moças nuas das folhinhas que um dia lá fora lhe sorriram. Lá dentro, a cada mês, com tanto ódio lhe sorriam de novo. Para nunca mais, para a eternidade de vinte anos. Pra ele fora muito, muito tempo. Duas décadas, tempo suficiente pra um monte de gente, na lapa do mundo, nascer, crescer virar pessoas, que ele jamais conhecera.  Desejou ardentemente rever os irmãos. Como gostaria muito de ver Ezequiel. Não sabia naquele instante onde ele estava. Depois do ocorrido, o julgamento, a prisão, nenhuma notícia, mais de ninguém.

A velha casa onde um dia morara, estava lá. Continuava lá, como se lhe estivesse esperando. As suas janelas ao vê-lo choraram. Intumesceram de lágrimas ao recordarem quando pequeno sentara nos seus batentes. Sempre no final da tarde.  Trajado na fardinha de marinheiro com duas âncoras bordadas na lapela de costas. Os pezinhos calçados em seus sapatos pretos, de cadarços brancos. Esperaria o padrinho voltar do comércio. E quando era lá pelo fim da tarde lá vinha. E o abençoaria, e lhe daria uma moeda. Sem que fosse preciso pedir. Era práxis: o primeiro não podia pedir porque era falta de educação. O outro daria, pelo mesmo motivo. Sentado ali à praça, um mundo. Passou como um filme a sua frente passou. Um mundo tão natural, de gente simples, de meninos pretinhos, que seguiam pela rua. Filhos de mucamas. Agarrados na saia da mãe com medo de se perderem. Além de tombarem imensos balaios de mangaios na cabeça, tinham as mães pretas que suportar os negrinhos, feitos sururu de capote, grudados na barra de sua saia. 
     
Sentado ao banco da praça. Bem devagarzinho, sem quase ninguém perceber, foi a noite caindo. Com a noite veio o guardador de postes, querendo reconhecê-lo focou-lhe sua lanterna. Defendeu-se como pode. Na casa, agora havia uma luz acesa. Criou coragem e seguiu em busca do único destino que o esperava.  Bruno, o filho mais novo de Ester sua irmã mais velha, o recebeu. Por dentro a casa era a mesma, e o abraçou por dentro. Os traços do menino eram os mesmos do avô. O semblante semelhante aquele do retrato da parede. Os cabelos finos, a pele alva, o nariz aquilino, as orelhas enormes. E a mãe, morta, continuava sentada na cadeira de balanço de palhinha. E indagou-lhe; “Onde andava que nunca mais apareceu?” Nada respondeu.  Sobre as orelhas grandes do neto, disse: “É de família. Dizem que por conta disso vai viver muito!” Pra cada fala uma pausa. Apoiando os pés nos chão parava o balanço. Depois empurrava o encosto da cadeira com as costas e a cadeira voltava a ranger nos encaixes. Indo pra traz, e pra frente. E rangia e rangia, mas somente ele via e ouvia aquele acontecimento. A cadeira porem estava lá. Três pessoas, a sós. Bruno distraído com um fone no ouvido. Ouvia música enquanto folheava uma revista de futebol. Pra tevê ligada nenhum dos três olhava. Dona Euvira agora cochilava, o sangue que jorrara de sua jugular, que empapara todo seu colo tinha coagulado. Tornara-se um sangue vermelho escuro, capaz de ser removido à unha de tão ressecado. Vinte anos tinham se passado, cheiro de sangue nem tinha mais.  Josuel sentado a mesa dividia sua atenção com os dois mais que se encontravam ali. Josuel morto vivo, Bruno vivo e meio, a mãe morta, que só ele via. Os três juntos, e sós. E a lua se esticou pra ver melhor pela claraboia da área verde, e ia navegando a noite. A luz da fluorescente repousava sobre os cabelos cor de prata, alvo e preto. Bruno abandonara a revista, e o fone. Foi até o guarda-louça procurar algo pra comer. Dona Euvira Perguntou em que dia do mês estávamos. Josuel notívago, enjoado respondeu: “-Sei lá...” Foi à vez de Bruno perguntar: “-Sei lá, o quê? ...” “-Nada! Estou pensando alto.” Era comum um ex-detento perder a noção do tempo. Queria saber das suas irmãs. Dona Euvira disse que não sabia.  Lembrou do dia do sepultamento dela e de Jerônimo seu marido. Tudo tinha ocorrido rapidamente, num dia de domingo intensamente quente, dum mês de setembro, de primavera.

A bíblia estava à mesa, a alcance da mão. Abriu aleatoriamente. “Livro de Ezequiel Capítulo 23 – Filho do homem houve duas mulheres, filhas de uma mesma mãe. Estas se prostituíram no Egito; prostituíram-se na sua mocidade; ali foram apertados os seus seios, e ali foram apalpados os seios de sua virgindade. E os seus nomes eram: Aolá a mais velha, e Aolibá sua irmã; e foram minhas e tiveram filhos e filhas; e, quanto aos seus nomes Samaria é Aloá, e Jerusalém é Alibá. E prostituiu-se Aolá, sendo minha; e enamorou-se dos seus amantes dos assírios, seus vizinhos. Vestidos de azul, capitães e magistrados, todos jovens cobiçáveis, cavaleiros montados a cavalo. Assim cometeu ela as suas devassidões com eles, que eram todos a flor dos filhos da Assíria. E com todos os de quem se enamorava; com todos os seus ídolos se contaminou. E as suas prostituições, que trouxe do Egito, não as deixou; porque com ela se deitaram na sua mocidade, e eles apalparam os seios da sua virgindade, e derramaram sobre ela a sua impudicícia. Portanto a entreguei na mão dos seus amantes, na mão dos filhos da Assíria, de quem se enamorara.”

E tudo aparentava aquele aspecto, porque vinte anos haviam se decorrido. Os esteios da casa não mais se faziam entre aqueles. Vinte anos se passara desde que a desgraça se abatera sobre aquela família. Dona Euvira falou que tudo aquilo que havia acontecido, um dia tinha sido previsto por um primo que ela tivera na infância. Era um homem comum que se tornara de muitos dons. Diziam: “-Ele chorou na barriga da mãe.” Antes dos vinte anos, nunca passara de um agricultor, um lavrador, um dos que fere a terra com a estrovenga e o ancinho pra dali tirar o sustento. Do dia pra noite começou a profetizar e fazer premonições de acontecimentos vindouros e decifrar sonhos. E do dia pra noite tornou-se um homem culto.  Os vizinhos se encarregaram de espalhar que naquele lugar havia um iluminado. Muitos eram os que vinham pra casa do primo da avó de Bruno, em busca de cura de seus tormentos, de saberem a origem de males que lhes acabrunhavam os espíritos.  Em dia de feira, vinham agricultores para pedir que ele fizesse cura de seus animais, e para que o livrasse das mazelas que vinham as lavouras. Pedidos para que trouxesse de volta o cavalo desertado, para que tivesse bom parto a mulher grávida com filho enlaçado no ventre, que sarasse a pata do boi de arado. Naquele fim de mundo, numa casinha de taipa ecoava na montanha as orações, as lamentações, os gemidos dos atormentados por maus espíritos, os possessos em busca de cura. E aquele um dia profetizou: “-Uma prima minha contrairá matrimônio com um usurpador, porque quem deita cartas numa mesa de cassino, não passa dum usurpador, amigo do alheio. Dessa união surgirá más índoles, pelo menos quatro vingarão, dois varões e duas fêmeas. Porem devido aos agouros dos que muito perderam do seu suor na ilusão das cartas, por não obter sucesso amaldiçoaram os frutos dele.”

As velas acesas queimavam parafina enchendo de calor e luz tênue o ambiente. As velhas corocas, com o colo esbranquiçado de pó de arroz, e o pescoço cheirando a traseiro de bebê, se abanavam esbaforidas com leques ricamente decorados com imagens do tempo do rei Luiz XV de França. No altar a imagem de Jesus dos Passos. Tudo pronto para a procissão. Seu Jerônimo estava na calçada, somente o primo da avó de Bruno o via, de terno branco, de igual cor, o chapéu, e os sapatos. As mãos no bolso, pensativo.


Fabio Campos

O Livro de Ezequiel (Parte 2)

De pé, na porta da delegacia, se encontrava Josuel. No alto do último degrau se fazia. Da forma como estava, assemelhava-se a um tontem, daqueles que aparecem ao centro das ocas indígenas, de filme americano feito “Um Homem Chamado Cavalo”. Já se haviam passados tantos anos, e ainda lembrava. Quarenta anos separava-o do filme. De cadeia, vinte anos acabavam de cumprir. Sentenciado por ter matado os pais. A liberdade veio justo no dia que o Brasil jogava contra a Holanda, na Copa do Mundo de futebol, da África do Sul. Uma só pessoa não havia, a testemunhar sua soltura. Ninguém nas ruas, nenhum carro cruzando a pista. Um dia muito estranho. Fazia tempo que não se sentia tão sozinho, melhor assim.

Pra onde iria? Não havia uma casa pra onde pudesse voltar. Se quer um familiar pra onde pudesse retornar. Sem se dar conta, procurou um dos bancos da pracinha defronte ao prédio da Cadeia. Sentado ali, talvez tivesse disposição pra pensar no que fazer. Vontade nenhuma tinha de seguir pra lugar nenhum. Interessante como nos primeiros anos de prisão, tantas vezes sonhou com o dia em que ganharia a liberdade. Dizia a si mesmo que ao por os pés fora dali, iria pra um bordel. Com todas as raparigas ficaria a ouvir música até alta madrugada. E beberiam tanto e tanto. Depois faria com que todas ficassem nuas, e tomariam banho de cerveja, até arriarem completamente, Nenhum daqueles planos parecia ter mais sentido. Olhava com certa empatia o velho prédio. Naquele velho sobrado um outro dele ficara sepultado. Um outro ele, para sempre ficaria enterrado lá. Não teve como não sentir um nó na garganta. Um gosto amargo na boca ao virem recordações tão desgastadas, maceradas. Nas ensebadas paredes daqueles grilhões sucumbiram. Aqueles calabouços e seu abominável poder de transformar homens em zumbis. Desencarnados fantasmas revestidos de pele, ossos e ódio. Entravam homens, e se um dia conseguissem sair, sairiam aliens, sem almas. De tanta exposição aquele inferno, seus espíritos acabavam não conseguindo mais retornarem aos corpos dos seus donos. Ainda que o corpo ganhasse a maldita liberdade. Irrecuperavelmente condenadas àquelas trevas, ficavam os sopros de suas miseráveis vidas.

De repente Josuel começou a sentir falta de ar. O mundo e tudo que havia nele, começou a rodopiar, e em seguida suas vistas pondo-se a escurecer. Veio-lhe ânsia de vômito. E tudo o que havia no seu campo de visão parecia que estava derretendo. Lento e pegajosamente derretia-se. Estado febril, seu corpo em brasa. O maxilar enrijecido provocava bruxismo. Debaixo do sol quente sentia calafrios. Nos mais recônditos pontos obscuros da sua personalidade, terríveis fobias desenvolveram-se. Mesmo fotofóbico tentou fixar o olhar no ponto mais longínquo, que sua visão pudesse alcançar. Uma serra, à pelo menos vinte quilômetros de distância dali. Isso lhe causaria tontura e mal-estar. Tantos foram os anos deitando visão, a coisas a poucos metros do seu corpo, que ao atirar as vistas pra tão longe, veio-lhe vertigem. E o mais íntimo do seu ser provou nauseante vazio. Com um esforço que lhe causou um aperto no peito, recordou o dia que deu entrada ali. Lembrou que ao ser conduzido pela polícia para o interior das masmorras. Sentia como se não fosse ele, no seu próprio corpo. Como se possuído por um outro ele. Por vários dias sentiu-se assim. Como se em transe. Só entenderia o que se passava, depois de várias sessões de psicanálise. Lembrou-se de doutora Lúcia, a psicóloga. Ao entrar pra cumpria a pena, houvera diversas sessões. Eram para que pudesse se adaptar ao convívio de apenado. Já na preparação para sua soltura mais consultas. E ficava claro que não estava preparado para a volta ao convívio social. Nunca, jamais estaria. Doutora Lúcia trazia-lhe livros de auto-ajuda. Um dia Josuel pediu-lhe emprestado um, que ela estava lendo. Era do filósofo Nietzsche. Pediu emprestado, e nunca mais devolveu. Abriu a bolsa. Guardado entre sua roupa surrada, lá estava: “Além do Bem e do Mal”. Pôs-se a folhear colocando o bojo bem próximo ao rosto. Gostava de sentir o cheiro liberado pela tinta do papel. Cartas de baralho que marcavam páginas viciadas caíram no colo. De tão lidas algumas páginas adquiriram pequenas dobras na ponta superior.

“Em nossa época talvez existam cinco ou seis cérebros que começam a suspeitar que talvez a física não seja reais que um instrumento para interpretar e regrar o mundo, uma adaptação para nós mesmo se nos é permitido dizê-lo, e não uma explicação do universo. Entretanto, na medida em que a física se apóia na crença dos dados proporcionados pelos sentidos, esta vale mais, e continuará valendo mais – durante muito tempo – que uma verdadeira explicação. Conta com o testemunho dos olhos e dos dedos, isto é, a vista e o tato. (passou várias páginas) Pois não há quem diga que o mundo exterior é obra de nossos órgãos? Sendo assim, nossos próprios órgãos seriam obra de nossos órgãos. (...) (passou a mais páginas adiante) De onde retiro minha noção de “pensar”? Por que devo crer na causa e no efeito? Com que direito posso falar de um “eu” e de um “eu” como causa e para cúmulo, causa do pensamento? Aquele que se atrever a responder imediatamente a estas questões metafísicas alegando uma espécie de intuição do conhecimento, como se faz quando se diz: “eu penso e sei que isto pelo menos é verdade, que é real.”   
  
Vieram com muita nitidez recordações lá da infância. Josuel pensou em Deus. Desde pequeno guardara a imagem do Criador como um velho ermitão. De veste e barba longa e branca. Entronado em nuvens aturdida de tanta alvura! Cheio de sabedoria a causar medo nas crianças traquinas. Um deus que era concebido para ter piedade dos pobres, e que castigaria miseráveis decaídos que cometessem delitos graves. Ele era um desses. Preferia ser odiado, a ser digno de pena. Não se achava digno de piedade. Fosse lá o que fosse que tivesse feito, merecia pagar pelos seus atos.

O grito de uma criança correndo na praça, a soltar fogos desnecessariamente. O Brasil perdera. Lembrou do seu irmão Ezequiel que gostava de futebol, e secretamente torcia pelo Flamengo. Porque sua família eram todos crentes. Ezequiel era mais velho que seu irmão Josuel. Havia ainda as duas irmãs Ester e Rute. Eram os filhos de Seu Jerônimo e dona Elvira. Moravam no Sítio Olho d’água do Amparo. Uma família de evangélicos. Gente temente a Deus. Desde pequenos aprendiam a ter o temor de Deus, respeitar as Sagradas Escrituras. Josuel gostava de jogar bola, mas o pai o proibia severamente dizendo que futebol era uma invenção do demônio. Como conceber que um inocente jogo de bola pudesse levar a seu irmão a arder no fogo do inferno? Uma noite acordou aos gritos. Tudo por causa de um sonho. Nele seu irmão era arrebatado por Satanás para dentro do inferno. Pois iam pro campinho na várzea do Riacho João Gomes, jogar bola mais os amigos. E no maldito pesadelo ele ia sorrindo, pro inferno. Acenando-lhe com seu sorriso de menino peralta. Terrível grito de horror ecoou no seu quarto, ao sentir as labaredas a lamber os pequenos pés descalços do irmão. O medo era perdê-lo, pro Tinhoso. E saber que nunca mais o veria.  Nem no sonho o pai descobrira que o filho jogava bola escondido dele. Ao despertar daquela forma teve que mentir, pela primeira vez na vida mentir. E logo ao pai, cheio de pavor pelo que vira na visão sonífera.

Disse-lhe que havia sonhado com um peixe vermelho, gigante. Estaria ele as margens do Riacho João Gomes pescando quando surgiu enorme Tilápia, vinda das profundezas do Nilo. E o peixe lhe falou. Dizendo que viera lhe devorar, como havia feito com o profeta Jonas. Para que se cumprisse a palavra. Seu Jerônimo ficou maravilhado ao ouvir o relato do filho. Sem jamais imaginar que aquela premonição, verdadeira ou falsa, um dia se cumpriria. Josuel daquele dia em diante passou a ter várias crises de loucura. Mentira pro pai, isso lhe consumia. E numa noite de forte trovoada. Enquanto raios e trovão cortavam o firmamento, do leito conjugal verteu-se sangue, o sangue de seus pais.

Fabio Campos                  


O Livro de Ezequiel (Primeira Parte)

Estava deitado no chão, na posição fetal. Foi assim que acordou. Tudo escuro a sua volta. Havia umidade, um cheiro forte, enxofre. Metano? Esgoto. Esforço pra se lembrar como fora parar ali. Os olhos em brasa. O que estaria fazendo naquele lugar? Aos pouco acostumando à penumbra.Ao alcance da mão uma parede cimentada cheia de bolor. A poucos centímetros do seu rosto. Em algum lugar, uma torneira pingando, martelando o cérebro. Cada gota, lentamente caindo de muito alto. Explodindo os tímpanos. Tiros estraçalhando-lhe a cabeça. Não restando resquício de oportunidade pra coordenar ideia alguma. De tudo aquilo afinal, o que fazia sentido? O ronco de alguém dormindo. Não sabia ao certo se era real, não naquele estado de consciência. De hora em hora, passos num corredor, dando-se a entender muito longe. Pesadas portas de aço gemendo incômodas nas dobras toda vez que precisavam ser abertas. Molhos de chaves tilintavam entre dedos de mãos irrestritamente nervosas. Um frio percorrendo os ossos fazia com que a mandíbula fosse apertada, com tanta força, que se a língua interpusesse aos dentes partir-se-ia, irremediavelmente.

Lembranças de casa chegaram com nitidez, porem em relampejos. A mãe na cozinha, virada pra pia preparava alguma coisa. A peixeira luzidia na mão. Cheiro de legumes cozidos. Lenço na cabeça, atado por baixo do queixo duplo, a realçar enormes bochechas róseas. O avental engordurado cobria obesidade de ventre. Grossos meões em chinelas de dedo escondiam as varizes subida as pernas. O pai, arriado na velha poltrona. O dia inteiro metido no pijama. Sob o efeito de barbitúricos adormecia e acordava, a televisão assistia-lhe. Daquele ângulo dava pra ver apenas a calva, e uma ponta do aro dos óculos. Numa mesinha duas caixas de remédios. Um pires com dois comprimidos, talvez fossem pra gastrite e controle da pressão arterial. Meio copo com água. Um frasco de adoçante, uma xícara vazia com um refil de chá verde. Um prato com meia lua de papa de aveia jazia no braço da poltrona. Migalhas de pão no chão. Um gato branco, enorme, alisando-lhe as pernas do pijama, enchendo-lhe as meias de pelo. Era noite, a mãe agora se estava no quarto, de camisola sentada na cama. Revirava alguma coisa na gaveta do criado mudo. Um rosário de contas azuis pendurado num crucifixo prateado, logo acima da cabeceira da cama. Uma vela apagada. Uma caixa de fósforos caso à hora derradeira chegasse, não pegá-la-ia de surpresa. Uma lanterna, pro caso da vida persistir, e a única coisa a faltar ali fosse energia elétrica. A parede tinha um enorme Zepelin, numa mancha de umidade. Duma infiltração da caixa d’água do banheiro. Impregnados de mofo os forros da cama. O que fazia com que espirrarem sucessivamente até tornar-se coriza. Antes de deitar-se consultaria um calendário de 1972, colocaria o dedo num dia do mês de julho circulado com risco de caneta esferográfica. O que de importante teria acontecido naquele dia?

Havia louça suja na pia. Um rato passou do ralo pra detrás do fogão. Dali a pouco reviraria o que havia no forno. O gato obeso estirado no sofá. Viu o movimento do camundongo, e sequer se dispôs a persegui-lo. A lerdeza, a preguiça, a empáfia, estes e outros azedumes humanos talvez atingissem o bichano. Na verdade, o sentimento mais presente ali era o medo. Implacável invadindo almas, admoestando as carnes. Um medo mórbido, de viver, e de morrer. O mundo rodopiando e ameaçando derreter tudo feito peças de museu de cera, expostos ao calor. O médico diagnosticou labirintite. Maldita tontura, um comprimido não evitaria a náusea. O pão com café revirou o estômago, e ameaçava sair em forma de larva. Tinha que tomar um antiácido. Caso não encontrasse um, encheria a boca com uma massa qualquer, mastigaria arroz cru. Abriu a gaveta, e a faca quase o cegava. Sequer gostava de tocá-la. Portava e via-lhes tremores por todo o corpo. Depois de empunhada aparentemente tudo se normalizava. Era como um alcoólatra que depois do primeiro copo via restabelecido os nervos. Pensava nela cortando músculos expostos. Estranho prazer de ver o fio de aço penetrando carne. Apertara o gume com tanta força que o sangue pingou da mão tingindo o chão da cozinha. Estranhamente não sentia dor alguma.

Ali estavam seus pais. A quem tanto aprendera respeitar, e odiar. Ultimamente dera pra pensar de como abrira mão de sua vida pra cuidar deles. Acreditava que tudo era coisa do destino. A vida se encarregara pra que fosse daquele jeito. O quarto período do curso de Direito, acabara por desistir pra dedicar-se a eles. A área criminalista exercia-lhe fascínio. Tantas leis que antes de evitar, beneficiavam o crime. Tornou-se alguém que descobrira um câncer no esôfago agravado pelo tabagismo e que acabaria por assassinar os pais pra ficar com a herança. Sempre levara uma vida desregrada, Foi necessário amadurecer e apodrecer na idade pra perceber que abrira mão de viver pra cuidar dos pais, idosos. Não casara, não constituíra família. Administrar-lhes os remédios controlados. Os tremores das mãos. O zumbindo no ouvido, a labirintite.  Os medos, os vícios. As imagens deslizando, gelatinosamente. O pai continuava assistindo televisão. Ou será que dormia? O relógio na parede da sala dizendo que já eram mais de duas da madrugada. No filme da tevê um assassino invadia um apartamento de uma mulher. Um mascarado se escondendo atrás das cortinas, Alguém via a ação do bandido de outro apartamento, e em vão tentava avisar a moça do perigo. As luzes acesas. A mulher andando pelo apartamento, sem saber que a morte lhe rondava. O pai dormindo, correndo igual perigo da mocinha da televisão.

A noite estava muito quente, a mãe tinha ido tomar banho, não viu a cena do bandido na televisão. Muito menos a iminência do perigo que corria. Esfregava as costas com um escovão, sentada dentro da velha banheira de estanho, cheia de água de sabão. O sangue tingindo a água azulada. Uma touca branca na cabeça. Os pingos do chuveiro misturando-se a água sanguínea. A faca estava lá. Proibia-lhe terminantemente de portar uma faca. Não havia desculpa ou razão, qualquer que fosse. O chá, o líquido quente descendo por dentro da garganta. Outro líquido quente vermelho, jorrando da jugular, descendo pelo pescoço, empapando a camisa do pai. Nenhum grito de dor, nada. Ao menos o último suspiro. Daqueles que dão os moribundos, nada. A mãe se quer percebeu o assassino aproximar-se, de cabeça baixa olhando pras mãos, viu uma sombra descer sobre si. Só então percebeu que havia alguém mais no banheiro do quarto. Pensou que fosse o marido vindo aliviar a bexiga, e que depois voltaria pra televisão. E mais tarde deitar-se-ia ao seu lado na cama. A faca deslizou macia sobre o seu pescoço. A pele flácida lembrava a galinha sendo desviscerada na pia da cozinha, nos dias de domingo. Macia deslizando, e o sangue quente, indo encher dum vermelho vivo a água de espuma de sabão, da banheira. O pai morto a televisão ligada. A mãe morta, o chuveiro ligado. Enchia a banheira d’água, misto de sanguínea, e azulada.

Acendeu um cigarro ficou sentado olhando pros anéis de fumaça que fazia com a língua. Não sabia o que faria com os corpos. Se não tivesse tão cansado retalharia. Colocaria em malas, e iria jogar num terreno baldio. Longe da cidade cobriria os pedaços de corpos para que não congelassem de frio. Temia pelas aves de rapina. Lembrou-se que era inverno, não havia delas naquela época do ano. E os cães? O filme do bandido no apartamento da moça já acabara. Agora passava uma aula de mecânica, logo, logo, amanheceria. Quem seria capaz de cometer tão hediondo crime? Quem seria o autor daquela barbárie? Não teria coragem pra cometer tamanha atrocidade jamais.  Não se animava a limpar toda aquela sujeira, esconder provas. Somente um criminoso frio e calculista mataria os pais. Pior, sem sentir o menor remorso. Talvez alguém como aquele bandido que atacou a moça no filme.

Pegou um livro de capa amarela na estante. Era de Aritmética viu que pertencia a seu irmão, tinha o nome dele escrito de caneta na contracapa: Ezequiel. O livro era do ano 1972. Lembrou do calendário, fora naquele ano. O champanhe que não era champanhe era Sidra. Falta de conselho não foi. O próprio diabo tantas vezes lhe aconselhara para que não fizesse besteira. Preferia que vivesse honradamente a ter seu inferno particular, ainda no mundo dos vivos. Precisava dele ali. Era muito mais cômodo, no inferno já havia gente demais.  Olhou pela janela. Lá encima uma lua branca, perdida no azul do dia. Soprou uma baforada do cigarro. Amenizando o vermelho dos olhos, um gosto de sangue na boca. Aquele era gosto antigo.

A vitrola tocava Vivaldi à matina. A camareira chegou ao trabalho. Cumprimentou-o. Acostumada a não receber resposta, cumprimentava-o assim mesmo. Depois do que viu, saiu esbaforida, aos gritos. A porta aberta tornava público o sinistro. Um vizinho ligou pra polícia. Não demonstrou a menor reação. Um policial, no seu procedimento padrão apontado a arma, dando voz de prisão, enquanto outro lhe punha algemas. As luzes da viatura piscando lá fora sem destaque, afinal era dia. Realmente se tudo, tudo não fosse tão real. Confundir-se-ia com a cena do filme que assistira naquela madrugada.


Fabio Campos 

Entre A Serpente e A Estrela (Segunda Parte)

O céu escureceu, e como seria bom se fosse apenas ilusão. O mundo vertiginosamente rodopiava. Quem dera fosse redemoinho de vento. Alucinadamente girava de lembranças vendavais. E tudo era dura constatação. Certas coisas deviam nunca acontecer, melhor nunca terem acontecido. Infelizmente nunca se sabe qual vai ser a reação diante do inesperado. O susto, a arma branca, não era aquele o momento. Uma longa história precisava ser revelada. Arriscar a vida em defesa dum grotão ameaçado. Em missão estava. Era praticamente uma obrigação sua. Morrer de golpes de faca. Se tivesse que ser assim morreria. Aquele medo não era da morte, era da faca. Com seu inexorável poder. Diante da fraqueza de José Ivan, o rapaz do departamento Seu Pedro esmoreceu. Tocado de terna dó do moço. Disposto a abrir a guarda, desarmar-se ainda que espiritualmente. A faca na cintura do camponês. Zé Ivan paralisado. A folha de metal exercendo sua ação maléfica sobre sua alma. Entender o porquê era preciso. Tinha certeza, aquilo vinha de longe. De lá trás pra onde agora mesmo ele acabara de ir.

“Há um brilho de faca
Onde o amor vier
E ninguém tem o mapa
Da alma da mulher
Ninguém sai sem o coração sem sangrar
Ao tentar revelar
Um ser maravilhoso
Entre a serpente e a estrela”

Vinte e poucos anos e Zé Ivan parecia ser bem mais jovem. Rosto alvo, espinhas avermelhando-lhe as faces. Cabelos revoltos, dum jeito de que tomava banho, e não via pente. Proeminente dentição incisiva sob lábios finos. Os óculos, de aros arredondados dando-lhe cara dum John Lennon, sertanejo. Calça jeans, tênis de cadarços brancos, desalinhados, descomportados. Bolsa de couro a tiracolo, camiseta com uma estampa maneira, o que o tornava ainda mais esguio. Tinha, a um só tempo, cara de anjo - decaído, mas anjo - e universitário calouro. Não era fácil captar - muito embora houvesse - bem lá no fundo do olhar, uma rebeldia doce, quase ingênua. De um menino que curtiu Kurt Cobain, chorou e chorou quando ele morreu de overdose. Passaria três dias, trancado dentro do quarto, sem querer ver ninguém. As portas do guarda-roupa - pelo lado de dentro, o espelho - cheio de adesivos do Iron Maiden, Sepultura, Nirvana, Charles Brown Jr e Renato Russo. Quando estava de bem com a vida, pegava o violão, num domingo bem cedinho, se afastava da cidade. Ia sozinho curtir a natureza, cantar Sting para os lírios orvalhados dos campos. Tinha saudade das conversas que não teve com seu pai. Quem sabe perguntar como fora pra ele viver duas gerações antes de ser seu pai. Ele que vira nascer o rock’in roll comportado de Elvis Presley. Esbarrado nos anos oitenta, tempos da eletrizante geração Coca-Cola, de Rita Lee e Cazuza.

“Um grande amor do passado
Se transforma em aversão
E os dois lado a lado
Corroem o coração

Zé Ivan morava numa República com mais três amigos, na Rua Nossa Senhora de Fátima, num primeiro andar. Estudava Geografia em Belo Jardim. Nas noites quentes de verão ia pra Pracinha Dom Fernando Medeiros tomar cerveja com os amigos. Foi naquela praça que conhecera Dayane. Não sabiam, mas viveria os dois, um amor intenso. Como uma maçã cortada que encontra a outra metade. “Apple” a marca do seu headphone era também nome da Banda da qual seu pai era fã. Guardara dele, um disco compacto, que tinha na capa metade da fruta cortada. Com caneta a nankim alguém havia escrito na capa: “Were a British psychedelic rock band. The band was founded in Cardiff in 1968 by Rob Ingram on Guitar and Jaff Harradon bass. They released single LP in 1969, titled “An Apple a Day” E vinham as lembranças, com nitidez de por gosto de sangue na boca. De sua infância, da casa onde morava, próximo a Praça do Pirulito, em Maceió. Com impressionante nitidez a ouvir o barulho do trem. A abalar os alicerces, a tremerem as panelas, no tripé lá na cozinha. O barulho enorme, de dar a sensação que tudo ia desabar. Essa rotina repetida mais de quatro vezes por dia. E o braço da radiola que sequer terminava uma faixa do Long Play que seu pai colocava pra tocar retornava pro início e começava tudo de novo. Ainda menino deitado na cama, Zé Ivan cansou de imaginar o trem, como um gigantesco imbuá de ferro, doidamente derrubando as casas e que a invadir seu quarto. Tantas foram as vezes que adormecera e sonhara esse sonho. 

"Não existe saudade mais cortante
do que a de um grande amor ausente
Dura feito um diamante
Corta a ilusão da gente

A noite caída, uma vermelhidão vinda do tabuleiro, se misturava com o negro do firmamento, trazia o cheiro de tiborna. E a fuligem da palha de cana-de-açúcar queimada enchia os móveis, os quadros da parede duma camada fina e preta. De agosto a dezembro, a entre safra. Era sempre assim, se adoecia com frequência de constipações. E o ambulatório do Sanatório, ficava abarrotado de criança e idosos com problemas respiratórios. Zé Ivan era levado por sua mãe primeiramente no Posto de Saúde ali do bairro, próximo a sua casa. Um médico com cara de alemão nazista. Como que saído daquelas velhas revista Seleções, ou da revista o Cruzeiro, duma matéria do jornalista de guerra, Davi Nasser que cobria os conflitos no golfo pérsico, no Vietnã, e estivera na Itália na segunda guerra mundial.  Talvez dali se tivesse materializado. Saído duma página de jornal, guardado por seu pai lá no sótão. Bastante irritado o médico punha a culpa nos pais pelas doenças dos filhos. E esbravejava imprecações contra o governo, o descaso com a saúde pública. Lembrou-se de sua mãe - num daqueles domingos que ia a família à praia - preparando sanduíches e bolinhos de arroz pra levar. Iam à praia de Pajuçara, e tiravam fotos com uma geringonça chamada de Polaroid que produzia fotografias instantâneas. A roupinha de marinheiro, o calção listrado, o maiô comportado, os sorrisos de gente feliz.  Uma delas flagrou o velho Gogó da Ema, o famoso coqueiro com esse formato.

“Toco a vida pra frente
Fingindo não sofrer
Mas o peito dormente
Espera um bem querer
E sei que não será surpresa
Se o futuro me trouxer
O passado de volta
Num semblante de mulher

Olegário Martins o pai de Zé Ivan, fora funcionário do DNER nos anos sessenta. Um belo dia acabaria transferido pro sertão. Recrutado pra fazer parte da equipe que iria construir a ponte General Tubino, em Santana do Ipanema. Obra sobre o intermitente Rio do sertão. A redenção para melhorar o fluxo de acesso a Bacia Leiteira de Batalha e Major Isidoro. Aos sábados Seu Olegário levava o menino pro Mercado da Produção. Ia comprar verdura e carne. Um dia, vinham os dois voltando pra casa. Como sempre passavam na feira do passarinho, na banca de revista comprava o jornal. Na tabacaria cigarrilhas. Pro menino, churros um caminhão de madeira branquinha pintado com corante azul e vermelho.  Ao embrenharem-se por aqueles becos escuros e mal-cheirosos, entre palafitas, um negro mal encarado vindo ao encontro deles empurrou Seu Olegário pra um canto, e anunciou o assalto. Como um raio uma faca peixeira brilhou em sua mão. Seu pai sequer demonstrou qualquer reação, porém recebeu: Uma, duas, três vezes... a lâmina cravou-se em seu abdômen. Rapidamente o ladrão rebuscou-lhe os bolsos, e saiu correndo. O menino, estático. Em estado de choque. Vendo o pai cair lentamente ao chão, uma poça de sangue indo contornando-lhe o corpo. Cada vez mais aumentando de tamanho. E o mundo rodopiou. E o céu ficou vermelho. Por que estava acontecendo aquilo? Seria bom se fosse só ilusão. O mundo vertiginosamente rodopiando. O céu escurecendo. Pra onde fora a luz? Quem dera fosse redemoinho de vendavais que dava, no caminho de volta da escola. Alucinadamente o céu não parava de girar. E a realidade era uma dura constatação. Certas coisas deviam nunca acontecer. Deus. Melhor nunca terem acontecido.


Fabio Campos