OLivro de Ezequiel (Parte 3)

A rua a praça,  a cidade a praça,  a igreja e a praça. As árvores da praça. Estava tudo lá. Tudo imperfeitamente no mesmo lugar. Tudo tão pálido de concreto, aço, e desfalecimento. E o céu parecia estático esperando acabar novembro, para ficar assim inflamado de segredos. E todas as coisas ficavam com cara de livro guardado em biblioteca. Sem destino, amofinando suas malditas incertezas.

A perdição de um homem, talvez resida em descobrir, depois de maduro, não ter mais um destino pra seguir. Constatar que a vida, gastara inutilmente. E que a única coisa que restava era voltar pra casa. Tentar reencontrar-se a si mesmo.  Vinte anos virados em riscos de carvão, numa suja parede de cela de cadeia. Vinte calendários de eterno outono. A tirar-lhe o brilho dos olhos,  a colocar sal nos cabelos, e insipiência nos gostos. E as moças nuas das folhinhas que um dia lá fora lhe sorriram. Lá dentro, a cada mês, com tanto ódio lhe sorriam de novo. Para nunca mais, para a eternidade de vinte anos. Pra ele fora muito, muito tempo. Duas décadas, tempo suficiente pra um monte de gente, na lapa do mundo, nascer, crescer virar pessoas, que ele jamais conhecera.  Desejou ardentemente rever os irmãos. Como gostaria muito de ver Ezequiel. Não sabia naquele instante onde ele estava. Depois do ocorrido, o julgamento, a prisão, nenhuma notícia, mais de ninguém.

A velha casa onde um dia morara, estava lá. Continuava lá, como se lhe estivesse esperando. As suas janelas ao vê-lo choraram. Intumesceram de lágrimas ao recordarem quando pequeno sentara nos seus batentes. Sempre no final da tarde.  Trajado na fardinha de marinheiro com duas âncoras bordadas na lapela de costas. Os pezinhos calçados em seus sapatos pretos, de cadarços brancos. Esperaria o padrinho voltar do comércio. E quando era lá pelo fim da tarde lá vinha. E o abençoaria, e lhe daria uma moeda. Sem que fosse preciso pedir. Era práxis: o primeiro não podia pedir porque era falta de educação. O outro daria, pelo mesmo motivo. Sentado ali à praça, um mundo. Passou como um filme a sua frente passou. Um mundo tão natural, de gente simples, de meninos pretinhos, que seguiam pela rua. Filhos de mucamas. Agarrados na saia da mãe com medo de se perderem. Além de tombarem imensos balaios de mangaios na cabeça, tinham as mães pretas que suportar os negrinhos, feitos sururu de capote, grudados na barra de sua saia. 
     
Sentado ao banco da praça. Bem devagarzinho, sem quase ninguém perceber, foi a noite caindo. Com a noite veio o guardador de postes, querendo reconhecê-lo focou-lhe sua lanterna. Defendeu-se como pode. Na casa, agora havia uma luz acesa. Criou coragem e seguiu em busca do único destino que o esperava.  Bruno, o filho mais novo de Ester sua irmã mais velha, o recebeu. Por dentro a casa era a mesma, e o abraçou por dentro. Os traços do menino eram os mesmos do avô. O semblante semelhante aquele do retrato da parede. Os cabelos finos, a pele alva, o nariz aquilino, as orelhas enormes. E a mãe, morta, continuava sentada na cadeira de balanço de palhinha. E indagou-lhe; “Onde andava que nunca mais apareceu?” Nada respondeu.  Sobre as orelhas grandes do neto, disse: “É de família. Dizem que por conta disso vai viver muito!” Pra cada fala uma pausa. Apoiando os pés nos chão parava o balanço. Depois empurrava o encosto da cadeira com as costas e a cadeira voltava a ranger nos encaixes. Indo pra traz, e pra frente. E rangia e rangia, mas somente ele via e ouvia aquele acontecimento. A cadeira porem estava lá. Três pessoas, a sós. Bruno distraído com um fone no ouvido. Ouvia música enquanto folheava uma revista de futebol. Pra tevê ligada nenhum dos três olhava. Dona Euvira agora cochilava, o sangue que jorrara de sua jugular, que empapara todo seu colo tinha coagulado. Tornara-se um sangue vermelho escuro, capaz de ser removido à unha de tão ressecado. Vinte anos tinham se passado, cheiro de sangue nem tinha mais.  Josuel sentado a mesa dividia sua atenção com os dois mais que se encontravam ali. Josuel morto vivo, Bruno vivo e meio, a mãe morta, que só ele via. Os três juntos, e sós. E a lua se esticou pra ver melhor pela claraboia da área verde, e ia navegando a noite. A luz da fluorescente repousava sobre os cabelos cor de prata, alvo e preto. Bruno abandonara a revista, e o fone. Foi até o guarda-louça procurar algo pra comer. Dona Euvira Perguntou em que dia do mês estávamos. Josuel notívago, enjoado respondeu: “-Sei lá...” Foi à vez de Bruno perguntar: “-Sei lá, o quê? ...” “-Nada! Estou pensando alto.” Era comum um ex-detento perder a noção do tempo. Queria saber das suas irmãs. Dona Euvira disse que não sabia.  Lembrou do dia do sepultamento dela e de Jerônimo seu marido. Tudo tinha ocorrido rapidamente, num dia de domingo intensamente quente, dum mês de setembro, de primavera.

A bíblia estava à mesa, a alcance da mão. Abriu aleatoriamente. “Livro de Ezequiel Capítulo 23 – Filho do homem houve duas mulheres, filhas de uma mesma mãe. Estas se prostituíram no Egito; prostituíram-se na sua mocidade; ali foram apertados os seus seios, e ali foram apalpados os seios de sua virgindade. E os seus nomes eram: Aolá a mais velha, e Aolibá sua irmã; e foram minhas e tiveram filhos e filhas; e, quanto aos seus nomes Samaria é Aloá, e Jerusalém é Alibá. E prostituiu-se Aolá, sendo minha; e enamorou-se dos seus amantes dos assírios, seus vizinhos. Vestidos de azul, capitães e magistrados, todos jovens cobiçáveis, cavaleiros montados a cavalo. Assim cometeu ela as suas devassidões com eles, que eram todos a flor dos filhos da Assíria. E com todos os de quem se enamorava; com todos os seus ídolos se contaminou. E as suas prostituições, que trouxe do Egito, não as deixou; porque com ela se deitaram na sua mocidade, e eles apalparam os seios da sua virgindade, e derramaram sobre ela a sua impudicícia. Portanto a entreguei na mão dos seus amantes, na mão dos filhos da Assíria, de quem se enamorara.”

E tudo aparentava aquele aspecto, porque vinte anos haviam se decorrido. Os esteios da casa não mais se faziam entre aqueles. Vinte anos se passara desde que a desgraça se abatera sobre aquela família. Dona Euvira falou que tudo aquilo que havia acontecido, um dia tinha sido previsto por um primo que ela tivera na infância. Era um homem comum que se tornara de muitos dons. Diziam: “-Ele chorou na barriga da mãe.” Antes dos vinte anos, nunca passara de um agricultor, um lavrador, um dos que fere a terra com a estrovenga e o ancinho pra dali tirar o sustento. Do dia pra noite começou a profetizar e fazer premonições de acontecimentos vindouros e decifrar sonhos. E do dia pra noite tornou-se um homem culto.  Os vizinhos se encarregaram de espalhar que naquele lugar havia um iluminado. Muitos eram os que vinham pra casa do primo da avó de Bruno, em busca de cura de seus tormentos, de saberem a origem de males que lhes acabrunhavam os espíritos.  Em dia de feira, vinham agricultores para pedir que ele fizesse cura de seus animais, e para que o livrasse das mazelas que vinham as lavouras. Pedidos para que trouxesse de volta o cavalo desertado, para que tivesse bom parto a mulher grávida com filho enlaçado no ventre, que sarasse a pata do boi de arado. Naquele fim de mundo, numa casinha de taipa ecoava na montanha as orações, as lamentações, os gemidos dos atormentados por maus espíritos, os possessos em busca de cura. E aquele um dia profetizou: “-Uma prima minha contrairá matrimônio com um usurpador, porque quem deita cartas numa mesa de cassino, não passa dum usurpador, amigo do alheio. Dessa união surgirá más índoles, pelo menos quatro vingarão, dois varões e duas fêmeas. Porem devido aos agouros dos que muito perderam do seu suor na ilusão das cartas, por não obter sucesso amaldiçoaram os frutos dele.”

As velas acesas queimavam parafina enchendo de calor e luz tênue o ambiente. As velhas corocas, com o colo esbranquiçado de pó de arroz, e o pescoço cheirando a traseiro de bebê, se abanavam esbaforidas com leques ricamente decorados com imagens do tempo do rei Luiz XV de França. No altar a imagem de Jesus dos Passos. Tudo pronto para a procissão. Seu Jerônimo estava na calçada, somente o primo da avó de Bruno o via, de terno branco, de igual cor, o chapéu, e os sapatos. As mãos no bolso, pensativo.


Fabio Campos

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