Quando Crescer...

Os dias eram os que preludiavam o final do ano.  Havia ternas lembranças de histórias de tempos idos nas mentes dos que já haviam amadurecido. Sendo fim de ano, com muita propriedade vinham. As casas, as lojas, as ruas cheias de gente. No limiar de mais uma mudança de ciclo, o que mais havia era efusão de sentimentos, de modo especial nos que detinham mais idade. O que estivera por muito guardado, nessa época aflorava, dizendo o quanto as pessoas mesmo amando tão pouco, como gostariam de serem amadas. Despejadas dos postes, das fachadas das lojas, das árvores da praça, cascatas de luzes a se derramar, inundava as calçadas. Gente alegre ia e vinha portando pacotes coloridos, vozes exaltadas. Dilúvio de cores dizia de fortes sentimentos a serem revividos.  E tudo, tinha tudo para ser muito bom.
       
A igreja, a farmácia, a loja de brinquedos. Os bares com suas toldas coloridas, lembrava Paris “A cidade Luz” da Belle Époque. Mesas nas calçadas, homens de terno e gravata, chapéus de massa, vastos bigodes, bebiam cerveja em tulipas douradas esfumaçadas de gelo. Belas damas com seus vestidos longos recompensavam as vistas masculinas com generosos decotes de colo. Cigarros finos, entre os dedos bem cuidados, ornados de jóias, finas piteiras, e a fumaça ia desenhando serpentes  que levemente subiam e sumiam, espalhando aroma de tabaco no ar. Polidamente misturando-se a perfumes cítricos e suaves. Liberados das peles dos casacos, das ricas vestes e colares brilhantes. Diríamos que daria pra tirar dali magníficas aquarelas de T. Lautrec.  Orvalhado céu de estrelas jamais intencionaria competir com esfuziantes chuva  de luzes dos brinquedos na praça onde crianças alegremente faziam a festa. 

Pedro era garçon no Bar “A Lira dos Vinte Anos” olhava pra porta da igreja, os degraus cheios de gente. Era o branco a cor predominante nas vestes. Ainda mais esfuziante que as frugais luzes das lanternas hasteadas nas mãos dos coroinhas. Dali a pouco o padre iria celebrar a última missa do ano. As luzes da nave apagadas, tornando ainda mais solene a triunfal entrada do cortejo. Somente as seis velas que representavam os dias da semana, tendo a cruz de Cristo ao meio, iluminavam o altar. E o presépio montado ao lado do sacrário recebia unicamente a tênue luzinha vermelha duma lamparina. Permanentemente acesa para lembrar que Cristo sempre presente estava. Numa tradição trazida do longínquo período medieval. Naquele tempo eram alimentadas com azeite puro de oliva, ou cera de abelha. E o coral composto por meninos celibatários que deveriam seguir a ordem no tempo determinado. Enchiam a igreja com suas vozes agudas que lembravam querubins e serafins. Apesar do barulho e do intenso movimento das ruas Pedro conseguia pensar. Pensava que quando saísse dali iria pra casa de sua avó Júlia com quem morava. De certo a encontraria ainda acordada a olhar o velho álbum de fotografias. Perguntaria se ele já havia jantado, ele diria que sim, e a aconselharia que fosse dormir. Porém ela só iria quando ele estivesse deitado. Uma das fotos permanecia debaixo do abajur no criado-mudo. Era a foto de um homem vestido de terno de linho com um chapéu na mão. Era do seu avô Francisco, a muito já havia falecido.

Jarbas o pai de Pedro, naquela manhã do primeiro dia do ano, lembrava do filho. Fazia dois anos que não se via, a trabalho fora morar noutra cidade. Tinha por tradição pagar uma promessa de todo fim de ano. Inventava uma caridade, uma penitência. Isso porque havia alcançado uma graça. Certa vez vinha pelo meio da feira, e começou a passar mal. Trôpego veio vindo pela rua Rotary. Algumas pessoas conhecidas observou que daquele jeito parecia estar bêbado. Cambaleante foi ajudado a chegar a casa. Não era efeito de bebida alcoólica, tinha acabado de sofrer um acidente vascular cerebral. Ficou prostrado na cama somente o tempo que dona Olga, a mãe de Pedro, conseguiu uma ambulância que o levaria para a Santa Casa de Misericórdia em Maceió. Passou mais de quinze dias na UTI e conseguiu se recuperar ficando algumas sequelas. Um braço esquecido, o maxilar dormente, mas a fisioterapia e sua fé em Deus, fez com que recuperasse parte dos movimentos. A promessa daquele ano era ir novamente a pé, até a pedra do urubu. Encimada da capelinha do padre Cícero. Ainda escuro sairia de casa. Levaria consigo mantimentos, porque outra vez, quando chegasse a determinado lugar deixaria estrada. Embrenharia na caatinga por mais de meia hora. Pra chegar num lugar deserto donde avistaria o casebre de Jaconias, um octogenário ermitão. Ficaria horas esperando que ele saísse pra fazer o papel dum papai Noel do sertão. Jaconias já se acostumara com aquela situação, a cada fim de ano. O dia amanhecia e poria os pés descalços dentro da mata, ia orar ao pé da cruz no alto da serra. E ao voltar encontraria sua choupana totalmente remodelada. As vasilhas lavadas, águas no pote, tudo varrido e limpo.  Novos forros de cama, roupas limpas, uma quantidade de mantimentos que lhe garantiria vários dias de fartura. Até fumo picado e fósforo aquele homem que jamais conhecera deixaria. Quando descesse da serra tudo isso encontraria no seu casebre. A única coisa que podia fazer em troca, era uma oração pra aquele que considerava um anjo da guarda. Nunca se encontraram, nunca conversaram. No entanto se conheciam tão bem. Melhor assim. Era o que ambos achavam. Melhor assim.   

No oceano celeste andorinhas, uma aqui, outra acolá dali a pouco, nadavam solitárias. Em negrito desenhavam graves notas de “si’ no ar, cortando com as tesouras de longas caldas. Enquanto cardumes de garças, militarmente atravessavam, dum lugar pra outro, levando som nenhum. Porem dava pra vir de muito longe um som de castanholas quebrando. E como vinha de muito longe também doutra dimensão vinham. E quão antigo era, antiguíssimo! E diziam dum menino de calças curtas, que ia a bodega de seu Benício, comprar cigarro pro avô, e ia tão feliz porque ganharia o troco. E compraria bengalas de açúcar raiadas de corante vermelho. Isso lá pela quarta hora da tarde, quando passava o carrinho de Seu Antonio doceiro tilintando sua campainha. Dando a lembrar um papai Noel fora de época, que só daria doces mediante um escambo de moedas.

Nas novenas de natal três Marias iriam: Das Dores, Das Virgens e Do Carmo. Cada uma com sua especialidade, a primeira pra cuidar de doente, a segunda a arranjar casamento pra moças encalhadas, menos pra ela mesma; e a terceira coitada, pegou a fama de “papa-defunto”. Eram as três filhas de Seu Lipercino, o mecânico chefe, da usina de algodão, que tanta vontade tinha de ter um filho homem, mas da “usina” de dona Umbelinda só mulher fêmea saiu.  Maria das Dores conhecia todo tipo de meizinha pra aliviar os males que afligiam os pobres, que não podiam comprar remédios de farmácia. Sabia da utilidade ou dos males que causavam cada mato existente na caatinga do sertão. A serventia da carqueja, do pau d’arco, da aroeira, do Samba Caitá, dos benefícios da gosma da Babosa. Maria das Virgens sabia duma ruma de oração. Oração pra livrar as pessoas de mau-olhado. E mesmo pra arranjar casamento. Aconselhava: era só ter uma conversa de pé de ouvido com Santo Antonio! Tinha uma pequena imagem do santinho que era pra emprestar, recomendando que no mês de junho colocasse dentro duma vasilha com água. Pra só tirar, se até o fim do mês arranjasse um noivo. Maria do Carmo muito religiosa ia a todo velório, e os doentes em leito de morte pediam aos parentes: “-Pelo amor de Deus! Não deixem Do Carmo vir me visitar!” Sua presença, era certeza de morte breve. 
       
Pedro lembrou, que com seu avô montou a lapinha e a árvore de natal de vó Júlia. Tinha só cinco anos e saiu com uma pergunta desconcertante: -Vô o que você quer ser quando crescer? A pergunta pegou o velho Francisco de surpresa. E olhando pro menino: -Quando Deus crescer e for bem grande, vou pedir pra ele que nunca deixe faltar vô pra ninguém, o ano inteiro.  


Fabio Campos

E O QUE VOCÊ FEZ? (And what have you done?)

Eis que vinha vindo o dia de natal. Num tempo em que os cartões de felicitações, de mão em mão iam indo, correr mundo. De tudo fazendo pra chegarem a tempo a seus destinos. E encheriam de graça e luz, os olhos quando chegassem aos seus destinos. De bicicleta, na bolsa do carteiro, a passearem pelas ruas e praças. E palpitariam os corações dos remetentes, premeditando o semblante dos que receberiam. Haveriam de amanhecerem junto de garrafa de leite no batente da porta. Dentro da agenda do gerente da loja. Junto ao diário de classe da professora. Ao pires da xícara de chá da dona da pensão. Pra finalmente irem repousar junto a latas de bombons, buquê de flores e caixas de pães da Itália. A alegrarem as mesas forradas com toalhas de motivos natalinos, com cheiro de vinho do ano passado.

Árvores urbanas se espreguiçavam mansamente nos seus mais altos galhos, a dizerem que era tempo de as enfeitarem. Tempo de se voltar a ser criança.  Tempo de se ser menino. Tempo de ter  menino-Jesus, vindo brincar de bola com a molecada no campinho. Verdes, verdinhos de jardim, nas asas de Betularias enviariam seus acenos pra um casal de namorados no banco da praça largados. Alegres, vistosas samambaias a discutir quem angariaria mais olhares. De bolas coloridas se enfeitando, de cristais olhares. E os piscas-piscas camuflados na folhagem do jardim, tiravam o dia pra dormir, e aguardariam a noite pra acordarem velhos sonhos.

Havia uma, duas, três casas, solitárias. E a rua, sem calçamento, sem iluminação, sem rua.  Sem alegria de meninos brincando de bola. De rua mesmo, apenas o nome. Rua do Colombo. Sendo aquela à hora terceira, os meninos teriam ido pro campinho, lá embaixo. Encoberto pela algazarra de vegetação ficavam. O mundo tinha uma vontade imensa de se mostrar solidário ao tempo do advento. E pra isso revestia seu teto, de um rebanho de nuvenzinhas pequenas! Tão engraçadas. E os meninos do cabelo de fogo, punham-se a chamá-las de carneirinhos, Deus nem ligava. E suas avós, no alpendre da casa de dona Marinete, se lembrariam, que aquela era a hora da misericórdia. E por-se-iam a recitar um rosário, apressado, cheio de angústia e solidão. E as velhas senhoras se lembrariam de quando eram meninas. E ficariam tão sonolentas, e durante a reza cochilariam tanto. E acabariam sonhando com suas mães. Enquanto os gritos coloridos da molecada a grudarem-se nas camisetas, listradas numeradas, de fazer gol. Esbaforidas acabavam fazendo o que devia ser feito. E corria e corria por entre o verde.

Rua do Colombo guardava nenhuma comédia, mas pelo menos três tragédias. O homem da última casa que nunca falava com ninguém. Quando saía era somente pra ir ao mercado.  Um terreno baldio, onde um cavalo pastava. A penúltima casa era duma velha que sofria de doença celíaca. Outro terreno vazio que tinha um pé de Acássia solitário, plantado no meio da grama. Findava a rua com a primeira casa, da menina triste da janela. Na cozinha, da casa do meio, uma cadeira de balanço aproveitava o silêncio da manhã, e a despeito dos pardais pipilando diziam assim mesmo: ren-ren... O teto havia se chegado, pintado de um verde claro se valia da luz diurna pra definir a geladeira, o fogão de estanho, o guarda-louça antigo. Junto das xícaras e taças de cristal, um descanso de cachimbo de porcelana com duas piteiras nodoadas de fumo, um dia pertencera a Seu Firmino, o marido barbeiro que fora embora, fazia anos.
          
Eis que vinha vindo, o dia de natal. A menina da casa do meio permanecia na janela de grades de ferro, fechada. Deixando ainda mais triste seu rosto triste. Sendo porém tempo de natal, era tristeza boa, sincera. Um cavalo pastava no terreno baldio. Por que sentia tanto medo?  Tinha medo, do olho negro do cavalo. No que pensava o cavalo? Aquele olho lhe ia tão dentro de si. Nos recônditos porões da sua existência a tentar desvendar profusos segredos. De beijos forçados, beijos proibidos. Coisas que sua mãe, nunca deveria saber, jamais. Tinha medo. O professor de música um dia abusara dela. Preferia morrer a ver algo tão abominável exposto. E odiava-se por isso, sentia-se culpada. As pessoas têm o costume de julgar a partir de um lado apenas das verdades. Sabia disso pelos comentários. -Por que Adelaide era uma menina tão arredia? Na escola, na igreja, no parque da praça. Chegava a evitar o contato com as coleguinhas. Não dava pra entender porque não queria participar de nada. A professora tocou-lhe enquanto estava distraída e instintivamente ela a repudiou, foi traumático. Uma vez, dentro da biblioteca municipal, se atracou com Dulce sua melhor amiga. Só porque tomou de sua mão um livro que pegara primeiro. Na aula de catecismo irmã Flora conversou com ela. Adelaide voltaria pra casa ainda mais triste. A bolsa dos livros fortemente apertada contra o peito. A mãe reclamava pela demora no banheiro. Mal sabia que se trancava ali, quando queria chorar. Despia-se e ficava num canto abraçando a si mesmo. Sentia-se suja. O chuveiro prolongado, e esfregava-se com tanta força que chegava a machucar a pele. Odioso contato do professor, odiosos beijos.

Lá longe, muito além donde as vistas podiam alcançar. Eis que vinha vindo, o dia de natal. Talvez para além do fim do mundo, estivesse chovendo. E o vento na sua intrépida altivez viesse perguntar: -Tá sentindo? E a menina devolveria a pergunta: -Sentindo o quê? -Cheiro de natal? -E natal tem cheiro? E ouviria o vento a dizer que: -Lá longe, muito além donde as vistas podiam alcançar, também o natal era triste. A mãe da menina, chata como toda mãe devia ser, lembrou de suas obrigações. No silêncio da janela, acabou mal-dizendo das mães que achavam que filhas eram suas propriedades, das quais podiam usar a seu bel-prazer. Revisou mentalmente o que tinha pra fazer. Recolher os panos no varal, porque Deus prometia chuva. E quando Deus prometia dificilmente esquecia de seus compromissos. Mas como era natal talvez ele estivesse muito ocupado devido a quantidade de pedidos aumentada. Em papai Noel deixara de acreditar fazia três anos, desde o ano que seu pai falecera. Quando ela tinha só nove anos de idade. O vento frio soprando forte na vidraça aberta, veio lembrar-lhe de ir colocar as galinhas e os pintinhos no grajau. Recolher os ovos da poedeira. O chiqueiro dos cágados carecendo de reforma, mas só quando tio Jonas viesse somente ele pra ajudar nos reparos. Numa casa onde só duas mulheres viviam tanta falta fazia o esteio da casa. Sua vó dizia: -Minha “filha” nunca queira ficar velha nem viúva! Será o fim... E não concluía a frase. Fim de que vó? Fim da vida? Fim do sonho? Fim do mundo? Talvez fosse isso. A Rua do Colombo, talvez fosse o fim do mundo.

 Era tempo de cajus no cajueiro de Seu Antonio. E os galhos escalando os muros do quintal. O crime pelos meninos premeditado nunca consumado.  Dariam as Melipondias vazão pra fartarem-se até se embriagarem do doce néctar do pomar de Seu Antonio pedreiro. Ainda tontas, indo desdenhar das pobres flores da Acácia solitária do terreno ermo.  O pedreiro perdera o único filho num acidente de moto. O rapaz morava em São Paulo. O corpo viera com a esposa, de avião. Triste tarde de sepultamento. E o pedreiro nunca mais sentou um tijolo. Ficou doente se encostou pelo seguro social. Adquiriu a doença da tristeza, do isolamento do mundo. Assim era  a Rua do Colombo, rua triste, de três casas de três moradores triste.  

So this Christmas
And what have you done
Another year over
And a new one just begun
And so this is Christmas

Eis que vinha vindo o natal. Era tempo de cajus. Pra onde foram os meninos? O campinho agora era só céu, mato, e um vento frio, escurecedor. Grossos pingos de chuva fizeram o cavalo ir pra debaixo do pé de Acácia Ferrigínea. Sentada no chão Adelaide fitava a árvore de natal da sala de estar. Cartões feitos com pedaços de folha de caderno, frases tão sinceras. E Deus se inclinando por cima do seu ombro lia junto com ela e sorria. O pisca-pisca dizia verde, vermelho, verde... Dona Belinha sentada na cadeira de balanço, não sabia se dormia ou morria. Seu Antonio no sofá, um lençol vermelho enxadrezado lhe ia até o pescoço se queimando de febre. Lá longe, muito além donde as vistas podiam alcançar, uma vitrola tocava a música daquele Beatles assassinado, que dizia: Então é natal! E o que você fez?


Fabio Campos

DIANTE DE TANTOS AZUIS (De Dia, De Noite...)

 Havia uma noite. Pra quem quisesse desfrutar. Muita luz nas ruas, de muito tráfego, de muitos carros e gente. A despeito de ser noite, muita luz havia. Uma lua pálida descortinando um céu negro que queria ser azul. Casas de família praticamente desexistiam. Empurradas que foram lá pra periferia. E deixaram a catedral sozinha. Arranhas-céus enchiam de cores e luzes o desestampado feltro da noite. Entronados de si mesmos os prédios gigantes bibliotecavam verticalizando, feito livros empilhados. 

Ao menos duas coisas lhes eram familiar ali, a lua e o ar noturno. A primeira, a dizer algo de parecer um comprimido de hidroxila de alumínio desubmergida das entranhas de um firmamento. Céu destituído de cor - gaseificado de estrelas - proporcionando confortável alívio pra sua ácida solidão. Antigas poesias fluindo, de renomados vultos históricos que viveram naquela cidade havia mais de trezentos anos. Instigando-lhe a criar outras novas.  
  
Uma moça sentada numa pedra, debaixo de um poste na esquina. Um chapéu branco, de palhinha na cabeça. Aquela lua magra sabia de histórias daquela moça. Sabia dos seus dias, dos seus mistérios. Sabia mais que Seu Dias, o motorista. O outro homem fixou o olhar naqueles olhos castanhos de cílios longos, negros. Sequer a moça olhou pra ele, mesmo assim viu seu olhar lhe olhando. E apaixonadamente apaixonou-se. Desejou ardentemente tocar naquela cascata de cabelos negros que lhes iam além de suas espáduas nuas. Aquela boca de baton vermelho. E sonhou aquela boca entreaberta que quase deixavam ver os incisivos alvos, que jamais lhe sorriram, e mesmo assim viu-a a sorrir pra ele. E ficariam manchados de vermelho quando sua boca beijasse com sofreguidão aquela boca. E sonhou sua mão de dedos longos, deslizando suavemente por entre os cabelos lisos. Se embrenhando e inebriando do perfume largado de seu colo - não teve como evitar delírios - indo impregnar-lhe as unhas bem cuidadas que desceriam pelas suas costas até encontrar a linha de sua cintura. E se vertiginaram suas vistas, enlouquecida ia sua mente, ante a contemplação daquelas belas pernas.

Seu Mario Dias desceu do carro, dirigiu-se até onde a moça estava. Isadora permaneceu calada, impávida. Nenhum dos dois tinha o que dizer um para o outro. O motorista se colocou a sua frente, e aquele pezinho lindo calçado numa sapatilha apontava para entre as pernas do motorista. Seu Dias havia sido orientado pra ir até ela. Como um cão de guarda deveria ficar apenas esperando. Devia apenas guardá-la. E aguardar sua reação, que infelizmente não veio. Então pacientemente pediu-lhe para que fosse até seu patrão. Isadora não moveu um nada. Lembrava um bibelô dos que encontramos somente em relicários finos. As pernas cruzadas uma sobre a outra. Um sinal de nascença na coxa da perna que estava por cima surgiu bem próximo a barra da saia. E aquele outro que a tudo observava disse a si mesmo que tinha que avançar. Se não quisesse que desconfiassem de alguma intenção sua, a que nem ele mesmo sabia se havia.

Entrou no beco escuro. Foi tragado pelo negrume quase insano da viela. Era uma rua sem saída. Achou bom ser abraçado por aquela acridoce escuridão. Gostou do carinho fraterno de mãe, que as trevas lhes proporcionavam, em especial naquele momento. A rua ia dar na praia. Dava pra ouvir o mar. As ondas quebrando nos rochedos do precipício, provido de parapeito. Pelo dia já havia passado por ali. Jovens casais enamorados, talvez turistas, pediam pra que lhes tirassem uma foto. Sequer pensavam no perigo que os rondavam. A maré baixa proporcionava visão magnífica. Escondida no abismo lúgubre da noite, aquela hora. Um marinheiro solitário trôpego. Mambembe veio vindo em sua direção. Um cigarro aceso o denunciou. Tragou forte o fumo e encheu de diamba a rua. Adiante seguiu o homem do mar, cambaleante. Foi obrigado a inalar o forte aroma. Cheiro que jamais lembrava o mar, nem a maresia. De noite o vento não vinha pra costa, ia. E do nada, brotou na língua um gosto de cerejas recém colhidas na primavera, intumescidas feito clitóris de mulheres damas, que raspavam os pelos pubianos com medo de contraírem piolhos. Daquele jeito ficavam parecidas com púberes meninas. E suas carnes alvas e rijas, tão docemente desejadas. E nunca, jamais se oporiam serem colocadas nuas, numa cesta de vime para serem entregues ainda naquela noite, aos deuses marinhos. Cujas orgias com belas ninfas acabariam se projetando num esplêndido drive-in soturno. Sendo a tela panorâmica, aquele mesmo giga céu diáfano. Uma vedete vestida num colant verde musgo, que delineava seu corpo esguio fixou-se numa das paredes, e chorava um choro mudo, tinha as mãos e os braços atados as costas. E suas lágrimas eram de prata e mercúrio. Exausta sentou-se sobre uma enorme serpente marinha, negra e viscosa, que mais parecia um cérebro com mil olhos que a tudo via. Ignorando o cheiro de urina dos homens que saiam da boate, a aliviarem suas bexiga ali. Na fachada uma placa luminosa em neon verde e vermelho que acendia e apagava, dizia: “Boite da Vilma, a Sereia do Mar.”

Uilson avançava numa moto a toda velocidade. Ele próprio talvez nunca se sentisse, mas era como um rei. Rei das trevas, envolvido pela negra noite, voava sobre o asfalto. Senhor da velocidade, senhor do ódio. Sedutor ódio e amor vil que nutria por Isadora naquele momento. Iria ao seu encontro, Sabia exatamente onde estava. Toda quinta-feiras nas docas.A conversa seria breve.  Teria que se decidir. Daquela noite não passava. Não mais suportava tal situação. Decidir-se: ou ficava com ele, que com muito orgulho era um simples mascate. Vendia discos na feira livre na vila dos pescadores. Teria que se decidir ou ficar definitivamente com o almofadinha do doutor Danilo. O rico odontólogo que a queria, apenas pra desfrutar do seu corpo. A queria, porem apenas como garota de programa. Voava a moto vencendo o negro asfalto, a negra noite fria. Pelo ódio empurrada e acelerada e o desejo desumano de ter a posse de um corpo.

Isadora resolveu ir até o parapeito que dava pra praia. Sabia que diante dos seus caprichos o cão de guarda do motorista iria acompanhá-la. A evitar que nada de ruim lhe acontecesse. Tivesse ela, o poder de ler pensamento não arriscaria tal empreendimento. O que pensava o motorista era pra lá de sombrio. Aquela menina significava perigo pro seu patrão. Várias foram as vezes que presenciara brigas entre eles dois. No começo tudo eram flores, depois das malditas bafejadas do diabo o amor esmorece. Se o chefe, e mesmo a esposa do patrão, lhes encarregasse de matá-la, a mataria. Bastaria a menina, tentar chantageá-los a extorquir-lhes dinheiro. Não hesitaria, em por um fim a sua vida. Infelizmente não seria a primeira vez que faria tal ato vil.  Num passado distante que ele teimava em não sepultar. Martelado dentro da sua mente, o que havia praticado. A sangue frio, simplesmente esfacelou com uma pedra o cérebro de um colega de escola. por motivo banal, um apelido nele colocado. Nunca sentiu o menor remorso por isso. Sensato seria da parte daquela moça tomar bastante cuidado.

O relógio marcava duas da madrugada quando dr. Danilo esvaziou o copo. Entornava a terceira dose de uísque puro, sem gelo. Não entendia porque Seu Mario ainda não havia chegado. O telefone móvel do motorista, avisava estar fora de área. Onde estaria aquela hora que não chegava? Sentado a uma mesa dum restaurante chique da orla, sozinho aguardava. Dali até as docas não dava mais que mil metros. Foi ao banheiro. Olhando-se no espelho passou a mão no cabelo, ajeitou o revólver na cintura. Aquilo o fazia sentir-se ainda mais másculo.

Era comum as sextas-feiras as docas amanhecerem cheia de gente. Dia de comprar pescado fresquinho no Mercado do Peixe, logo ao lado do parapeito da praia. No entanto aquela aglomeração não se fazia presente ali pra comprar nada. Perplexas as pessoas olhavam em direção ao penhasco. Feito boneca abandonada, que ninguém mais quer brincar. Jogada, contra os pontiagudos e tortuosos arrecifes. O belo, porem inanimado, corpo de Isadora, jazia.


Fabio Campos        

O Quinto Natal

A rua dizia muitas coisas. Mas também se calava pra outras tantas. Dizia de luminárias novas, nos postes a deitarem cor alaranjada em tudo que estivesse ao alcance. E a cada recanto onde houvera escuro, por toda alta madrugada, agora ia luz. Ardentemente, desejaria o clarão do dia. Talvez uma velada e aflita necessidade que a noite passasse logo. Pela muita cor que havia antes ansiava. Vista daquele jeito, todas as coisas pareciam mortas. Isso se não fosse natal. Em tudo predominava o majenta, como em retrato antigo. Espremidas, as casas, de pé na calçada, soldados perfilados prontos pra revista de rotina. E assim permaneceriam mesmo sabendo que o comandante jamais viria. Nunca mais voltaria da guerra. E os piscas-piscas faziam de tudo pra alegrar os jardins.

Fazia muitos anos que Maria morava na quinta casa. Casa feia, acanhada, de fachada pobre. Pobre de traços. Feiamente pintada de amarelo. Uma porta cortada ao meio, metade fechada, metade aberta. Uma janela de uma folha de madeira inteiriça, seca, cega, surda e muda. Um dia talvez, teria sido pintada de vermelho, mas isso talvez não passasse de especulação. Riscos de giz desafiaram quarenta janeiros, perpetuaram-se no tempo. Duma distante infância de menina, esquecida, dizia em letras cursivas e toscas: “Maria”. O “M” mais parecia uma mola espiral, o “r” e o “i” abraçados. O “a” com seu rabo de cavalo, não queria conversa com as outras letras. Um panfleto desbotado anunciara a novena do natal de 1987, discolorido, esquecido. O piso cimentado acinzentado. Sufocava-se de poeira. Poeira das rodas de carro de boi que passavam na rua cantando, cravejando as paredes e as portas, com suas notas estridentes de espinhos. A abrirem feridas que jamais cicatrizariam. Nem nos olhos, nem nos ouvidos, muito menos no olfato. Um cheiro de palma ruminada sumindo das ventas dos bovinos, pra entrar nas ventas dos meninos. O filho de Maria completara cinco anos. João Pedro nascera tão doentinho. Ao completar dois anos teve pneumonia. Doera muito naquele ano, perto do seu aniversário, perto do natal ter que interná-lo. Os frios corredores de hospitais, nada de humano possuíam. Pobre bichinho deslocado, como gostaria de entender o que estava acontecendo. Por que tinha que ter aquela máscara no rosto? Por que não podia ir lá fora, brincar com as outras crianças? Da vidraça da janela o menino passarinho, de olhos tristes.

Papai por que não posso ir pra casa? Seu José Ivo bem queria dizer, mas não conseguia. Um nó na garganta. Dizer até que seria fácil. Difícil era conseguir convencer o menino que não podia ir pra casa por conta de uma tosse que lhe fazia engasgar e expectorar catarro com sangue. Lembrou do dia do seu aniversário. Antes de ir pro hospital passou na padaria, com o dinheiro que sobrou dos remédios, comprou um bolo pequeno. Teve que implorar aos exigentes funcionários do hospital pra deixar entrar, sem sucesso. Apelou a assistente social. Mas aquele povo não tinha coração. Não permitiria a entrada do bolo, somente o brinquedo. Uma pequena charrete de plástico, com carroceria puxada por quatro cavalos de cores variadas. Além do mais só um visitante por paciente, podia entrar no ambulatório. João Pedro sentado na maca de rodinhas, máscara no rosto, coberto até o tórax. Viu desfilar a sua frente, um a um, dos seus irmãos que com cara triste diziam: “-Feliz aniversário João...” E logo tinham que sair. A cada hora, o terrível momento da injeção, e aplicação de seringa do soro. Como convencer a criança a ficar imóvel, por horas? O enfermeiro pediu que Seu José distraísse o menino, enquanto fazia seu trabalho. Nos cavalinhos repousavam os imensos olhos de João Pedro. Seus cabelos lisos brilhavam sob a fluorescente, se impregnando do cheiro nauseabundo de formol.  O pai procurando mantê-lo entretido falou: “-João...Lembra do vovô Sebastião?” Confirmou com balanço de cabeça. “-Pois é! Ano passado no seu aniversário, o vovô lhe deu um carneirinho de presente...Lembra? Esse ano, ele me falou que lhe dará um cavalinho igual a um desses aí. Assim que você ficar bom, e sair daqui.”

O menino entendia, seu pai tentava apenas amenizar-lhe a dor, falando e prometendo coisas que jamais poderia cumprir. As lembranças ainda estavam muito presentes em sua cabecinha. Em junho, faria dois anos que Seu avô Bernardo havia morrido. Recordava, com tristeza e riqueza de detalhes, como tudo tinha acontecido. Quando chegava o tempo da colheita. A família toda ia pro sítio, pras batas de feijão e a quebra do milho na roça. Enquanto o caminhão avançava pela estrada de terra batida, levas de trabalhadores braçais nos aceiros e a beira do caminho a ganharem os roçados. A grande maioria, negros e mulatos. Vestidos em trapos de cores que um dia fora viva. Agora aos farrapos expunha braços musculosos e luzidios. Os que iam pras arrancas do feijão levavam enxadas e toras roliças de madeira pras batas. Os que iam pra lida com os rebanhos levavam nas mãos cordas de caruá, relhos de couro cru as costas, e pelo menos a bota direita tinha uma espora. Eram tantos homens que careciam do trabalho de jagunços pra apontar e vigiar o dia de serviço. Um marchante pra abater pelo menos dois bois, um carneiro e dez galinhas pro preparo da comida. O caminhão Chevrolet de boleia vermelha, avançando e avançando deslizava sereno no meio da imensa ceara verdejante. Sob o céu azul anil um sol que tinha olhos, e boca e sorria como uma flamejante bandeira da Argentina.

Enquanto tudo isso, de aparente aparência vivia, o anum sobreveio, sobrevoando a plantação. Na esperança de predar gafanhotos, mariposas, e caso o lavrador bobeasse, o farto cereal pra seu alimento. As mulatas debaixo dum umbuzeiro no barranco do açude preparavam a ração da mantença dos trabalhadores. O fumo de lenha e de caldo de feijão a ganhar os prados. Lembrou do dia que tia Candinha lhe acordou bem cedinho pra irem até a mata. A cata dum pé de juá, pra tirar a entrecasca, pra fazer uma meizinha pra curar dor de mulher. Levava o sobrinho mais novo pra dar a primeira talhada no caule do pé de juá. Para que a planta não morresse, tinha que ser daquele jeito, por um menino inocente o primeiro talho. Os freios rangeram, e gemeram nas rodas. Anunciavam que o destino tinha vindo ao encontro deles. João Pedro pensativo apoiado no gigante da carroceria demorou-se um pouco mais antes de descer. Percebeu que algo de grave havia ocorrido ali. No alpendre da casa, tocadores de pífano. Não sendo tempo de novena, tratava-se então de féretro na residência. Não deu outra vô Bernardo tinha morrido. Vaqueiros tomavam fartos goles de cachaça e aboiavam em honra ao defunto do avô de João Pedro.
       
Seu Bernardo achou de morrer, bem no dia de Nossa Senhora Conceição Aparecida. Foi o mais triste oito de dezembro da vida deles, tanto do filho José, quanto do neto João. Triste dia no Sítio Coité dos Bravos e redondezas. Foi só o féretro ganhar o caminho do cemitério, e o mundo se fechou. Acinzentou-se pro lado de Pernambuco. E o dia claro se apartou do céu. Fez-se em vulto. Pegando as veredas lá pras banda do Sítio Serrotinho e Grotão. E desabaram das nuvens do céu as águas. Seu José prometeu que nunca mais poria os pés naquele sítio, enquanto vida tivesse. Seu filho João Pedro acabou ficando muito doente pela morte do avô. Nunca mais teve saúde.  E o choro do menino se ajuntou ao choro de Deus. Tão triste era uma tarde quando tinha um sepultamento. Tudo isso o menino revia no leito do hospital. Seu pai estava no corredor.

Depois da morte do avô, João Pedro ia ficando cada vez mais doente. Não teve mais saúde, nem tinha gosto pra nada. Os pais levaram pra vários especialistas sem que nenhum deles descobrisse a origem do mal. E Seu Bernardo lhe aparecera muitas vezes em sonho. A dizer-lhe que estava bem onde estava.  E que ele não se preocupasse. Pediu muito que ele voltasse a se alimentar. Pra ser um menino de dar orgulho aos pais, e crescer forte. Mas essas coisas não são coisas a que nós temos poderes sobre elas. São amarras do destino. O que Seu José, dona Maria, e João Pedro jamais entenderiam. Quatro natais, era o tanto de natais que aquele menino tinha passado até então. O quinto num leito de hospital sem saber o que viria.


 Agora ia alta a noite, e ninguém mais transitava pelos corredores do hospital. O que mais havia ali era silêncio. José caminhava a esmo. Uma parede lisa pintada de verde, uma janela com persianas fechadas, um extintor para incêndio, uma maca abandonada, um aviso com letras vermelhas: “Ambulatório”. Outra janela, sem persianas. Olhou através da vidraça, viu lá longe, muito longe, talvez no umbral de uma casa, piscas-piscas. Só então se lembrou que era natal. João Pedro até então deitado como em profundo sono sobre a penumbra do quarto de hospital. Acordou-se, abriu os olhos. Desceu da maca, os pés de seda, descalços, tocaram o chão frio. O menino ganhou o corredor. Alguns trechos, mal iluminado o corredor. Um enfermeiro apoiando os braços no braço da cadeira dormitava, nada disso via. Veio, e veio andando o menino. Andando foi, até encontrar seu pai. Seu José estava ao lado da gruta de orações. Nossa Senhora de Fátima a olhar, com olhar sereno, as mãos estendidas.  Várias velas, num pires e no batente, todas apagadas. Percebeu que seu pai rezava de olhos fechados. Tocou-lhe o braço mas ele não percebeu seu toque. Chamou “-Papai...” Mas ele não o ouvia. De repente um facho de luz desceu sobre o menino, que se foi. Aquele seria seu quinto natal.

Fabio Campos