DIANTE DE TANTOS AZUIS (De Dia, De Noite...)

 Havia uma noite. Pra quem quisesse desfrutar. Muita luz nas ruas, de muito tráfego, de muitos carros e gente. A despeito de ser noite, muita luz havia. Uma lua pálida descortinando um céu negro que queria ser azul. Casas de família praticamente desexistiam. Empurradas que foram lá pra periferia. E deixaram a catedral sozinha. Arranhas-céus enchiam de cores e luzes o desestampado feltro da noite. Entronados de si mesmos os prédios gigantes bibliotecavam verticalizando, feito livros empilhados. 

Ao menos duas coisas lhes eram familiar ali, a lua e o ar noturno. A primeira, a dizer algo de parecer um comprimido de hidroxila de alumínio desubmergida das entranhas de um firmamento. Céu destituído de cor - gaseificado de estrelas - proporcionando confortável alívio pra sua ácida solidão. Antigas poesias fluindo, de renomados vultos históricos que viveram naquela cidade havia mais de trezentos anos. Instigando-lhe a criar outras novas.  
  
Uma moça sentada numa pedra, debaixo de um poste na esquina. Um chapéu branco, de palhinha na cabeça. Aquela lua magra sabia de histórias daquela moça. Sabia dos seus dias, dos seus mistérios. Sabia mais que Seu Dias, o motorista. O outro homem fixou o olhar naqueles olhos castanhos de cílios longos, negros. Sequer a moça olhou pra ele, mesmo assim viu seu olhar lhe olhando. E apaixonadamente apaixonou-se. Desejou ardentemente tocar naquela cascata de cabelos negros que lhes iam além de suas espáduas nuas. Aquela boca de baton vermelho. E sonhou aquela boca entreaberta que quase deixavam ver os incisivos alvos, que jamais lhe sorriram, e mesmo assim viu-a a sorrir pra ele. E ficariam manchados de vermelho quando sua boca beijasse com sofreguidão aquela boca. E sonhou sua mão de dedos longos, deslizando suavemente por entre os cabelos lisos. Se embrenhando e inebriando do perfume largado de seu colo - não teve como evitar delírios - indo impregnar-lhe as unhas bem cuidadas que desceriam pelas suas costas até encontrar a linha de sua cintura. E se vertiginaram suas vistas, enlouquecida ia sua mente, ante a contemplação daquelas belas pernas.

Seu Mario Dias desceu do carro, dirigiu-se até onde a moça estava. Isadora permaneceu calada, impávida. Nenhum dos dois tinha o que dizer um para o outro. O motorista se colocou a sua frente, e aquele pezinho lindo calçado numa sapatilha apontava para entre as pernas do motorista. Seu Dias havia sido orientado pra ir até ela. Como um cão de guarda deveria ficar apenas esperando. Devia apenas guardá-la. E aguardar sua reação, que infelizmente não veio. Então pacientemente pediu-lhe para que fosse até seu patrão. Isadora não moveu um nada. Lembrava um bibelô dos que encontramos somente em relicários finos. As pernas cruzadas uma sobre a outra. Um sinal de nascença na coxa da perna que estava por cima surgiu bem próximo a barra da saia. E aquele outro que a tudo observava disse a si mesmo que tinha que avançar. Se não quisesse que desconfiassem de alguma intenção sua, a que nem ele mesmo sabia se havia.

Entrou no beco escuro. Foi tragado pelo negrume quase insano da viela. Era uma rua sem saída. Achou bom ser abraçado por aquela acridoce escuridão. Gostou do carinho fraterno de mãe, que as trevas lhes proporcionavam, em especial naquele momento. A rua ia dar na praia. Dava pra ouvir o mar. As ondas quebrando nos rochedos do precipício, provido de parapeito. Pelo dia já havia passado por ali. Jovens casais enamorados, talvez turistas, pediam pra que lhes tirassem uma foto. Sequer pensavam no perigo que os rondavam. A maré baixa proporcionava visão magnífica. Escondida no abismo lúgubre da noite, aquela hora. Um marinheiro solitário trôpego. Mambembe veio vindo em sua direção. Um cigarro aceso o denunciou. Tragou forte o fumo e encheu de diamba a rua. Adiante seguiu o homem do mar, cambaleante. Foi obrigado a inalar o forte aroma. Cheiro que jamais lembrava o mar, nem a maresia. De noite o vento não vinha pra costa, ia. E do nada, brotou na língua um gosto de cerejas recém colhidas na primavera, intumescidas feito clitóris de mulheres damas, que raspavam os pelos pubianos com medo de contraírem piolhos. Daquele jeito ficavam parecidas com púberes meninas. E suas carnes alvas e rijas, tão docemente desejadas. E nunca, jamais se oporiam serem colocadas nuas, numa cesta de vime para serem entregues ainda naquela noite, aos deuses marinhos. Cujas orgias com belas ninfas acabariam se projetando num esplêndido drive-in soturno. Sendo a tela panorâmica, aquele mesmo giga céu diáfano. Uma vedete vestida num colant verde musgo, que delineava seu corpo esguio fixou-se numa das paredes, e chorava um choro mudo, tinha as mãos e os braços atados as costas. E suas lágrimas eram de prata e mercúrio. Exausta sentou-se sobre uma enorme serpente marinha, negra e viscosa, que mais parecia um cérebro com mil olhos que a tudo via. Ignorando o cheiro de urina dos homens que saiam da boate, a aliviarem suas bexiga ali. Na fachada uma placa luminosa em neon verde e vermelho que acendia e apagava, dizia: “Boite da Vilma, a Sereia do Mar.”

Uilson avançava numa moto a toda velocidade. Ele próprio talvez nunca se sentisse, mas era como um rei. Rei das trevas, envolvido pela negra noite, voava sobre o asfalto. Senhor da velocidade, senhor do ódio. Sedutor ódio e amor vil que nutria por Isadora naquele momento. Iria ao seu encontro, Sabia exatamente onde estava. Toda quinta-feiras nas docas.A conversa seria breve.  Teria que se decidir. Daquela noite não passava. Não mais suportava tal situação. Decidir-se: ou ficava com ele, que com muito orgulho era um simples mascate. Vendia discos na feira livre na vila dos pescadores. Teria que se decidir ou ficar definitivamente com o almofadinha do doutor Danilo. O rico odontólogo que a queria, apenas pra desfrutar do seu corpo. A queria, porem apenas como garota de programa. Voava a moto vencendo o negro asfalto, a negra noite fria. Pelo ódio empurrada e acelerada e o desejo desumano de ter a posse de um corpo.

Isadora resolveu ir até o parapeito que dava pra praia. Sabia que diante dos seus caprichos o cão de guarda do motorista iria acompanhá-la. A evitar que nada de ruim lhe acontecesse. Tivesse ela, o poder de ler pensamento não arriscaria tal empreendimento. O que pensava o motorista era pra lá de sombrio. Aquela menina significava perigo pro seu patrão. Várias foram as vezes que presenciara brigas entre eles dois. No começo tudo eram flores, depois das malditas bafejadas do diabo o amor esmorece. Se o chefe, e mesmo a esposa do patrão, lhes encarregasse de matá-la, a mataria. Bastaria a menina, tentar chantageá-los a extorquir-lhes dinheiro. Não hesitaria, em por um fim a sua vida. Infelizmente não seria a primeira vez que faria tal ato vil.  Num passado distante que ele teimava em não sepultar. Martelado dentro da sua mente, o que havia praticado. A sangue frio, simplesmente esfacelou com uma pedra o cérebro de um colega de escola. por motivo banal, um apelido nele colocado. Nunca sentiu o menor remorso por isso. Sensato seria da parte daquela moça tomar bastante cuidado.

O relógio marcava duas da madrugada quando dr. Danilo esvaziou o copo. Entornava a terceira dose de uísque puro, sem gelo. Não entendia porque Seu Mario ainda não havia chegado. O telefone móvel do motorista, avisava estar fora de área. Onde estaria aquela hora que não chegava? Sentado a uma mesa dum restaurante chique da orla, sozinho aguardava. Dali até as docas não dava mais que mil metros. Foi ao banheiro. Olhando-se no espelho passou a mão no cabelo, ajeitou o revólver na cintura. Aquilo o fazia sentir-se ainda mais másculo.

Era comum as sextas-feiras as docas amanhecerem cheia de gente. Dia de comprar pescado fresquinho no Mercado do Peixe, logo ao lado do parapeito da praia. No entanto aquela aglomeração não se fazia presente ali pra comprar nada. Perplexas as pessoas olhavam em direção ao penhasco. Feito boneca abandonada, que ninguém mais quer brincar. Jogada, contra os pontiagudos e tortuosos arrecifes. O belo, porem inanimado, corpo de Isadora, jazia.


Fabio Campos        

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