Quando Crescer...

Os dias eram os que preludiavam o final do ano.  Havia ternas lembranças de histórias de tempos idos nas mentes dos que já haviam amadurecido. Sendo fim de ano, com muita propriedade vinham. As casas, as lojas, as ruas cheias de gente. No limiar de mais uma mudança de ciclo, o que mais havia era efusão de sentimentos, de modo especial nos que detinham mais idade. O que estivera por muito guardado, nessa época aflorava, dizendo o quanto as pessoas mesmo amando tão pouco, como gostariam de serem amadas. Despejadas dos postes, das fachadas das lojas, das árvores da praça, cascatas de luzes a se derramar, inundava as calçadas. Gente alegre ia e vinha portando pacotes coloridos, vozes exaltadas. Dilúvio de cores dizia de fortes sentimentos a serem revividos.  E tudo, tinha tudo para ser muito bom.
       
A igreja, a farmácia, a loja de brinquedos. Os bares com suas toldas coloridas, lembrava Paris “A cidade Luz” da Belle Époque. Mesas nas calçadas, homens de terno e gravata, chapéus de massa, vastos bigodes, bebiam cerveja em tulipas douradas esfumaçadas de gelo. Belas damas com seus vestidos longos recompensavam as vistas masculinas com generosos decotes de colo. Cigarros finos, entre os dedos bem cuidados, ornados de jóias, finas piteiras, e a fumaça ia desenhando serpentes  que levemente subiam e sumiam, espalhando aroma de tabaco no ar. Polidamente misturando-se a perfumes cítricos e suaves. Liberados das peles dos casacos, das ricas vestes e colares brilhantes. Diríamos que daria pra tirar dali magníficas aquarelas de T. Lautrec.  Orvalhado céu de estrelas jamais intencionaria competir com esfuziantes chuva  de luzes dos brinquedos na praça onde crianças alegremente faziam a festa. 

Pedro era garçon no Bar “A Lira dos Vinte Anos” olhava pra porta da igreja, os degraus cheios de gente. Era o branco a cor predominante nas vestes. Ainda mais esfuziante que as frugais luzes das lanternas hasteadas nas mãos dos coroinhas. Dali a pouco o padre iria celebrar a última missa do ano. As luzes da nave apagadas, tornando ainda mais solene a triunfal entrada do cortejo. Somente as seis velas que representavam os dias da semana, tendo a cruz de Cristo ao meio, iluminavam o altar. E o presépio montado ao lado do sacrário recebia unicamente a tênue luzinha vermelha duma lamparina. Permanentemente acesa para lembrar que Cristo sempre presente estava. Numa tradição trazida do longínquo período medieval. Naquele tempo eram alimentadas com azeite puro de oliva, ou cera de abelha. E o coral composto por meninos celibatários que deveriam seguir a ordem no tempo determinado. Enchiam a igreja com suas vozes agudas que lembravam querubins e serafins. Apesar do barulho e do intenso movimento das ruas Pedro conseguia pensar. Pensava que quando saísse dali iria pra casa de sua avó Júlia com quem morava. De certo a encontraria ainda acordada a olhar o velho álbum de fotografias. Perguntaria se ele já havia jantado, ele diria que sim, e a aconselharia que fosse dormir. Porém ela só iria quando ele estivesse deitado. Uma das fotos permanecia debaixo do abajur no criado-mudo. Era a foto de um homem vestido de terno de linho com um chapéu na mão. Era do seu avô Francisco, a muito já havia falecido.

Jarbas o pai de Pedro, naquela manhã do primeiro dia do ano, lembrava do filho. Fazia dois anos que não se via, a trabalho fora morar noutra cidade. Tinha por tradição pagar uma promessa de todo fim de ano. Inventava uma caridade, uma penitência. Isso porque havia alcançado uma graça. Certa vez vinha pelo meio da feira, e começou a passar mal. Trôpego veio vindo pela rua Rotary. Algumas pessoas conhecidas observou que daquele jeito parecia estar bêbado. Cambaleante foi ajudado a chegar a casa. Não era efeito de bebida alcoólica, tinha acabado de sofrer um acidente vascular cerebral. Ficou prostrado na cama somente o tempo que dona Olga, a mãe de Pedro, conseguiu uma ambulância que o levaria para a Santa Casa de Misericórdia em Maceió. Passou mais de quinze dias na UTI e conseguiu se recuperar ficando algumas sequelas. Um braço esquecido, o maxilar dormente, mas a fisioterapia e sua fé em Deus, fez com que recuperasse parte dos movimentos. A promessa daquele ano era ir novamente a pé, até a pedra do urubu. Encimada da capelinha do padre Cícero. Ainda escuro sairia de casa. Levaria consigo mantimentos, porque outra vez, quando chegasse a determinado lugar deixaria estrada. Embrenharia na caatinga por mais de meia hora. Pra chegar num lugar deserto donde avistaria o casebre de Jaconias, um octogenário ermitão. Ficaria horas esperando que ele saísse pra fazer o papel dum papai Noel do sertão. Jaconias já se acostumara com aquela situação, a cada fim de ano. O dia amanhecia e poria os pés descalços dentro da mata, ia orar ao pé da cruz no alto da serra. E ao voltar encontraria sua choupana totalmente remodelada. As vasilhas lavadas, águas no pote, tudo varrido e limpo.  Novos forros de cama, roupas limpas, uma quantidade de mantimentos que lhe garantiria vários dias de fartura. Até fumo picado e fósforo aquele homem que jamais conhecera deixaria. Quando descesse da serra tudo isso encontraria no seu casebre. A única coisa que podia fazer em troca, era uma oração pra aquele que considerava um anjo da guarda. Nunca se encontraram, nunca conversaram. No entanto se conheciam tão bem. Melhor assim. Era o que ambos achavam. Melhor assim.   

No oceano celeste andorinhas, uma aqui, outra acolá dali a pouco, nadavam solitárias. Em negrito desenhavam graves notas de “si’ no ar, cortando com as tesouras de longas caldas. Enquanto cardumes de garças, militarmente atravessavam, dum lugar pra outro, levando som nenhum. Porem dava pra vir de muito longe um som de castanholas quebrando. E como vinha de muito longe também doutra dimensão vinham. E quão antigo era, antiguíssimo! E diziam dum menino de calças curtas, que ia a bodega de seu Benício, comprar cigarro pro avô, e ia tão feliz porque ganharia o troco. E compraria bengalas de açúcar raiadas de corante vermelho. Isso lá pela quarta hora da tarde, quando passava o carrinho de Seu Antonio doceiro tilintando sua campainha. Dando a lembrar um papai Noel fora de época, que só daria doces mediante um escambo de moedas.

Nas novenas de natal três Marias iriam: Das Dores, Das Virgens e Do Carmo. Cada uma com sua especialidade, a primeira pra cuidar de doente, a segunda a arranjar casamento pra moças encalhadas, menos pra ela mesma; e a terceira coitada, pegou a fama de “papa-defunto”. Eram as três filhas de Seu Lipercino, o mecânico chefe, da usina de algodão, que tanta vontade tinha de ter um filho homem, mas da “usina” de dona Umbelinda só mulher fêmea saiu.  Maria das Dores conhecia todo tipo de meizinha pra aliviar os males que afligiam os pobres, que não podiam comprar remédios de farmácia. Sabia da utilidade ou dos males que causavam cada mato existente na caatinga do sertão. A serventia da carqueja, do pau d’arco, da aroeira, do Samba Caitá, dos benefícios da gosma da Babosa. Maria das Virgens sabia duma ruma de oração. Oração pra livrar as pessoas de mau-olhado. E mesmo pra arranjar casamento. Aconselhava: era só ter uma conversa de pé de ouvido com Santo Antonio! Tinha uma pequena imagem do santinho que era pra emprestar, recomendando que no mês de junho colocasse dentro duma vasilha com água. Pra só tirar, se até o fim do mês arranjasse um noivo. Maria do Carmo muito religiosa ia a todo velório, e os doentes em leito de morte pediam aos parentes: “-Pelo amor de Deus! Não deixem Do Carmo vir me visitar!” Sua presença, era certeza de morte breve. 
       
Pedro lembrou, que com seu avô montou a lapinha e a árvore de natal de vó Júlia. Tinha só cinco anos e saiu com uma pergunta desconcertante: -Vô o que você quer ser quando crescer? A pergunta pegou o velho Francisco de surpresa. E olhando pro menino: -Quando Deus crescer e for bem grande, vou pedir pra ele que nunca deixe faltar vô pra ninguém, o ano inteiro.  


Fabio Campos

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