Medonha Noite

Era assim um cair de tarde, e as nuvens do céu se inventavam de falar de tristeza. Para isso tinham que se livrar do sol, que só falava de vigor e luz. E tudo estava como que empesteado com uma alegria quase incontida. 

Então o trovão disse, estou. O relâmpago também, eis-me aqui. E veio a chuva. Assim uma chuva feia. Com seus pingos grossos, espaçados, previsivelmente inesperada. Intrometidamente apressada. 

Borrando a tarde, afugentando as cores das flores, dos pássaros. A dizer o que não mais era prioridade. Tirou os namorados do banco da praça. Fez o velho senhor improvisar o jornal como guarda-chuva. As crianças, somente elas gostaram daquela chuva. E da mesma forma que veio se foi.

A noite, desembestou-se cheirando a terra molhada. Ainda era cedo da tarde, mesmo assim chegou. Nem um pouco surpreendente mais cedo veio. A moça ficou no alpendre, e era parte desses acontecimentos. Não podia, nem devia ser apenas mera observadora. Fazia parte de tudo como protagonista duma história, que não tinha começo, nem meio, apenas fim.  Os cílios molhados de lágrimas repousadas na foto que jazia na palma duma das mãos de seus longos dedos trêmulos. Mãos que a pouco esmerara no tocador seu longo cabelo. Enquanto seus olhos buscavam no espelho encontrar alguém tão estupidamente parecida com ela, porém não se sentia aquela, refletida lá. A boca semi-aberta os alvos incisivos mordiam o lábio inferior tornando-o túrgido, rubro. Uma palavra que teimava em não se materializar, cujas cordas vocais simplesmente se negavam concretizar, escondida no consciente, se fazia, ciente.

A brisa quente, esbaforida como bafejo de bovino. Veio vindo, carregando, como quem flutuava a alma morta da tarde. A tocar-lhe os lábios permitindo-se fundir-se com o seu hálito adocicado. Lembrava de Leonardo, com ardor. Do tempo do namoro, escondido porque seus pais de criação não consentiam. Leonardo era um soldado recém admitido na corporação. Não tinha um ano de farda, e fora designado para subdelegado da Vila Capim da Igrejinha. Administrada pelo intendente Firmino Fontes era, nomeado pelo então governador Major Luiz. E do alto de seu orgulho não aceitava que sua neta-afilhada namorasse um soldado de polícia. Pra ele, todo militar não prestava. Apesar de que precisava sempre dos seus préstimos: pra dar uma surra em cabra safado, pra dar fim a outro que andasse se metendo a besta. A falar de sua gestão, a ferro e fogo implantada. Debaixo daqueles bigodes até onde as vistas podiam alcançar, tudo que vivesse tinha que respeitá-lo.

Lembrou com muita veemência do dia que Leonardo conhecera coronel Firmino Fontes. Mais dois dias e faria uma semana que havia chegado à vila. Conheceu a professora Maria Auxiliadora por providência do acaso. A delegacia ficava quase defronte a escola. Uma troca de olhar, um cumprimento formal. Daí a pouco estavam conversando. Falaram sobre o calor, a escassez de água, e que naqueles tempos de seca, era tirada da cisterna da delegacia pra servir a cantina. Naquele quinto dia de vila, nem bem Leonardo pôs os pés dentro do cubículo onde funcionava o distrito policial, e o coronel por um dos seus capangas, mandou buscá-lo. Chegou trazendo-lhe outra montaria. Orgulhava-se de trajar aquela farda cáqui, o cinto largo, a cartucheira com a arma da corporação, os coturnos pretos, engraxados, o boné engraçado que cobria somente o cocuruto. Porem tão respeitado um soldado de polícia em todo estado,com ênfase no meio da feira. O cabelo rapado, rosto bem escanhoado. Era o ano de 1969, e ele só tinha vinte e quatro anos. Um bigode fino conservado, mais pra dar ideia de mais idade. O dia realmente muito quente, dum desses verão, seco torrado, dum céu azulino sem nuvem. De doer às vistas se o cristão se inventasse de olhar pra cara da bola de fogo que tinha nome de nota musical. Inclemente seguia o sol sua pauta de clave de si implacável. A música era a segunda paixão de Leonardo. Tinha um trompete que vez outra tirava dele uns acordes.

 O coronel se estava no alpendre. Sentado na cadeira de palhinha. E pareceu que tudo no mundo, de tão cansado, parado estava. Não se ouvia um nada. Se quer um vento de respeito, dos que assobiam forte nos ouvidos, ou mesmo um redemoinho de encher os olhos de areia, e derrubar mais folhas da craibeira na calçada. O que ainda malmente se via, era aqui e acolá se levantar uma poerinha acanhada, a dar ideia de que algo ainda estava vivo. No sertão brabo de meu Deus os viventes não entregavam os pontos assim facilmente. O coronel Fontes despira o terno e a camisa. Porem lhe cobria os peitos flácidos, forrado de fios brancos e a barriga volumosa, uma camiseta branca, de meia. Suava por todos os poros. Um cigarro branco de filtro amarelo, recém aceso pendurado no lábio. Logo formou longa ponta de cinza. O artefato apelidado de chupeta do cão, se consumia sem ser tragado. Servindo somente de incenso a espantar moscas. Os jagunços eram três negros, de raça, e de procedência pra lá de duvidosa, que pela convivência já conheciam os pantins do patrão. Com caras de cães raivosos, amestradamente vigiavam. Pra eles, aquele tipo de postura do senhorzinho só era concebida quando algo havia a ser resolvido.  O coronel sem levantar a vista, buscou um revólver taurus 38, preto com cabo de madeira, que se encontrava numa pequena mesinha ao lado da cadeira. Abriu o tambor, checou a munição, girou o cilindro, e retornou com ele a posição original. Era tudo parte de uma encenação. A raposa velha fazia o jogo do: “É bom que esse cabra saiba: quem manda aqui sou eu!”, sem precisar dizer, exatamente. Ditava sua lei com gestos comedidamente ensaiados. “-Só tenho a dizer ao senhor delegado que deixe minha neta em paz. Não a quero de namoro com um soldado de polícia.” E sem dar a menor oportunidade de seu interlocutor falar palavra, tratou de mandar o mesmo jagunço voltar com o homem da lei até o seu posto.  

Pra continuar os estudos, Maria Auxiliadora, teve que deixar a vila. Não ficou mais de seis meses e partiu. Foi morar na casa de uma irmã mais velha, no mesmo sertão, distante da vila somente alguns quilômetros. O mundo rodopiou. A professora acabou casando com um primo chamado Valdemar, que era agricultor. Com quem teria dois filhos Raquel e Rubens. Vinte anos depois estavam separados. Valdemar foi embora pro Mato Grosso, com ele foi Rubens. Raquel ficou com a mãe.

Naquela tarde de verão Maria Auxiliadora recordava. A foto na mão. Estava no terraço da casa onde morava por tantos anos. A se consumir em recordações pensava nos filhos. Rubens escreveu-lhe: tinha ido embora do Mato Grosso, fora morar com um tio em São Paulo. Prestou concurso para a polícia e aguardava o resultado. Era quase desespero, a angústia lhe invadia naquele momento ao recordar que seu filho poderia se tornar na metrópole, repleta de violência, um policial. E ainda lhe repousava na consciência o estigma da rejeição. Soldados são pessoas tão descriminadas. Veio-lhe com vigor a lembrança de Leonardo, como o esquecera.

A foto era numa praia. Ela estava de maiô listrado, com óculos escuros, e sorria, com frescor de dentes perfeitos. Ainda não escurecido pela nicotina de cigarro, que mais tarde aprenderia a fumar. Herança maldita de família, pela admiração que tinha pelos hábitos do avô. Na imagem aparecia com uma das mãos segurando um enorme chapéu de palha. Estava em pé, ao lado do ex-marido. Sério, talvez incomodado pelos trajes minúsculos se expondo. Incomum a um homem rude, do campo feito ele tal situação. Valdemar segurava firme a cintura da ex-esposa. Os dois filhos pequenos sentados na areia sorriam felizes. A pele alva que tão poucas vezes haviam exibido ao sol, daquela forma quase ofuscava.

O relógio na parede da sala de janta, uma lua cheia, de números. Três da madrugada diziam as setas pretas. De costas pro quintal, sabia do pé de manga, lá traz, falando de escuro, e mangas de vez, esperando desfrute e vento. O chão uma pracinha cimentada. O terreno com seu considerável declive. De repente um baque surdo. Oh! Alguém saltara o muro, com certeza um ladrão! A porta buscada com aflição e angústia. A chave, tinha que girar a chave! Alívio, conseguira trancar-se do malfeitor que passou correndo, no oitão da casa. Oh longa noite insone, de desespero. Medonha noite que não trazia o dia. Mas quando viesse, e com certeza viria, a frondosa mangueira a sorrir pro sol, amanheceria com menos algumas mangas na copa.


Fabio Campos 28 de Janeiro de 2015                        

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