Sedução (Party 2)

Aproximava um magnífico crepúsculo. O verão ditava suas ordens. A igrejinha, de muito grado, aceitou um último afago do sol. A coruja cruzando o céu emprestou-lhe um capucho de branco. Com seu grito de aguçar sentidos rasgou o ar dum canto a outro. Estilhaçado, semi entorpecido por alguns segundo, assim ficou o guache negro. Por um instante, muito acima de todas as cabeças, o céu experimentou o desmantelo. Cabeças de pensar, se punham a volver coisas do passado. Quão longe estavam os pensamentos, e o passado. Muito longe estavam.

Eram duras as ordens ditadas pelo verão. De rude beleza, ia revestindo o sertão, sua casa. As montanhas tal qual imensas senhoras gordas, desnudas, adormecidas. Tendo o colo alvibranco dos lagedos, o ventre de catingueira, e os pelos pubianos, verdejado de umbuzeiros e juazeiros. Deitadas languidamente em seus divãs posavam a um excêntrico artista, louco, incansável, senhor tempo. Tempo de velame e macambira, sedutores nubentes se amando. Pequenos lábios em flor se despetalando, hastes dilacerantes, desvirginando. O vento uivando, lascivamente a lamber as asas das poríferas mariposas, aturdidas de paixão. Não indo claro, além da aflição das almas. E se tudo nunca fora tão claro como parecia, por conta disso, algumas coisas eram dignas de existirem. O obséquio de ser no mundo - as coisas e os seres todos – com sofreguidão de existir e viver, viviam. O esforço desprendido pelos viventes para se manterem vivos, isso era uma das coisas dignas. E ia tudo se tornando tão obscuro, mas somente superficialmente. As nuvens que alaranjaram o alvorecer, já não eram as mesmas que avermelhavam o sol poente.

Felizmente a paz ainda era o que se almejava. Gafanhotos, grilos, aranhas, mosquitos, vaga-lumes e sapos. Nanos-habitantes suburbanos da sub-urbe. Civilização das quinas e esquinas, dos cantos de parede. Indo suas preocupações de cada dia. A dispensarem cuidados: será que vingariam o dia que ainda viria? Ora, seus futuros, só a Deus pertenciam. Não tinha como não lembrar de Mateus (6,24-33) “Por isso vos digo: Não vos inquieteis quanto à vossa vida, com o que haveis de comer ou beber, nem quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir. Porventura não é a vida mais que o alimento, e o corpo mais que o vestido? Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as. Não valeis vós mais do que elas? Qual de vós, por mais que se preocupe, pode acrescentar um só côvado a duração de sua vida? Porque vos preocupais com o vestuário? Olhai os lírios do campo; mão trabalham nem fiam! Pois Eu vos digo: Nem Salomão em toda sua magnificência, se vestiu como qualquer deles. O vosso Pai celeste bem sabe que tendes necessidade de tudo isso. Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo.”   

Meninos brincavam no Largo. Ulisses lembrou de outros tempos. Coberto de barro vermelho, o largo nem sonhava com calçamento. Os fundilhos das calças ganhavam manchas avermelhadas. Lamparinas - a esguias estacas de madeira - faziam vezes de postes. Espaçados, abrigavam chumaços de estopa embebidos em gás óleo. Pipas coloridas lá em cima - cuidavam de enfeitar com outras cores, negra paisagem celestial - a se enroscarem aos próprios fios, os únicos existentes. As meninas com seus vestidos coloridos de mangas bufantes, de muitas anáguas. Tiaras e tranças, nos cabelos bem cuidados, sentadas nos bancos, sacudiam os pés de sapatinhos. Ostentavam bonecas de porcelana ricamente ornadas, tão assemelhadas a miniaturas de si. Um dos moleques que os colegas chamavam de Elias, em troca de bolas de gude, revistas e figurinhas, descia plantando bananeira, os degraus da igreja. Batista tinha os dois incisivos da frente escuros, careados. Usava o cabelo lambido no cocuruto - muito provável aquilo fosse brilhantina - vã tentativa de assentar a carapinha. Um cinto fino, gasto, sustinha suas calças folgadas, sapatos velhos nos pés. Batista sonhava um dia tornar-se artista de circo, malabarista ou quem sabe mágico. Manoel Filho o mais alto de todos, assim como a maioria deles, era menino do mato que viera pra cidade. Negro de lábios carnudos, os incisivos separados, olhos de grandes pupilas e as pálpebras caídas davam-lhe a impressão de estar sempre grogue, sonolento. Tinha orgulho de dizer que sabia carrear, aos seis anos conduzira o primeiro carro de boi. Como nenhum daqueles sabia das coisas do campo. E tinha ainda “Berruguinha” que por mais que Ulisses se esforçasse, não deu pra lembrar o verdadeiro nome do danado. Sua fisionomia, no entanto, vinha nítida, por completa, inclusive com a verruga no queixo que atribuíra o apelido, a muito custo aceito. Só os mais velhos podiam apelidar. “Berruguinha” era menino arteiro, cabra bom na arte de aprontar presepadas. Ele e Ciço de Tereza, daria uma parelha boa de cães, capazes de botar o diabo a correr do inferno.

Lembrou-se dum dia que iam pelo caminho do sítio - na volta da escola - danaram-se a correr. Começaram uma brincadeira do “pega”. Adentraram uma vereda. Ulisses que ia a dianteira não viu um colchete fechado - acabou se jogando contra os arames - cortou o rosto em três cantos. Ganhou uma cicatriz atrás da orelha. E quando estava muito pensativo - como agora -  ficava passando o polegar com força a sentir o sulco. Lembrou-se da tia Iracema que quando era pequena também ganhou um latanho bem grande na barriga, porque teve que passar as pressas por baixo dum arame. No caso dela porem, teria sido quando seus avós fugiam de Lampião, isso foi lá pelos idos de 36, assim contavam os tios mais velhos. O pai de Manoel Filho,o negro Quincas era mascate, no meio da feira vendia pião de goiabeira, ponteira, faca peixeira, patuá, pedra-ume, cartucheira, apito de imitar “Fogo-apagô”. Aconselhava ter muito cuidado quando entrasse no mato. Cuidado com a sucuri quando fossem tomar banho no açude. Dizia: “-Elas costumam ficar pastorando e atacam justo na hora que sua caça vai beber água!... Uma vez uma Corre-Campo duma carreira que me deu, veio botar eu bem aqui no terreiro de casa!” A cobra Cipó facilmente é confundida com um galho, por isso, ao entrar na mata fechada, cuidado dobrado onde por a mão. Ciço jurava de mãos juntas que um dia viu um calango virando cobra. “-O bicho foi se esticando, esticando, daí caiu as mãozinhas, depois os pés, e pronto!”  Negro Messias aproveitou o embalo pra contar que outro dia quando estava caçando rolinha, viu perto da beira do barreiro de Seu Manoel, “-Uma cobra cascavel que veio bem devagarinho, chegou assim numa moita,  lançou o veneno numa folha e foi tomar água. Depois voltou e engoliu o veneno novamente.”

Negro Rosalvo tinha - assim como a maioria daqueles - na cara e no jeito, fortes evidências da descendência africana. Toda segunda-feira tinha a obrigação, de levar uma boiada do seu patrão, pro sítio Pai Mané, o gado ficava pastando por lá, até a quarta-feira quando era levado pra vender na feira. Quando chegava as margens do imenso açude, iam tomar água. Teve uma vez que uma jibóia enorme atacou um garrote. Rosalvo no seu instinto bravio, e de coragem, salvou o filhote de boi, matando a danada com uma faca. Tirou o couro, e da carne fez churrasco. Nesse dia a cachaça dos boiadeiros além do jabá teve mais um tira-gosto diferenciado. Uma cruz feita com dois pedaços de catingueira, na beira da estrada rodeada de pedras, assinalava o local onde o corpo do nosso amigo - vitimado por mãos assassinas - tombaria sem vida. Era uma quase noite quando ele vinha com o gado. Chovia uma dessas chuvas que encharcavam até os ossos, enquanto ribombavam trovões, chicoteavam relâmpagos. Era um gado pouco, mas eram cabeças selecionadas, os que vieram com ele naquele dia eram maus feitores, ladrões. Ainda encima do cavalo mesmo recebeu o tiro que varou-lhe o peito caiu na lama. E o mundo que já estava escuro foi ficando ainda mais treva. A última coisa que levou foi o cheiro bom de esterco nas ventas, a quentura do seu próprio sangue aquecendo suas mãos, e o mugido do gado assustado com o disparo, que foi ficando longe. Cada vez mais longe.    
    
A moça continuava se aproximando. Ulisses fez com que seu olhar subisse pelas suas pernas, enquanto vinha caminhando. E subiu pelo ventre, pelo colo. Por fim chegou suas vistas ao rosto. Fixou os seus olhos nos olhos dela. Não era possível! Aquela que vinha bem ali em sua direção era sua irmã, Ritinha! Santa Luzia alumiadora dos olhos era testemunha do que o que ele via era verdade! Valei-me meu Deuzinho do céu! E as meninas dos olhos de Ulisses - tristes meninas – emprestaram-lhe ao rosto um arroio de lágrimas. Porque era tempo de chorar.

Fabio Campos 12 de Janeiro de 2015

Aquela não era irmã de Ulisses, porem ele não sabia... (Continua na próxima semana)     


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