A Mão e o Martelo

A quaresma havia chegado. Nuvens vinham, e se quisesse, falariam de esperança, de coisas novas e sentimentos dúbios: tristeza, melancolia. E se tudo parecia confuso pouco importava isso nada mudaria o rumo das coisas. Indiferente as nossas vontades as coisas iam acontecer exatamente daquele, ou de qualquer outro jeito. E o vento vinha e - felizmente - não viera pra ficar. Não iria, porém sem deixar sua marca. E dava pra ouvir sua voz. Com nitidez colossal falava a as coisas todas. Aquele a quem fora repreendido - e a aqu’Ele - a que devia obediência, trouxe. E Tômas, na sua inefável - leveza de ser e - inocência, queria saber por que as pessoas estavam com cara de tristes. Se agora a pouco, houvera os dias frívolos, e fora tanta a alegria reinante. 

Ainda muitos ventos, muitas águas, de outros marços, iam passar pra que Tômas entendesse. Lá estavam todos na calçada esperando o táxi. Desarmados de espíritos, limpos de corpos, trajados e perfumados pra ir à missa das cinzas, e foram. Água de chuva, quem sabe, não tivesse cheiro de céu? Um cachorro todo molhado surgiu na rua, veio até a calçada. Sob o pelo do pescoço uma corrente prata, sendo um prateado tão sutil que sumia na pelagem alvíssima! E mesmo sem querer trouxe tristeza. Lágrimas de encher os olhos. E se rolassem pelo rosto, teriam somente gosto de sal? As coisas todas reveladas, mas só a alguns poucos a capacidade de entender. Aos comuns, permaneceriam ocultas. A praça tristemente silenciada. E ia a tristeza andando de mãos nos bolsos, deixando pra trás um rastro de fumo de cigarro, que punha cheiro, nas mãos, nos tocos de pelos da barba de três dias, dentro das ventas, na aba do chapéu. Mais adiante outras mãos, largadas, sem rumo certo procurando o nada. Muitos momentos daqueles um instante e uma vida inteira pra pensar. Os atos vertiginosos impulsivamente cometidos. Arrepender-se-ia? Pra que? Se já pensava no ano que viria, tentaria não agir mais daquele jeito? Com um pouco de sorte retomaria ao que era antes. Uma mão, suja de pó, segurando uma latinha de cerveja, se ia buscando ainda um pouco mais das delícias de momo, findadas. Cores tragicamente mortas jaziam no leito da rua. As cores vivas foram todas pra porta da igreja. Estavam todos lá, ouvindo a missa de tomar cinzas. 

Voltar pra casa, às vezes era a melhor opção. Preferível o refúgio da casa a rudeza de debaixo do tempo. Abrigado das vistas do céu, dava pra se ser quem quisesse. Heróis e bandidos lutavam dentro do peito numa batalha sem trégua, sem derrotados, nem vencedores. E sonhos mornos na penumbra do quarto vinham lhe fazer companhia. Sentiam-se tão fracos e pesados que não conseguiam alçar vôo. Deitavam-se manhosos por baixo dos lençóis, entre corpos e espíritos aqueciam-se. A porta do quarto meio aberta dava pra ver as crianças brincando na sala. Não queria adormecer e ter aquele sonho horrível. Dizia, que estavam em Maceió, Juliana ia andando de bicicleta, o cabelo rabo de cavalo balançando. Iam por uma longa avenida, a calçada cheia de gente, a menina pedalava feliz, despreocupada. Pouco a pouco se distanciava, e se perdia de vista. Tômas foi incitado a alcançá-la, porém também não conseguia. E chorava muito por isso. Cadê ela Tômas? A menina simplesmente evaporara. Ó quão triste a dor da perda! Meu Deus como pode acontecer isso... Que coisa terrível! Acordou suado, o coração disparado, nunca mais queria ter aquele pesadelo. Sob o clarão que vinha da janela lá estavam. Como era bom a certeza de tê-los, de poder vê-los. Tômas de frente pra quatro homens anões fortemente armados, ao lado de quatro animais igualmente de plástico rijo, revestido, de placas ricamente pigmentadas, com seus olhares ameaçadores. Faziam-se perfilados no piso esmaltado da sala. E os instruía pra uma missão árdua das quais os incumbiria. Para tal empreendimento teriam que preparar-se. O de trajes azul e verde era chamado de Tiwar, tinha um capacete reluzente que provavelmente fosse supersônico, bem como botas especiais. Estranhamente no lugar da mão direita havia uma espécie de torquês com três garras de ouro. Sua missão era proteger - com a própria vida se preciso fosse – Odin, o de vermelho e branco, que tinha uma espada e um escudo com poderes inimagináveis. O homúnculo de cabeça e vestes de aracnídeo, em posição de ataque aguardava a ordem do comandante era Balder. Finalmente Loki cujos músculos, peitoral, abdômen, bíceps, costureiros e asas fortemente ampliados, sem necessidade de anabolizantes apenas polipropileno puro.

Pois bem, a história ia de vento em popa. Dando a ideia de ser só dele, do menino Tômas. Ora, meu caro, felizmente as coisas nunca são como queremos. Nem mesmo quando o que escreve tendenciosamente procura beneficiar a apenas um protagonista. A campainha tocou. E Aika estranhou que à hora terceira da tarde já viesse o vendedor de pão! Porem não era. Olhando através do gradil da porta, Tômas viu um menino no portão. Vestia uma camisa de meia, surrada, um calção de tecido, na cabeça um boné com a estampada de Thor. Pelo tamanho viu que aquele era mais velho que ele. De fato devia ter uns nove anos. Perguntou-lhe como se chamava, respondeu que seu nome era Luan. O que queria? Disse que vendia cofres feitos de barro, que podia até brincar com eles, mas que servia mesmo era pra guardar moedas. Pediu-lhe que fosse chamar seu pai pra comprar um. Tômas preferia prolongar a conversa. Conversar com o estrangeiro era mais emocionante que adquirir um mero cofre. 

-Quem é este no seu boné? “-É Thor deus dos trovões, relâmpagos e tempestades, as árvores de carvalho, força, e proteção de todos os meninos, e dos fazendeiros. Sua arma é um martelo de guerra mágico chamado de Jolnir que ele atira contra os inimigos, nunca erra o alvo e sempre volta pra suas mãos. Percorre o mundo numa carruagem puxada por dois bodes pretos chamados de Tangrisnir e Tangrisnor. As rodas da carruagem ao rodarem nas nuvens provocavam os trovões nos céus. No castelo onde habita chamado de Thrudvang recebe todos pobres, depois que morrem aqui na terra. Considerada a mais bela das construções com mais de 1.500 acomodações, é pra onde irei um dia. Thor é respeitado na Germânia, na Escandinávia e por todas as tribos e povos viking. O deus Júpiter o homenageou dando seu nome a um dia da semana ‘Dia de Thor’, Thor’s Day ou Thursday, quinta-feira em inglês.” 

Luan devolveu a pergunta: -E esse aí na sua mão, quem é? “-É Tiwar também chamado de Tyr. O meu herói preferido, o deus das guerras. Ele participou das muitas lutas e batalhas entre os deuses nórdicos, e venceu todas. Numa delas perdeu uma das mãos. Foi assim, Loki irmão de Tyr criava um lobo chamado Fenrir que vivia solto no reinado de Asgard. Esse lobo começou a crescer e ficar tão grande que Loki temeu que viesse um dia a devorar Odin seu pai. Os deuses decidiram que Fenrir devia dali por diante viver acorrentado. Acontece que Fenrir quebrava todas as amarras com lhe eram atadas. No longínquo reinado de Vartalfein, viviam os anões ferreiros, os melhores do mundo. Com a promessa de ouro e riquezas eles concordaram em fazer uma corrente pra prender Fenrir. Ao concluir os grilhões Odin curioso quis saber de que eram feitos. De seis coisas, responderam os homenzinhos: do som que um gato faz quando caminha, da barba de uma mulher, das raízes de uma montanha, dos tendões de um urso, do hálito de um peixe e do cuspe de um pássaro. Não sendo fácil persuadir Fenrir a deixar-se amarrar um acordo foi firmado. Se ele não conseguisse se soltar, eles o soltariam. Fenrir por garantia exigiu que um deles, como prova da sinceridade, colocasse uma das mãos dentro de sua boca. O único que aceitou colocar foi Tyr. O lobo lutou ferozmente sem conseguir libertar-se. Lutou muito sem conseguir furioso decepou a mão de Tyr. O deus Urano, consagrou esse trágico dia com o Dia de Tyr, “ Tyr Day” Tuesday em inglês.”

Outra quarta-feira de cinzas como aquela na vida daqueles, talvez nunca mais houvesse, nunca mais. Só Odin pai de Thor e Tyr o deus da quarta-feira, podia dizer, pois neste dia podia interferir nos destinos. Mesmo que tudo parecesse confuso pouco importava, nada daquilo mudaria o rumo das coisas. Indiferente as nossas vontades as coisas tinham de acontecer daquele, ou de outro jeito. Luan desistiu de vender um cofre a Tômas. Virou a aba do boné pra trás. Dum puxão pra cima juntou o calção ao corpo franzino. Pegou nos braços do carrinho de mão. E seguiu rua adiante. Não sem antes, chamar um cachorro branco que estivera o tempo todo na calçada, esperando: 
“-Vamos Fenin.” 

Fabio Campos 24 de Fevereiro de 2015 

Nota: A Gravura que ilustra este conto, parte dela, foi feita por Tômas Kael (5 anos) neto do autor. 



Boneca de Trapo

Eliane estudou no grupo Escolar Padre Francisco Correia. Naquele tempo não passava duma menina, nascendo os peitos ainda. Até os treze anos a Rua de Zé Quirino, era tudo o que conhecia na vida. Seu único mundo. Aquela rua fora o ventre que lhe gerou, a puta que lhe pariu. Filha bastarda, de pai anônimo. Poderia, ser filha do açougueiro, do sapateiro, ou o dono da banca do jogo do bicho. Rua de Zé Quirino, sua casa, sua sala de estar, seu quarto, sua cozinha. As margens do Panema seu quintal. O rio, que tanto lhe deu por herança: pele morena, os olhos castanhos, os longos braços que nadaram, e nadaram aquelas águas. As pernas engrossariam a correr nas suas areias. A escalar as montanhas do Cristo redentor, e do Cruzeiro. A encher a roupa de carrapicho, as pernas de latanhos de rasga-beiço, calombos de urtiga. E os cílios, de tanto mergulho nas águas salobras, pareciam sempre molhados. 

De lá do terno passado retornou, numa foto de primeira comunhão, na igreja Sagrada Família. Se havia colocado de pé, ao lado duma fila de meninos e meninas, vestidos de branco. Em segundo plano lá estava. Os garotos trajavam ternos, gravata borboleta e calças curtas, as meninas como freiras mirins. Segurava em cada mão, um catecismo e uma vela enlaçada por uma fita vermelha. Não sendo Eliane o foco principal do flagrante, no entanto, atraía para si a atenção, pelo traje esdrúxulo, uma ínfima blusa, uma mini saia, sandálias de salto. Havia um quê de ingenuidade em seu terno semblante. De criança que não conhecera ainda a maldade humana, não em todas as suas nuanças. Sequer se percebia descriminada pelos demais que ali se encontravam. Muito embora existisse um preconceito, não de todo velado. Jamais imaginava o que o destino lhe preparava. Para sempre a guardaria na mente.

Os filhos de família tradicionais santanenses juntavam-se aos filhos da pobreza da periferia. Nos eventos cívicos e religiosos se misturavam. Desde o velho grupo escolar, onde ocupavam as mesmas bancas, sentados lado a lado. Meninos discriminavam meninas como Eliane por serem pobres. Sem saberem que meninas como ela poderiam ser sua irmã. Somente muitos anos depois ficariam sabendo que seus pais muitas vezes deixavam suas mães em casa e, na calada da noite, ia pra periferia deitar-se com pobres mulheres. E estas se submeteriam aos caprichos sexuais e teria filhas, como Eliane. Com aquelas mulheres teriam filhas, e não trariam o nome do pai na certidão de nascimento. Talvez um dia quando fosse dormir, sonhasse com um pai a pedir a benção, um pai que lhe levasse a passear na festa de Senhora Sant’Ana, e que se lembrasse do dia do seu aniversário. As semelhanças físicas com os filhos legítimos as denunciariam. E viriam as brincadeiras maldosas, as comparações. No grupo escolar, as diferenças quase se anulavam. Quase, não fosse os apelidos, de ”cabelo pichaim”, “boca de caçapa”, “Maria mulambo” que os meninos punham, em meninas como Eliane.

Estávamos no primeiro ano da década de setenta. O sertão enfrentava uma de suas piores secas. Pelas estradas que acessavam as cidades do interior nordestino, levas de retirantes. Deixavam pra trás dias de amargura, a ameaça de morrer à míngua. Preferível partir a ter as tripas puxadas pelo carcará. Virar pasto de ave de rapina, feito suas últimas cabeças de gado assim vitimadas. Pra fugir da fome e da sede implacável, mulheres virariam lavadeiras, engomadeiras, empregadas domésticas, prostitutas. Os homens estivadores, almocreves, jagunços, exímios jogadores de carta. E construíam suas rústicas moradas na periferia das cidades. Caso contrário fazia “A Triste Partida”. Pro sul do país, pra construção de Itaipu, da ponte Rio-Niterói. Seu Ozéias da bodega, depois de ver a propaganda do governo na Revista “O Cruzeiro” foi bater no meio da floresta amazônica, trabalhar na construção da Santarém-Cuibá. A nação brasileira era comandada pelo chefe das agulhas negras General Emílio Garrastazu Médici, com mão de ferro governava. O “Garrafa Azul” perseguiu todo que se mostrasse contrário a sua forma de gerir os destinos do país. Deu um fim as guerrilhas no planalto central. Com uma recessão econômica tacanha pôs freios na inflação, o consumo que já era acanhado refreou. Poucos tinham poder aquisitivo. Só a classe mais abastada podia possuir geladeira e televisão.

A propaganda do governo chegava aos mais longínquos rincões. Até mesmo nos álbuns de figurinha, nas bancas de revistas, que as crianças compravam pra colecionar e colar. Figurões do alto escalão do governo, ministros Jarbas Passarinho, Mário Andreazza, Delfin Netto virados figurinhas que iam coladas, ao lado de cantores da jovem guarda, lutadores de teleket e comediantes. Livros, revistas, almanaques eram as maiores fontes de conhecimento, lazer e entretenimento. As bancas de revistas, cafés, lanchonetes eram pontos de encontro de jovens e intelectuais.  Revistas com encartes, discos compactos, fitas k7, revistas com nus artísticos: playboy, Ele e Ela, tinham venda proibida pra menores de 18 anos, virava objeto de desejo dos meninos. Enciclopédias vendidas porta a porta, enalteciam o sesquicentenário da independência, eternizada na música de Miltinho. A Seleção Canarinha de Zagallo, virada mito, nos campos de Guadalajara. O narrador mexicano mais apaixonado por nossos craques que por seus patrícios. Lá fora ficávamos conhecidos como o país do futebol, do samba de Dorival Caymmi, das mulatas de Sargentelli, pintadas por Di Cavalcanti. Portinari retratou o sofrimento do retirante. Ter um fusca e um violão, era um sonho nacional.  As mulheres imitavam os trajes e o cabelo de Jackeline Kennedy, O homem pisando na lua, Onassis o símbolo de riqueza.  “Dona Flor e Seus Dois Maridos” da cidade de Salvador, da Bahia de todos os santos, de todos os pecados, de Jorge Amado. Leila Diniz quebrando tabus. Foi vendo e vivendo tudo isso que Eliane cresceu.

Cedo Eliane aprenderia que viver não era nada fácil. Cedo aprenderia que o mundo em que vivia, era um mundo cão. Via, sem ter direito a perguntar nada, homens de toda espécie, jogadores de baralho, boêmios, comerciantes, feirantes, entrarem na sua casa, e no dia seguinte irem embora. Homens que olhavam pra seu corpo de menina, com olhares de cobiça, de gulodices. Demorando-se propositadamente sobre seu sexo, peitos e bunda como se sevassem.  Lá dentro do Panema, bolinada seria por um rapaz afoito pra quem deu ousadia. A primeira menstruação veio quando estava brincando de pega com outras meninas. Pensou que tivesse levado um corte. A mãe explicou-lhe “-Minha filha você agora é uma moça.” Por noites teve febre, delírios, pesadelo. Sonhou com um homem negro, muito gordo, vestido de paletó e gravata com chapéu de massa na cabeça, sapatos lustrosos, anel de ouro com pedra verde no dedo. Dizia que sua mãe tinha morrido a pegava no colo e a levava. Era noite, e iam entrar num carro preto que estava estacionado a porta. Dentro do carro o chofer lhe sorria um sorriso cínico, com um dente de ouro brilhando. E queria gritar por sua mãe, mas não conseguia. 

Eliane decidiu que já era tempo de ir embora. A Rua de Zé Quirino ficara pequena, Santana do Ipanema não fazia mais, o menor sentido. Estudar pra quê? A sétima série já repetira duas vezes, cansada estava de estudos. Namorou um rapaz que tinha o apelido de “Bem-te-vi”. Com ele perdera a virgindade, também com ele provou maconha pela primeira. Afinal já fizera dezesseis anos. E com outra amiga foi morar em Maceió.

Na capital alagoana Eliane aprenderia muito mais. Se Santana do Ipanema descobrira o mundo cão. Maceió apresentou-lhe as delícias do inferno. Pouco a pouco foi se inteirando do poder que exercia sobre os homens. Poder de tirar do próprio corpo seu sustento. Decidiu que dele, e com ele, ganharia fama e fortuna. Investia parte dos ganhos em salões e academia. Em pouco tempo o que era belo, tornou-se extremo. Exuberância de seios, coxas e bunda colossal. Nada mais nela lembrava aquela cândida figura da fotografia. Queria tornar-se famosa, tanto que sua terra natal tivesse orgulho da filha ilustre. Pra isso precisava ser manchete. Mandou um aviso pra um jornalista duma emissora de tevê, dizendo que seria a primeira garota a fazer Top Less em praias Alagoanas. Hora, e local combinado. Noutra semana Eliane foi primeira página do jornal de maior circulação no estado. Passou a ser programa de celebridades, políticos e era vista frequentando festa de gente importante. Até um sambista de renome nacional compôs uma música pra ela.

“Teka rendeira, Eliane praieira/ Vamos pra Paripueira/Vamos pra Paripueira/ Vai ter sururu/Vai ter sururu/E o maré fica na beira da Lagoa de Mundaú/ Da Lagoa de Mundaú/Da Lagoa de Mundaú."

Mas o tempo cruel, vertiginoso com seu prazer mórbido, de enterrar na areia movediça do destino os mais coloridos dos sonhos. E nossa boneca de trapo novamente voltaria a ser destaque nos jornais. Desta vez, na página policial. Nua sobre uma cama de quarto de motel Eliane. Morta com três tiros.



Fabio Campos  18 de Fevereiro de 2015

As Folhas Quando Caem...

Adalberto nunca tinha passado um carnaval daqueles. Na verdade nem sabia se aquilo poderia ser considerado um carnaval. A casa era só uma choupana no meio da caatinga. Duas caídas d’águas, um alpendre escorado por toscas estacas guarnecidas de ganchos. Ornados de cordas de caruá, amolecida de tanto trabalho duro. Num canto arreios duma montaria, um relho e um chapéu de couro de boi, tudo tão gasto, ensebado. Um balaio de vime, atarefado de palma, um facão de cabo preto embainhado, um par de alpercatas Xô-boi. Dois homens Adalberto e Maurílio sentados num “Péla-porco”. Os pés cruzados embaixo do banco davam guarida pra um cachorro de pelo branco. Macerando verbo e fumo de rolo proseavam, os amigos. Coisas desinventadas por gente do mundo. Coisas que até Deus que é Deus duvidava.
   
De limo negro as telhas diziam tristeza. Uma bica esturricada de tempo, dormia pros lados do oitão esperando chuva. E quando viesse, porque em fevereiro sempre vinham, choraria a desaguar num tonel. E havia um céu perfeito a flamular de azul, sublinhado dumas nuvenzinhas...Brancas que só! Com o rei brincava de luz, não luz. Do terreiro até aonde as vistas quisessem ir tinha mundo pra ver. Tinha uma roça que não dizia nada. Com paciência de Jó, aguardaria os obreiros que num dia daqueles não tardariam. Formigas formigando a epiderme da mãe terra, caravaneavam tudo que pudesse fornecer alimento no inverno. Pros recônditos porões escuros.Morno, úmido e cheiroso ventre da mãe terra campeavam. Onde a cigarra laboriosa cantava angariando longínquos ouvidores. Mangangás nupciais cortejariam xim-xins, orquídeas e frutos dos mandacarus.

A conversa estava boa, mas era preciso dizer pra que estavam ali. Maurílio filho de Seu Claudomiro e dona Paulina, tinha nove irmãos, Claudomero, Teodorico, Teodebaldo, Teodeberto, Teodomiro, Dagoberto, Ferdemundo, Ferdinando e Betânia. Adalberto, caboclo bem afeiçoado vindo das bandas do Sítio Capim. Apareceu por ali, pra passar uma temporada de plantio de roça com os tios. Conheceu Betânia e cinco anos já fazia que haviam se casado. No mesmo dia, na mesma igreja e com o mesmo padre casou também Maurílio, com Robevânia que acabou de entrar na história. E de quebra, era prima legítima do noivo. Todos, com exceção de Maurílio, foram embora pra São Paulo. No sertão o povo tem umas crenças que devem ser respeitada, isso porque fazem parte da natureza humana. Diziam os mais velhos, que casamentos de dois parentes no mesmo dia não era coisa muito recomendada. Porque um, iria carrear pra si, todo tipo de sorte predestinada pro outro. No tempo que os amigos se casaram eram jovens, e se quer se aperceberam disso. Foram pro mundo, e cada qual, seguiu seu cada qual. 

De dito popular, em dito popular vive o sertão. Tem um que diz que, Deus não dorme. Bem diz, não dorme. Não fala em cochilo. Pois acreditando que uma vez perdida, assim, quando alta vai a madrugada, e o povo está mais desocupado de aporrinhar com seus infinitos rosários de pedidos. O Criador deve pelo menos dar um cochilo. Pois justamente entre um desses benditos cochilos, é que Leviatã aproveita pra pintar os canecos. E se conselho fosse bom não se dava vendia, mesmo assim o amigo desconfie dos que dizem: “O diabo não é tudo o que pintam.” Pois acredite, é tudo o que pintam sim, e um bocado mais. Acontece que o tempo gastou mais três lustros das histórias dos dois amigos. Adalberto tornou-se empresário do transporte alternativo. Sua modesta frota cobria linhas rodoviárias em todo o sertão. Prosperou o filho do camponês, que no passado teve dias de amargura. Uma águinha salobra escorria dos olhos quando lembrava os primeiros anos de casado. Morava numa tapera, numa situação que era de cortar coração. As histórias sofridas das canções de Luiz Gonzaga e Teixeirinha eram luxo diante do que passou. Guardara de lembrança uma foto do tempo que era fichado nas Frentes de Emergência, do governo “da Coalização Arenista” Guilherme Gracindo Soares Palmeira, o bacharel em Direito tido como o redentor da pobreza. Os sertanejos como Adalberto, à época o tinha como um homem abençoado. O suporte que dera para que a Sudene implantasse aquele programa que mataria a fome de tantos. Na foto Adalberto ao lado de outros “cassácos” assim eram apelidados, era só couro e osso. Com fé em Nosso Senhor! aquilo seria coisa do passado. Hoje gozava de uma vida confortável. Em sua chácara na praia de Miaí era onde ultimamente passava os feriados prolongados com a família, inclusive os carnavais. Acontece que deu vontade de voltar as origens e por isso estava ali, ao lado do velho amigo Maurílio que jamais saíra do sítio Pau Ferro.

Maurílio desde que casara nunca saíra dali. Uma moradia digna pra si e sua família não conseguira na vida. Juntamente com os três filhos. Dois rapazes, uma moça e a esposa Robevânia, morava na mesma tapera que dava sombra pros ossos dos seus velhos pais. Seus avós moravam distante dali só algumas braças. Quando era a tardinha sempre ia ver vó Orminda e vô Juliano. Era um casarão antigo de portas e janelas enormes lembravam os tempos coloniais. O pé direito ia lá nas alturas. E o telhado de tão pesado rangia num lamento nos dias de ventania muito forte. Ao entrar no casarão se anunciava: “-Ô de casa?” E ouvia: “-Ô de fora! Quem vem lá, que venha de paz!” Dona Orminda na penumbra da cozinha ficava olhando, sabia que era seu neto Maurílio. Parado no umbral da porta principal. Abria o ferrolho bem devagar e vinha até onde ela estava. “–Sua benção vó!” E esticava o mãozão cascudo, de dedos nodosos, de capinar roça e amansar boi brabo. “-E por que “meu fio”não mandou o homem entrar ‘tombem’?” “–Que homem vó? Vôte! Eu ando só..." "-Não senhor tinha sim um homem ali por trás de “ôcê” inda’gora.”

Domingo de carnaval, e se ouvia ainda o canto da cigarrinha, dos bem-ti-vis rodeando a casa. Os acordes de Zé Pereira forjaram-se num chiado vindo duma boca de som de um antigo rádio, em frequências de ondas médias. Robevânia a pedido de Maurílio serviu vinho ao ilustre convidado, afinal era carnaval. Um garrafão posto entre eles colocou animosidade ali. Copos tilintaram em brindes. Estalos de língua, alegria a muito não vista naquela morada chegou em sorrisos tintos. As teias de aranhas atravessadas pela luz de fretas coloriam feito confetes e serpentinas. E o pó da poeira caindo dos caibros suspenso no ar diáfano. Uma coisa Adalberto observara a esposa do amigo, continuava a mesma. Sempre a admirara. Esmerada nos gestos. Parcimoniosa no proceder. Os longos cabelos negros, sedosos, compunham belamente seu rosto. O colo gracioso. Mesmo sabendo corpo proibido, um dia a desejou. No íntimo do seu coração agora a consumia. Maurílio, Adalberto e Robevânia ganharam o caminho do açude. A banhar-se do fogo das paixões contidas. Soprando seu sopro de fazer cócegas nos ouvidos o Caboclo vermelhinho sorria. Seu sorriso cheio de dentes, e baba viscosa, luxurienta.  
     
“O profeta Natã diante do rei Davi contou-lhe a seguinte história: Dois homens, um rico e um pobre. O rico possuía muitas ovelhas, enquanto o pobre tinha apenas uma, que cuidava muito bem. Um viajante aproximou-sedo rico pedindo comida. O rico então pegou a ovelha do pobre. A única que aquele possuía, e tomando-a como se fosse sua a deu ao nômade. Enchendo-se de cólera o rei Davi esbravejou: “-Tão certo como meu Deus de Israel vive! O homem que praticou esta infâmia merece a morte! Deve ele pagar com a vida quatro vezes mais do que foi o sacrifício do cordeiro, pois praticou o que é mal aos olhos de Deus e sem o menor remorso!” Natã no entanto advertiu-o: “-É o senhor meu rei, este homem! Eis que o Senhor Deus de Israel me disse: “-Eu ungi você (Davi) rei de Israel, e o livrei das mãos de Saul. Eu o tornei mestre da casa e as esposas do mestre ficaram em seus braços. Eu dei a casa de Israel e Judá. E se isso tudo fosse pouco eu lhe daria muito mais. No entanto o que fez você? Sacrificou a Urias “o hitita” fez com que fosse ferido de morte, a fio de espada. E tomou a esposa dele como sua. Como castigo a espada jamais deixará tua morada.”  Betsabá esposa de Urias banhava-se na varanda de sua casa. Do seu terraço Davi a viu, e  desejou-a no seu coração. Mandou chamá-la até ele, e deitaram-se em coito. Disto nasceu-lhes um filho. Aquele fruto do pecado viria a perecer como castigo."  

Adalberto tinha uma pergunta mais pra Maurílio. Queria saber se o amigo não tinha ambição de crescer na vida. Sair daquele fim de mundo, ir embora. Podia até deixar Robevânia por uns tempos, com os filhos. Ir aventurar-se no Sul do país, pediria emprego a um seu irmão próspero empresário no ramo de construção. Aquele ouvia, e apenas cantarolava baixinho uma música do cantor rei das paradas que dizia: "As folhas quando caem nascem outras no lugar..." Dois mais estavam ali, embora eles não viam. Natã, que meneava a cabeça de desaprovação. E Leviatã, largueava mais e mais o asqueroso sorriso, afirmativamente. Afinal era carnaval.


Fabio Campos 10 de Fevereiro de 2015   *A gravura que ilustra este conto é uma  réplica de Óleo sobre Tela do pintor C. Clarck.      

TORPE!



Dali da areia dava pra ouvir o som do frevo, indo pelas ruas da cidade. Os clarins, o frenesi dos tambores. Sopro torpe do deus Baco. Pelo vento tangido, alucinado. Decaído das asas de Ícaro, chegavam a si. E lhes vinham sob a forma de antigas marchinhas. Reberverando ao baterem ritmadas no coração das almas folionas. A acordá-las do entorpecido sono que dormiam sorridentes, a mais de ano. As troças surgiam nos becos, e logo por outros deles eram engolidas. Debaixo de um sol agastado de luz, os blocos a brincar de colorir as coisas. A tarde de carnaval tinha todo um poder, uma magia, de facilitar as coisas. Alegravam as pedras de pisar. Donde outrora negros estrangeiros umidificados de suor na pele retinta, luzidia de sol e sal, trazido do mar. Aquelas pedras tingiram-nas um dia com seu próprio sangue. E seus corpos fizeram sombras de mesma cor, no chão, na dança de capoeira. Tingiam-na agora, com vinho do porto, com vermelho de colorau, azul de anilina, branco de maisena derramado. E brilho de pó de mico. 

Havia um quê de permissividade. Como se personagens de sonhos e fantasias sexuais de rapazes que quebraram o cabresto, se materializassem. Mulheres ébrias de amor se beijavam beijos com gosto de cerveja. Embriagados, homens e mulheres despudores aliviavam suas bexigas, sem dar-se a ocupação de esconder seus sexos das vistas dos passantes. Pegas de surpresas meninas pudicícias viravam os rostos de rubor pro lado do mar evitando a cena. A imensa faixa de areia virada em passarela, onde fantasiados banhistas desfilavam. Fantasmas de corpos esfuziantemente vivos. Mambembes, de gozos e gestos obscenos, se atiravam no mar como um amante se atira na cama na hora do amor. Ninfetas ingênuas ao mergulharem n’água inadvertidamente perdiam a parte de cima do biquíni. E corriam a cobrirem como podiam seus pequenos seios virginais. A parte de baixo da peça de banho, depois de molhada, tanta era a força de atração exercida pelo corpo, que se colava como uma outra pele. A ponto de suas vulvas intumescidas acabarem por se desenhar vivamente perante os ávidos olhos dos varões. E tão mal disfarçavam seus olhares, e os instintos de macho os denunciavam, pouco a pouco, inflamando os volumes de seus calções. 

Ninguém acudisse que o sexo no carnaval, com ênfase na praia, ditava sua lei. Mulheres de corpos esculturais em sumaríssimos biquínis a untarem o corpo de óleo bronzeador. E era tanto esmero dedicado a este ato. Como se meticolosamente encenasse uma peça de teatro onde interpretavam personagens de si mesma, e eram tão carentes de amor. E não hesitaria em se masturbar publicamente só pra chamar atenção. As mentes masculinas precavidas – desejavam ardentemente que de fato tal intenção se realizasse - por trás dos óculos raybans, lançavam olhares lancinantes, vorazes devoradores. E reteriam na retina aquela magnífica cena para usá-la dali a pouco no banheiro. Haveria deles que ali mesmo, encobertos até o pescoço pelo mar, se dava ao luxo de produzirem simulacros daquelas vaginas com suas mãos. E as ninfas aceitavam passivamente o coito imaginário, contentando-se lascívias com as libertinas lambidas do sol. Aceitando, e adorando seu caliente carinho, nos seios fartos, nas coxas eriçadas de pelos oxigenados, na bunda luzidia, apalpada pela areia. Enquanto o montículo pubiano atacado pelo ínfimo taco de pano retinha forçosamente o cheiro de fêmea. A brisa brincante de areia nos cabelos sedosos e lisos. Uma língua vermelha, de lábios carnudos a devorar com sofreguidão fálico e viril picolé, cujo estado de coisa não dando pra aguentar mais tanta carícia escorria pela mão, lambuzado gozo lácteo. 




Domingo de carnaval à madrugada. Sempre madrugada doidivana. Pura extravagância, um esbaldar-se do ser. Como se todas as regras de vida, e de mundo, merecessem serem quebradas, descumpridas. Um dar-se ao direito de deleitar-se. A negação de tudo que se era. Direito a assumir-se a duplicidade de personalidade. Homens travestidos de mulheres. Alguns de tão perfeito disfarce pondo-se a passar perfeitamente por damas. Dando a pobres observadores sóbrios, o direito a dúvida. Ainda mais quando satisfazendo a desejos secretos, o ano inteiro adormecidos, beijavam-se na boca. Alegariam depois devaneios e culpariam a diamba fumada, o pó cheirado, o lança-perfume inalado. Como num mundo surreal. Seres estranhamente levados por uma comoção frenética, psicodélica. Um manancial de ilusões, de arrojo e duma volubilidade tão fremente como suster um elefante por um fio de cabelo. Sobrando apenas o direito ao riso, ainda que falso, artificial sorriso de palhaço. 

A chácara de doutor Luiz ficava no boqueirão, na croa da enseada. Elmo, tinha só treze anos, naquele carnaval viera passar praia com os pais, ao cair da tarde foi olhar os cavalos. Saulo um negro enorme cuidava dos animais. A pedido arreou duas montarias e foram os dois cavalgar pela encosta. Até quase noite andaram. O afro descendente cuidou de banho nos cavalos. Despido a beira do grotão, o negro parecia o deus Priapo, com seu enorme pênis, mesmo em estado de repouso. Elmo ficou simplesmente estupefato. Pior não conseguia tirar os olhos de lá. Do íntimo do seu ser a curiosidade de saber que tamanho ficaria ereto. Parecendo adivinhar seus pensamentos Saulo ficou excitado, e a estrovenga criando vida própria, cresceu. Desejos no coração de ambos. O menino de pele alvinha, limpa, sedosa, como de uma moça. O negro não resistiu a tentação de seduzi-lo. Mas recebeu uma negativa. 

Prometeu que dar-lhe-ia um daqueles potros que tanto lhes fascinara. Depois de muitas tentativas o garoto cedeu, o negro o possuiu. Fizeram amor avassalador. Arrependido do que fizera Elmo ameaçou dizer ao pai o que acabara de suceder entre eles. Saulo implorou pra ele não fizesse aquilo, pois tratava-se de uma tara, algo que não podia controlar. O menino concordou. E os dois acabaram repetindo a dose. Saulo ainda fez amor com ele por mais outras vezes. Desta feita o mancebo o faria por prazer. E daí, passou a cobrar do varão outra, e mais outras vezes. Desfalecido Saulo se vê obrigado a dizer: -“Para, ou sou eu que direi a teu pai.”