Era uma vez, uma segunda-feira de
carnaval, um cara chamado Saulo de Tarso, e uma Fazenda por nome, Caminho Novo.
De certo que outros ares, outras personagens ao longo do conto, irão surgir. Mas
claro, à medida que for conveniente citá-los. Carnaval nas brenhas dos sertões costuma
passar quase despercebido. Festa, que vinha e ia embora, quase sem alterar
aquele cotidiano. O burburinho, o alarde típico, tão valorado na cidade, nos
campos rurais quasemente não chegava.
Não fosse o calendário, mais nada
dizia. Gado continuava pastando. Vaca, logo cedo sendo ordenhada. Galinhas,
patos e perus ciscando o terreiro, em busca dum complemento alimentar. Festejos momescos na vida campesina praticamente
nada diziam. As vistosas penas do pavão, remetessem talvez as plumas das
passistas das escolas de samba. No entanto sentido somente teria para os que já
vivenciaram aquilo. O chapelão do jardineiro lembraria um folião? Mas tão
somente a outro folião. A marchinha nostálgica do velho Pinduca mansamente vindo do rádio, se espraiando pelo
ar. Isso dizia que aquele, era um dia de carnaval.
Saulo de Tarso nos trajes e
trejeitos assemelhava-se a um caubói, um autêntico americano. Assim, de boa estatura,
esguio. Chapéu de massa, casaco e calça jeans, e botas. Óculos rayban, de
armação dourada. Um bigode bem cuidado no rosto alvo, escanhoado. Se
estivéssemos no velho oeste, estaria ali, um perfeito xerife. Tinha ido a vila
resolver coisas. Encostado no capô de sua Ranger vermelha, ruminava, ações. Na
carroceria, sacos de ração, latas de tintas e vernizes. No banco da cabine, isopor
de vacinas, suprimentos pra dispensa, bebidas. No bolso, extratos bancários, um
maço de cigarros. Já ia o dia declinando
quando concluiu as obrigações. Agora era empreender o caminho da volta. Uma ajeitada
no chapéu e pegou o asfalto. Agora só havia céu noturno, som do motor, farol
alumiando a estrada, mais ruminações. De
repente deu-se conta de um amigo, Durval! Lembrou-se que morava ali próximo. Nunca
mais o tinha visto. Resolveu ir visitá-lo, cedo ainda era. Pegou uma pequena estrada
de barro, mais um pouco e... “Sítio Ema”, informava um pedaço de zinco,
grosseiramente pintado. A casa e a estatueta da dita cuja, de um metro de
altura, jazia encostada na primeira viga do alpendre. Vários pés de coqueiro
anão plantados, no entorno da morada. Enorme cão negro surgiu sob a luz dos
faróis pôs-se a latir vorazmente, ameaçava avançar pro carro do intruso. Saindo
da casa Durval advertiu: “-Cala a boca Retinto!”. Grunhiu nervoso. Alegria
esfuziante dos amigos, abraços, aperto de mão. E dariam de coroar o reencontro molhando
a conversa com cerveja, boas vindas à noite, uma saudação a lua. Já passava de
meia-noite quando se despediram. E decidiram que juntos passariam a terça-feira
de carnaval. Durval estava convidado pra no outro dia, ir pela primeira vez, a
fazenda “Caminho Novo”.
Pra encontrar a casa era só pegar
a estrada que levava ao povoado Capim. Ao chegar à altura do cemitério, seguir a
primeira entrada a direita. Não tinha como errar. No dia seguinte, pela manhã,
lá se foi Durval. O carro, engolindo poeira e estrada. Avistou uma casa, mas não
era. Outra acolá, também não. Saulo tinha dito que no alpendre havia muita
samambaia. Finalmente, um imenso arco erguido em alvenaria, donde pendia uma
tabuleta de madeira informando em alto relevo: Bem-vindos à Fazenda Caminho
Novo. Uma cancela em xis, de madeira de lei. Lá estava a casa. Pareceu triste.
Calada, como que olhando. Falava de silêncio e solidão. Abandonada, porém não
estava. Do telhado pro balaústre do alpendre, bela cascata de trepadeira. O que
acabaria escondendo as janelas. A porta, imenso olho negro quadrado, observava os visitantes. O terreiro imenso, de
barro vermelho, batido, lavado pela chuva, um platô. A direita dizia paiol, trator,
máquina forrageira. À esquerda pés de tangerina, ofereciam-se aguardando
desfrute. Pés de pinhas de pequenos frutos verdosos, importunados pelos
marimbondos. Uma craibeira frondosa compunha um belo quadro. Gracioso jardim
cercado de gradil. Donde uma portinhola chamava pra ir ver a piscina, de
azulejos azul piscina.
Três lances de degraus suaves,
convidativos. Corrimão gracioso, bem arrematado oferecia apoio pra quem
quisesse abrigar-se no alpendre, ou adentrar o casarão. Duas estatuetas de cães
esguios, negros, com as orelhas levantadas, em posição de guarda. Um, de cada
lado da escadaria, olhavam pra cancela. No vão, encima da porta de entrada, uma
cabeça de alce esculpida em madeira. Um divã de vime, cadeiras, bancos de toras
de umburana de cheiro. Um centro imitava um siri. Um cangaceiro de um metro e meio de altura na
madeira esculpido. Pintado com as cores vivas do sertão. Um anjo mais alto que
um homem mediano, também de madeira, de mãos postas, de cara redonda, sorria,
pra qualquer, pra ninguém. E lá num canto, na quina do telhado, como que
escondido, um imenso cavalo de madeira, um autêntico cavalo de Tróia.
O cavalo de pau em riqueza de detalhes. As outras esculturas
tinham muitos por menores, porem não produzia metade do fascínio que aquela exercia
aos que a contemplava. Nela talvez houvesse um que a mais, de tudo. Trazia pra
quem a contemplasse, a história da mitologia da antiguíssima Grécia. A guerra
descrita por Homero, ali revivida, numa luta entre gregos e troianos por mais
de dez anos combateram. A formosa Helena esposa de Menelau rei de Esparta, raptada
pelos troianos. Paras vencer inabalável fortaleza da cidade de Tróia. Odisseu
deus de Atenas inspirou o grego Epeu a construir o equino gigante, com mais de
quarenta côvados de altura, todo de madeira. As entranhas ocas seria o ponto
chave. No seu interior se esconderiam mais de uma centena de guerreiros
espartanos. O cavalo foi ofertado ao inimigo como um presente. Para os troianos
pareceu um momento de trégua. A entrega foi feita com festa. E se
confraternizaram em torno da colossal estátua do Equus caballus de madeira, cujo
ventre carregava a derrota do inimigo. Na calada da noite da genitália do
imenso equino, destemidos gladiadores paridos dum macho pegariam de surpresa os
inimigos que haviam bebido, a maioria dormia embriagados. Mais que um combate, um
massacre. O maior já vivido por toda Tróia. Daquele dia em diante, tudo que fora
dado de presente, como engodo. Sendo intenção primeira prejudicar alguém seria considerado
um cavalo de Tróia.
Além do amigo Durval, Saulo de
Tarso aguardava outros convidados, para aquele encontro casual. Sua casa era um
santuário de arte contemporânea em pleno sertão, com obras de sua própria
autoria. Não demoraria muito, e chegaram o desembargador Ariovaldo Botelho e
esposa, com eles trouxera o poeta repentista Felisberto Correia. Os biólogos
Fanuá Soeiro e Marcius Videira com esposas e filhos, também ali aportaram. O
professor Marcel Almeida também escultor, chegou numa Van, pra completar o
paraíso, trouxe uma carga de ninfas, primores de garotas, que causariam certo
frisson nos varões. No interior da casa tudo era arte. Tudo respirava arte. Uma
libélula gigante servia de centro, uma mulher negra grudada na sua cria
representava a mãe África, um Sacy Pererê com olhos esbugalhados que mijava
aguardente de cana, todos esculpidos em madeira. Pra onde se olhasse uma bela obra
de arte vinha ao encontro.
O esplendor ainda estava pra vir.
Alguém finalmente descobriu o ateliê do artista, nele suntuosas pranchas de umburana,
com belíssimos afrescos em alto relevo, de cenas bucólicas: uma casa de
farinha, o Cristo pendido no madeiro, um tirador de coco subindo no coqueiro,
uma feira livre. Doutor Ariovaldo barganhou preço numa das peças, o cavalo de
pau. O comércio não se concretizou. Naquele instante o causídico recebeu um
telefonema dum assessor, seu filho o deputado Ariovaldo Junior havia se
envolvido num acidente na Barra de Santo Antonio, depois de dar um cavalo de
pau com sua Pagero acabou batendo noutro carro porém sem a causar vítimas,
houvera perdas materiais somente. A Polícia registrou o flagrante, o deputado
negou-se fazer o teste do bafômetro. E depois de pagar fiança foi liberado. Doutor
Ariovaldo pai, deu por encerrada sua presença ali.
O cair da tarde, veio vindo
avisar que era chegada à hora de partir. Ao som de violão, e clarinete música
de requintada qualidade calhava a despedida. E mesmo algumas marchinhas foram
cantaroladas, tudo numa só euforia. Na hora de despedir-se Fanuá, o biólogo,
teria dito ao anfitrião, que andara pelas cercanias. Numa casinha velha lá
embaixo no grotão, encontrou o caseiro, um homem negro por nome Antonio.
Enquanto capinava o mato teria lhe falado sobre o espírito de uma menina que
vagava por aquela fazenda, atormentando os vivos. Num acesso de loucura fora morta
pelo próprio pai, que dali em diante nas noites de lua cheia, virado num
lobisomem vagava. Saulo assinava suas obras pelo pseudônimo de Paulo Ney. Muito
sério disse ao naturalista. “-Acho que o amigo está enganado. Moro sozinho
nesta fazenda. Seu Antonio realmente viveu naquela casa, mas já morreu faz
muitos anos. Enquanto isso, lá na sala em meio aos quadros. Num dos óleo sobre
tela, uma menina de olhos grandes, cabelo liso, sorria.
Fabio Campos 08 de Março de 2015 O amigo Paulo Ney* é Artista Plástico.
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