Cavalo de Pau [A Paulo Ney*]

Era uma vez, uma segunda-feira de carnaval, um cara chamado Saulo de Tarso, e uma Fazenda por nome, Caminho Novo. De certo que outros ares, outras personagens ao longo do conto, irão surgir. Mas claro, à medida que for conveniente citá-los. Carnaval nas brenhas dos sertões costuma passar quase despercebido. Festa, que vinha e ia embora, quase sem alterar aquele cotidiano. O burburinho, o alarde típico, tão valorado na cidade, nos campos rurais quasemente não chegava.

Não fosse o calendário, mais nada dizia. Gado continuava pastando. Vaca, logo cedo sendo ordenhada. Galinhas, patos e perus ciscando o terreiro, em busca dum complemento alimentar.  Festejos momescos na vida campesina praticamente nada diziam. As vistosas penas do pavão, remetessem talvez as plumas das passistas das escolas de samba. No entanto sentido somente teria para os que já vivenciaram aquilo. O chapelão do jardineiro lembraria um folião? Mas tão somente a outro folião. A marchinha nostálgica do velho Pinduca  mansamente vindo do rádio, se espraiando pelo ar. Isso dizia que aquele, era um dia de carnaval.

Saulo de Tarso nos trajes e trejeitos assemelhava-se a um caubói, um autêntico americano. Assim, de boa estatura, esguio. Chapéu de massa, casaco e calça jeans, e botas. Óculos rayban, de armação dourada. Um bigode bem cuidado no rosto alvo, escanhoado. Se estivéssemos no velho oeste, estaria ali, um perfeito xerife. Tinha ido a vila resolver coisas. Encostado no capô de sua Ranger vermelha, ruminava, ações. Na carroceria, sacos de ração, latas de tintas e vernizes. No banco da cabine, isopor de vacinas, suprimentos pra dispensa, bebidas. No bolso, extratos bancários, um maço de cigarros.  Já ia o dia declinando quando concluiu as obrigações. Agora era empreender o caminho da volta. Uma ajeitada no chapéu e pegou o asfalto. Agora só havia céu noturno, som do motor, farol alumiando a estrada, mais ruminações.  De repente deu-se conta de um amigo, Durval! Lembrou-se que morava ali próximo. Nunca mais o tinha visto. Resolveu ir visitá-lo, cedo ainda era. Pegou uma pequena estrada de barro, mais um pouco e... “Sítio Ema”, informava um pedaço de zinco, grosseiramente pintado. A casa e a estatueta da dita cuja, de um metro de altura, jazia encostada na primeira viga do alpendre. Vários pés de coqueiro anão plantados, no entorno da morada. Enorme cão negro surgiu sob a luz dos faróis pôs-se a latir vorazmente, ameaçava avançar pro carro do intruso. Saindo da casa Durval advertiu: “-Cala a boca Retinto!”. Grunhiu nervoso. Alegria esfuziante dos amigos, abraços, aperto de mão. E dariam de coroar o reencontro molhando a conversa com cerveja, boas vindas à noite, uma saudação a lua. Já passava de meia-noite quando se despediram. E decidiram que juntos passariam a terça-feira de carnaval. Durval estava convidado pra no outro dia, ir pela primeira vez, a fazenda “Caminho Novo”.

Pra encontrar a casa era só pegar a estrada que levava ao povoado Capim. Ao chegar à altura do cemitério, seguir a primeira entrada a direita. Não tinha como errar. No dia seguinte, pela manhã, lá se foi Durval. O carro, engolindo poeira e estrada. Avistou uma casa, mas não era. Outra acolá, também não. Saulo tinha dito que no alpendre havia muita samambaia. Finalmente, um imenso arco erguido em alvenaria, donde pendia uma tabuleta de madeira informando em alto relevo: Bem-vindos à Fazenda Caminho Novo. Uma cancela em xis, de madeira de lei. Lá estava a casa. Pareceu triste. Calada, como que olhando. Falava de silêncio e solidão. Abandonada, porém não estava. Do telhado pro balaústre do alpendre, bela cascata de trepadeira. O que acabaria escondendo as janelas. A porta, imenso olho negro quadrado,  observava os visitantes. O terreiro imenso, de barro vermelho, batido, lavado pela chuva, um platô. A direita dizia paiol, trator, máquina forrageira. À esquerda pés de tangerina, ofereciam-se aguardando desfrute. Pés de pinhas de pequenos frutos verdosos, importunados pelos marimbondos. Uma craibeira frondosa compunha um belo quadro. Gracioso jardim cercado de gradil. Donde uma portinhola chamava pra ir ver a piscina, de azulejos azul piscina.

Três lances de degraus suaves, convidativos. Corrimão gracioso, bem arrematado oferecia apoio pra quem quisesse abrigar-se no alpendre, ou adentrar o casarão. Duas estatuetas de cães esguios, negros, com as orelhas levantadas, em posição de guarda. Um, de cada lado da escadaria, olhavam pra cancela. No vão, encima da porta de entrada, uma cabeça de alce esculpida em madeira. Um divã de vime, cadeiras, bancos de toras de umburana de cheiro. Um centro imitava um siri.  Um cangaceiro de um metro e meio de altura na madeira esculpido. Pintado com as cores vivas do sertão. Um anjo mais alto que um homem mediano, também de madeira, de mãos postas, de cara redonda, sorria, pra qualquer, pra ninguém. E lá num canto, na quina do telhado, como que escondido, um imenso cavalo de madeira, um autêntico cavalo de Tróia.
O cavalo de pau  em riqueza de detalhes. As outras esculturas tinham muitos por menores, porem não produzia metade do fascínio que aquela exercia aos que a contemplava. Nela talvez houvesse um que a mais, de tudo. Trazia pra quem a contemplasse, a história da mitologia da antiguíssima Grécia. A guerra descrita por Homero, ali revivida, numa luta entre gregos e troianos por mais de dez anos combateram. A formosa Helena esposa de Menelau rei de Esparta, raptada pelos troianos. Paras vencer inabalável fortaleza da cidade de Tróia. Odisseu deus de Atenas inspirou o grego Epeu a construir o equino gigante, com mais de quarenta côvados de altura, todo de madeira. As entranhas ocas seria o ponto chave. No seu interior se esconderiam mais de uma centena de guerreiros espartanos. O cavalo foi ofertado ao inimigo como um presente. Para os troianos pareceu um momento de trégua. A entrega foi feita com festa. E se confraternizaram em torno da colossal estátua do Equus caballus de madeira, cujo ventre carregava a derrota do inimigo. Na calada da noite da genitália do imenso equino, destemidos gladiadores paridos dum macho pegariam de surpresa os inimigos que haviam bebido, a maioria dormia embriagados. Mais que um combate, um massacre. O maior já vivido por toda Tróia. Daquele dia em diante, tudo que fora dado de presente, como engodo. Sendo intenção primeira prejudicar alguém seria considerado um cavalo de Tróia.

Além do amigo Durval, Saulo de Tarso aguardava outros convidados, para aquele encontro casual. Sua casa era um santuário de arte contemporânea em pleno sertão, com obras de sua própria autoria. Não demoraria muito, e chegaram o desembargador Ariovaldo Botelho e esposa, com eles trouxera o poeta repentista Felisberto Correia. Os biólogos Fanuá Soeiro e Marcius Videira com esposas e filhos, também ali aportaram. O professor Marcel Almeida também escultor, chegou numa Van, pra completar o paraíso, trouxe uma carga de ninfas, primores de garotas, que causariam certo frisson nos varões. No interior da casa tudo era arte. Tudo respirava arte. Uma libélula gigante servia de centro, uma mulher negra grudada na sua cria representava a mãe África, um Sacy Pererê com olhos esbugalhados que mijava aguardente de cana, todos esculpidos em madeira. Pra onde se olhasse uma bela obra de arte vinha ao encontro.

O esplendor ainda estava pra vir. Alguém finalmente descobriu o ateliê do artista, nele suntuosas pranchas de umburana, com belíssimos afrescos em alto relevo, de cenas bucólicas: uma casa de farinha, o Cristo pendido no madeiro, um tirador de coco subindo no coqueiro, uma feira livre. Doutor Ariovaldo barganhou preço numa das peças, o cavalo de pau. O comércio não se concretizou. Naquele instante o causídico recebeu um telefonema dum assessor, seu filho o deputado Ariovaldo Junior havia se envolvido num acidente na Barra de Santo Antonio, depois de dar um cavalo de pau com sua Pagero acabou batendo noutro carro porém sem a causar vítimas, houvera perdas materiais somente. A Polícia registrou o flagrante, o deputado negou-se fazer o teste do bafômetro. E depois de pagar fiança foi liberado. Doutor Ariovaldo pai, deu por encerrada sua presença ali.

O cair da tarde, veio vindo avisar que era chegada à hora de partir. Ao som de violão, e clarinete música de requintada qualidade calhava a despedida. E mesmo algumas marchinhas foram cantaroladas, tudo numa só euforia. Na hora de despedir-se Fanuá, o biólogo, teria dito ao anfitrião, que andara pelas cercanias. Numa casinha velha lá embaixo no grotão, encontrou o caseiro, um homem negro por nome Antonio. Enquanto capinava o mato teria lhe falado sobre o espírito de uma menina que vagava por aquela fazenda, atormentando os vivos. Num acesso de loucura fora morta pelo próprio pai, que dali em diante nas noites de lua cheia, virado num lobisomem vagava. Saulo assinava suas obras pelo pseudônimo de Paulo Ney. Muito sério disse ao naturalista. “-Acho que o amigo está enganado. Moro sozinho nesta fazenda. Seu Antonio realmente viveu naquela casa, mas já morreu faz muitos anos. Enquanto isso, lá na sala em meio aos quadros. Num dos óleo sobre tela, uma menina de olhos grandes, cabelo liso, sorria.

Fabio Campos   08 de Março de 2015     O amigo Paulo Ney* é Artista Plástico.                        

                  

Nenhum comentário:

Postar um comentário