Everaldo nasceu no sítio Mulungu.
Os verdes anos, os melhores de sua vida, viveram-nos lá. Ao lado dos pais, e
seis irmãos. Muitos anos depois, casou e teve que partir. A tapera onde morava levou,
consigo, dentro dos olhos levou. E quando lhe invadia a saudade, as lágrimas
vinham - com gosto de barro vinha - da velha casinha de taipa onde nascera. O
cheiro de catingueira engendrou na pele. Tanto, que quando realizava trabalho
pesado, suava suor com cheiro de mato. O sertão, pra onde quer que fosse levava
no corpo, nos momos, trejeitos. Permaneceram-lhe pra sempre, as manias dum sertanejo
legítimo. Da mãe caatinga às manhas, eternamente parte de si. Se dependesse
dele nunca sairia. Transmitiria por herança, pros filhos, assim esperava. Uma
folha de juá mastigava de manhãzinha. Depois do café um talo de capim entre os
dentes. Dum canivete jamais se apartava.
A vida na cidade não tinha graça
nenhuma. À tardinha, de cócoras na porta de casa. Iam às vistas em busca do
pôr-do-sol. Desmanchava um cigarro manufaturado, só pra ter o prazer de
refazê-lo, num pedaço de palha de milho sequinho. Era uma das formas de voltar
aos bons tempos da roça. Estudos fora segundo plano, sequer terminaria o
fundamental. A leitura pouca, dera ainda pra conseguir a carteira de habilitação.
Um emprego de motorista da prefeitura veio através do padrinho, o vice-prefeito.
Os tempos de roceiro foram ficando cada vez mais distante. Terno passado de
infância e juventude, que jamais esqueceria. Conheceu Ana Lúcia brava sertaneja
com quem casaria. Três filhos machos Vandeilson, Vanderlanio e Vadiclebson. A
depender dela, mais um filho viria. No caso uma menina, pra encerrar a
carreira. E veio a gravidez desejada, mas no quinto mês de gestação acontecimentos
estranhos passaram a ocorrer dentro de casa. A caixa d’água do banheiro rachou
e desabou causando alvoroço. Nesse dia, Ana foi parar no hospital, mas foi só
um susto. Exatamente um mês depois um curto-circuito na tomada do ventilador
dentro quarto, provocou um incêndio, e queimou todo o enxoval do bebê que ainda
estava pra vir ao mundo. Já ia o sétimo mês da gestação, e um estouro da
válvula de segurança duma panela de pressão, causou-lhe mais um susto grande.
Dessa vez foi forte demais, e Ana acabou perdendo a que seria a única filha
mulher.
As coisas aos poucos foram
tomando seu rumo. Determinados acontecimentos são como um puxão no freio de mão,
nas estribeiras do mundo. Mas não demorava muito, e a bola azul de carregar
gente nas costas, continuava sua alucinada viagem. Vagabunda, a dar voltas, e
mais voltas, em torno do sol, enquanto redemoinhava sobre si mesmo lentamente.
Os filhos de Everaldo reféns do processo evolutivo da espécie, pouco a pouco
iam definindo a estatura dos seus corpos. Ia o ciclo da vida cumprindo seu
papel. Uma coisa dava pra perceber nenhum dos três puxara ao pai. Era de se
esperar que filhos de sertanejo viessem a gostar de passarinho cantador, na
gaiola. Pegar alçapão e alpiste e ir lá pra várzea do riacho. Petecar ave de
arribação com balas de barro de louça, endurecidas, quaradas ao sol no paredão
do açude. Armar aratacas e arapucas pra pegar preá e mocó. Nas noites de lua
fachear codorna e nambu. Gostar de ouvir história de Pedro Malazarte,
Cacão-de-fogo, Mata-Sete e Camões. História do compadre e da comadre que
traíram seus parceiros e viraram fogo corredor. Àqueles meninos se quer se
animavam correr vaquejada, correr numa corrida de argola, ou na corrida de
mourão, uma pega de boi no mato nem pensar. Sentir prazer de paramentar-se com
as vestes próprias do vaqueiro: perneiras, peitoral, botas guarnecidas de esporas.
Ostentar vistoso chapéu de couro, jibão, chicote e luvas de couro cru. Montar
um belo quarto-de-milha. Se posicionar na portinhola do jiquí ladeado dum bom
bate-esteira. Correr a derrubar o boi na faixa, e ouvir o locutor anunciar
“-Valeu boi!”. Tirar um som dum berrante, aboiar, tirar um verso, ao badalar dum
chocalho. Tirar umbu, na semana santa. Assar milho na fogueira do São João.
Tirar maturi de caju, quando vinha o fim do ano. Nenhum dos três teria dado ao pai, o prazer de
gostar das coisas do mato.
É certo que Everaldo e Ana queriam
mesmo que os meninos estudassem, e se formassem. Pra não suceder com eles o que
lhes ocorrera, emprego a custa de favores. Da promessa dum político Ana tornou-se
serviçal do Tribunal de Justiça. Vandeilson o mais velho, conseguiu um emprego
de técnico de informática no município, aproveitou o embalo e casou. Os outros
dois em casa dos pais continuavam. Como não tiveram o mesmo tipo de criação, fora
de suas presenças costumavam caçoar o jeito caipira dos pais. Pior, davam-se o
direito de ralhar palavras que eles pronunciavam ao jeito simples do linguajar
matuto. Vanderlanio chegou um dia dizendo que ia fazer uma tatuagem dum
unicórnio alado no braço. O pai ao ver o rascunho do desenho escandalizado
disse: “-Prefiro te ver morto! A ver um filho meu virado num cavalo do cão!” O rapaz
não se conteve, caiu na gargalhada ali mesmo, na frente dele. Levou uma tapa
por cima do toitiço que precisaria de compressa pra aliviar a luxação. Naquela
noite, mais calmo Everaldo, chamou Vanderlanio, e foi ter uma conversa com ele.
Disse-lhe que quando tinha a idade dele filho respeitava o pai. E falou de
alguns episódios que lhe ocorreu quando rapaz. “-Uma terça-feira de carnaval,
seu avô soube, lá no sítio Mulungu, que eu estava na vila bêbado, todo melado
de pó ‘parecendo um macaco’. Foi me buscar. Voltei amarrado, atravessado na
garupa do cavalo. Levei uma surra de urtiga. De outra vez, foi bater na escola
porque soube que eu tinha brigado com um menino. Nesse dia, fui amarrado no
tronco daquele pé de mulungu que tem até hoje atrás de casa, apanhei com o
relho de amansar os bois de arado, cada lapada voava uma tira de couro das
costas.
“-Sua avó, era uma mulher muito
sabida. Gostava de ler, e lia muitos livros. Chegou a trabalhar como professora
pra Delmiro Gouveia, o homem mais rico do sertão na época. Naquele tempo já se falava
duma seita chamada Nova Era, que seria combatida pela Ordem dos Cavaleiros de
Cristo, também chamados de Cavaleiros Templários. A Nova Era pregava a anarquia,
o comunismo, a heresia e praticavam sodomia. Tudo coisa do demônio. Seus
seguidores defendiam a negação de Cristo, dos Evangelhos, da bíblia, dos
sacramentos da igreja. A favor do enriquecimento a qualquer custo, mesmo de
vida inocentes, em rituais satânicos. E se reconheciam uns aos outros, por
tatuagens no corpo, justo figuras como esta. Eles estão presentes em grandes
empresas, em bancos internacionais, partidos políticos, emissoras de tevê. As cores, sempre o preto e o branco.
Outro dia fui um aniversário do filho de um amigo meu, e fiquei chocado, ao ver
que ao invés de cores alegres, de desenhos animados. Toda decoração eram
imagens macabras: cabeças de caveiras, cobras, aranhas, esqueletos. Deram de
presente ao filho, de apenas oito anos, o
direito de fazer uma tatuagem quando completasse onze, que já havia até
escolhido o que tatuar. Não se passaram mais de seis meses depois da tatuagem, e a criança contraiu uma doença que nenhum
médico descobria o que era. Em menos de um ano morreu. Depois o pai caiu em
depressão, matou a mãe e se matou. O demônio teria vindo buscar, mais dos seus
cavalos. Precisava para cavalgá-los nas profundas do inferno. Viu aquelas
execuções que apareceram na televisão como estavam vestidos os executores? É no
Islã que fica a sede da seita. Pode pesquisar “Cavalo do Cão” e você mesmo vai
descobrir.”
Vanderlanio pesquisou sim senhor.
Mas o que encontrou foi: “Cavalo do Cão, nome científico “Pepsis ruficornis” da
família dos pompilídeos é um inseto da classe das vespas. Locomove-se tanto no
ar, como na terra. Sua picada é bastante dolorida, a peçonha age em questão de
milésimos de segundo. Chega a causar paralisia do membro atingido. É predador
natural da aranha. Ataca o inseto inimigo, com sua picada paralisa-o. Sua presa
serve como alimento dele e de suas larvas.”
De nada serviram os conselhos de
Everaldo. Primeiro Vanderlanio, depois os outros dois irmãos. Pois acharam
legal, e cada um fez, nos braços, pescoço e costas, pelo menos três tatuagens.
Cobras, raios, feras e monstros que eles mesmos não tiveram o menor interesse
de saber o que simbolizavam. Um domingo desses duas Vans foram contratadas, pra
irem ver o time do Canarinho, o de maior
destaque no sertão, jogar com o alvinegro, maior da região fumajeira, no
agreste. Os dois transportes alternativos acabaram se envolvendo num grave
acidente. Cinco pessoas morreram. Três deles os filhos de Everaldo. Os outros
dois também tinham tatuagens.
Fabio Campos 02 de Março de 2015
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