Cavalo Marinho

Era o ano de 1986. Os dias falavam de quaresma. Na estação rodoviária de Maceió, exatas 14 horas, um ônibus, da Auto Viação Nossa Senhora da Piedade, acabara de deixar a plataforma A-4. A bandeira indicava o destino, a cidade de Porto de Pedras, litoral norte do estado. Os que permaneciam ali. Sentados nos bancos de concreto, ou debruçados no parapeito do amplo salão de espera. Acabaram assistindo a uma cena comum, pra aquela ocasião. Um rapaz, camiseta preta, calça jeans, tênis branco, uma bolsa camuflada às costas. Corria e acenava, mas infelizmente não deu. Vã tentativa, de alcançar o coletivo.

Rui Junior era de Palmeira dos Índios. No entanto, desde a infância vivera e crescera, no bairro do Prado, se considerava um maceionse. Jovem universitário do curso de Química da Ufal. Óculos de grau de aro leve, livros, revistas, walkman, fones de ouvido. Na camiseta preta estampado o símbolo dos Rolling Stones, a escrota língua da banda de rock americana. Na cidade praieira, do norte do estado, pra onde pretendia ir, assumiria a cadeira de professor de Química, de alunos do antigo Colegial, na Escola Nossa Senhora da Glória. Ainda ouvindo música, buscou o guichê da empresa para remarcar o embarque. A viajem acabou ficando para às 17 horas. No lanche do quiosque acabou conhecendo Farnel Cabús, outro professor que por vias do acaso, ia pro mesmo destino, ensinar Ciências, na mesma escola. Foi só o ônibus deixar a capital, e o céu desabou. Chuva torrencial, impetuosa veio, cravejando de relâmpagos e trovões o anuviado pano negro da noite, avizinhada. Os faróis dos carros, luzes refratárias, na pista molhada. Determinados trechos totalmente alagado, muita cautela exigia dos motoristas. Um caminhão tombado, vinha em sentido contrário. Viaturas piscando, luzes cor de sangue, policiais tentavam, a quase impossível tarefa de, manter o tráfego fluindo. Histórias vinham contadas pelas imagens que passava como filme, através da janela do automóvel comunitário. Um grupo de homens e mulheres seguiam pelo acostamento. Donde viriam? Pra onde iriam? Pelos trajes, de certo do corte da cana. Chapéu na cabeça, lenço amarrado em baixo do queixo, botas sete-léguas. Nas mãos, marmitas, moringas d’água, foice.

A estrada, os carros, gente correndo, ou simplesmente, caminhando na chuva. Movimento intenso, iminência de novos acidentes.  O professor de química pegara no sono. O de ciências rememorava uma dinâmica, que utilizaria com os alunos, pra quebrar o gelo do primeiro contato. Falaria de como o mundo, vive cobrando-nos posturas, comportamentos. Sendo ideal que estejamos prontos para toda e qualquer situação. Diante disso proporia: “Imaginemos que vocês se submeteram a um teste para uma vaga de um emprego, qualquer. Ao término da correção de uma prova escrita, concluiu-se que todos vocês se saíram muito bem. Então o gerente diante desse impasse encarregaria o psicólogo de resolver tal situação. Aquele profissional faria uma proposta: Façamos o seguinte, eu vou contar uma história a vocês, ao final, faço uma pergunta, quem responder corretamente fica com a vaga do emprego! Topam? Todos concordaram: Um rapaz muito rico vinha numa auto-pista, num dos seus possantes carros de corrida. Neste, cabia apenas o motorista e apenas mais um passageiro. De repente ele avista um abrigo desses que as pessoas ficam esperando carros, e o que vê: uma velhinha (tremendo de frio), um médico (que reconheceu, um dia salvou-lhe a vida), e uma garota linda (perfeita, a ‘mina’ dos seus sonhos!). E a pergunta: A quem o rapaz daria carona?” E claro, depois de ouvir as diversas opiniões, concluiria que somente ganharia a suposta vaga de emprego, quem respondesse da seguinte maneira: o rapaz cederia o carro ao médico, que iria embora com a velhinha. E o moço ficaria conquistando o grande amor de seus sonhos.

De repente o ônibus parou. Homens trajando coletes pretos, bastante nervosos, escopetas em punho entraram impetuosamente, revistando passageiros. Exigindo, um a um, documentos de identificação. Sem entender patavina, foram todos, forçosamente, obrigados a apresentar àqueles, algo que permitisse serem identificados. O professor de química foi acordado, sendo cutucado no ombro pelo cano de uma espingarda calibre doze. Achando que ainda sonhava, sorriu pro incauto policial, sem saber que espécie de brincadeira era aquela. Não gostando da forma como o pobre rapaz reagira à abordagem, o agente civil colocando o dedo no gatilho e apontando-lhe a arma, esbravejou que lhe apresentasse documentos, sob pena de ser detido se a ordem não fosse imediatamente obedecida. Pior pra Rui, o documento que portava naquele momento, era nenhum. Acostumara-se a sair de casa, sem lenço nem documento. Pra ele isso era estilo de vida, do tipo que achava que até um relógio de pulso aprisionava, tirava-lhe a liberdade. Por isso se desvencilhava de tudo que significasse limites. Era dos que acreditava na tão utópica “sociedade alternativa” propalada pelo filósofo de vanguarda, Raul Seixas. Pra desespero de todos, teve que descer do ônibus. Estarrecidos ficaram todos, sem nada poder fazer. O agente policial sequer esclareceu aos que continuaram no ônibus, de que àquela blitz era uma tentativa de capturar uns bandidos que acabara de assaltar um banco na capital, os envolvidos no crime evadiram para aquelas imediações. E pra polícia, qualquer indivíduo sem documento, passava da condição de suspeito, pra um criminoso em potencial.  Rui passaria quase toda a noite no Distrito Policial do Jacintinho, tentando provar sua inocência. Somente depois de conseguir um contato telefônico, o mal-entendido foi desfeito. Por volta das 3 da manhã seu pai foi buscá-lo.

Muitas coisas, ainda mais intrigantes, estavam para acontecer. O ônibus que Rui perdera na estação rodoviária, caiu no rio. Pensou: antes ser preso que morrer afogado. No percurso havia a travessia de balsa pelo rio Santo Antonio Grande, na Barra de Santo Antonio. A tempestade, o mal tempo, tanto balançou a embarcação, o coletivo cheio de passageiro rebentou as correntes que o segurava, e acabou caindo dentro do rio. Gritos de desespero se ouviram naquele prelúdio de noite. Desesperada tentativa de resgate, aflição, demora  pra chegar o guindaste, pescadores mergulhando no fundo, botes salva-vidas, homens rãs, médicos legistas, peritos. Corpos sem vida, molhados, iam sendo alinhados no cais. Tenebrosa noite, pedidos de socorro sufocados pelo ribombar dos trovões, entre o aguaceiro diluviano se fizera ouvir.
            
Enfim vieram dias de sol. Paz sobre as telhas das casas, diziam mais que simplesmente telhares. Aqueles beirais, suntuosos ou singelos, contavam histórias. Histórias de para sempre, ou de nunca mais. De nunca mais voltar os tempos dantes, de para sempre ficarem na memória. Velhos conhecidos de uns para os outros. Seu Belo na porta da bodega, de batentes altos. O velho General conversando com Seu Djalma, oficial de justiça. Os olhares convergiam todos, ora pro mar, ora pra porta da Barbearia de Rubens.  A pequenina igreja de Nossa Senhora da Piedade, branca e azul claro, muda, conversava com o mar. A ladeira antiga, ia subindo e não tinha volta pra quem ia dentro do caixão, a caminho do cemitério. Dona Íris de cabelos loiros, sentada a porta de casa na cadeira de balanço, quando fosse mais tarde iria comprar pão na padaria de Amaro. Professor Sérgio, tinha pranchas de surf, um bugue, e no seu aquário, tinha cavalos marinho. Quando um deles morreu resolveu pesquisar. “Hippocampus gênero de peixe das águas marinhas temperadas e tropicais pertencentes à família Syngnathidae. Caracterizam-se por possuírem uma cabeça alongada, com filamentos que lembram a crina dum cavalo. Possuem mimetismo igual ao camaleão. Eles conseguem mexer os olhos independentemente um do outro. Nadam com o corpo na vertical, movimentando as barbatanas. Crescem até no máximo 15 cm e pesam entre 50 e 100 gramas. Vivem em regiões de clima temperado e tropical. Os machos são os responsáveis pela reprodução, que só ocorre na natureza. Conseguem viver em aquários, contanto que seja abastecido de água marinha e receba cuidados especiais, de alguém que os ame.”

Tão bom ir a Praia do Patacho, caminhar na areia, catar conchinhas. Coisas instigantes restavam ainda para serem esclarecidas. Os nomes de pontos estratégicos da cidade, certa inquietude causaria nos professores estrangeiros: Curtumes, Laje, Tatuamunha, Salinas, Ilha da Croa.  Patacho era barco à vela equipado de dois mastros, do período seiscentista. Sempre que tinham oportunidade conversavam com os pescadores. Na tempestuosa noite do dia 17 de março de 1715. Vindo de Natal, terra dos índios Potiguares, indo pra Nova Cabrália, atual Porto Seguro na Bahia. Depois de colidir nos arrecifes, bem ali, naufragara o patacho St. Clement. Levava uma carga de sal, toras de madeira, e um canhão do forte dos Reis Magos. Havia quatro tripulantes, e seis passageiros, escravos. Gritos de desespero se ouviram naquele prelúdio de noite. Tenebrosa noite. Pedidos de socorro sufocados pelo ribombar dos trovões, e clarear dos relâmpagos. E o aguaceiro semelhava o diluviano. Ainda agora se fizera ver e ouvir. Tudo como antes, se fizera.

Fabio Campos  16 de Março de 2015


*Lage e Patacho, são praias, no município de Porto de Pedras. As duas de areias claras, águas translúcidas e coqueiro vistoso ao fundo. Quase desertas e perfeitas para um dia de sossego. É só andar uma centena de metros até chegar às piscinas naturais. ( www.viajeaqui.abril.com.br)  



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