Juvenal era assim, um homem
montado a cavalo. Porque tem pessoas, que nos vem. E lembramos pelo que faziam
no mais da vida. Deles que nem sabemos se entre os viventes ainda habita. Outras
coisas mais acabam vindo, de como se trajava, os ambientes que gostava de frequentar.
Chegam-nos por fim, o caráter, a personalidade, os trejeitos. Se a muito não vemos,
remetemo-nos irremediável, a uma imagem concebida. Nosso personagem era assim
por se dizer, uma pessoa difícil. Nesse lastro de mundo, que Deus fez pra ajuntar
miséria, chamado de sertão, quando se falava duma pessoa feito Juvenal, não
raro, as pessoas se benziam. E com os nós dos dedos batiam na madeira, volvendo
ao santo de devoção, um pedido, para que longe de si mantivesse o que tinha
vindo em pensamento.
Quando isso, porém não era
possível, então diriam: “Quanto mais eu rezo mais assombração me aparece.” E lá
estava Juvenal montado no seu cavalo. Certeza tinham os que viam, não se tratava
de nenhuma visão do outro mundo. Cavalo e cavaleiro, tudo muito real. Aliás,
real demais. O bodum exalado, a capa de poeira volvida sobre si, o toque-toque
dos cascos do equino, arrancando lascas do terreno de cascalho. Por mais que nunca
tenham consciência disso, o que estar montado exerce empatia de imponência, de
respeito, sobre os que não montam. Sendo que animais e seus donos possuem certa
simbiose. Como se um ao outro entendessem o pensamento. Rastros de identidade
no caráter e mesmo de semelhanças físicas se percebia. Nas crinas longa e
negra, nas canelas finas, ao tempo, rijos músculos, bronzeados de sol. Suor e
urina acidificando o couro, os pelos, os apetrechos de um, as vestimentas do
outro. Num trote preguiçoso porque não havia necessidade de marcha mais
desarnada, não naquele momento. Se lhes perguntasse não saberia dizer, de
certeza, porque seguia. Acompanhava o cortejo da via sacra, em plena
sexta-feira santa. A encenação da paixão de Cristo. Numa frieza quase desumana,
como um ser doutro planeta. Como se os passos sofrido de Jesus, ainda que numa encenação,
causasse a menor estranheza. Um dos centuriões de Pilatos que ia de largo,
evitando que o cavalo pisasse alguém da multidão sequer lembrava. Aqueles ao
menos demonstravam ira, escarneciam. Não era apenas a certeza de que tudo era
de mentira, que um nada de sentimento esboçava. Interessava-lhe entender porque
as pessoas faziam caras de pena, diante daquelas cenas sabidamente simuladas. Se
não sofria de verdade, não entendia. Uma coisa ninguém sabia, Juvenal tinha
visões.
Dom Quixote de La Mancha. Era
isso! Talvez estivéssemos ali, em pleno sertão nordestino, diante do herói,
anti-herói de Cervantes. Dom Quixote e seu cavalo Rocinante, vivendo suas
peripécias em plena selva branca. Seu fiel escudeiro Sancho Pança, não sendo de
carne e osso, um fantasma, com quem conversava a todo tempo. O homúnculo do
burrico, na verdade seu subconsciente, a que suas atitudes, ora aconselhava,
ora recriminava. Não saber ler Juvenal, compensava com uma memória prodigiosa.
Se ia pra feira da Vila, ficava horas a ouvir os vendedores de livretos de
cordel, e as incríveis narrativas das aventuras, de Davi e Golias, Sansão e
Dalila. Do príncipe Romuldo, a loba Rosadina, e a princesa Teodora. Ouvia e
memorizava verso por verso, uma vez retornado pra sua casinha nuns cafundós
onde Judas esquecera as botas. Ao cair
da noite, hora de namorar a lua, de tomar banho de estrelas, coroava tais
momentos repetindo com precisão fidedigna para os seus, as histórias ouvida dos
mercadores de palavras cantadas. Aragão e Catalunha, pra nós, eram os povoados
de Piau e Caboclo. As incursões do nosso personagem tinham por cenário o vaso
da Catarina, as margens do “velho Chico” na parte cheia de “Canyos”. Juvenal
dedicava particular atenção aos modos das pessoas, interessava-lhe o
comportamento humano. Fascinava entender particularmente, a raiva, o rancor, o ódio.
Que dor doía mais, a dor física ou a do coração? Curiava saber por que ele
nunca sentira tais coisas? Não porque não quisesse, queria até mesmo um dia sentir.
Já se envolvera em brigas. Acabaria tornando-se assassino por conta de uma. Num
dia de feira que tirou pra beber, dentro do cabaré de Zuleide e Gracinha. Se
encontrou com Mauro que tinha o apelido de Lobinho, um fazia companhia ao outro.
Exaltados os ânimos começaram a se estranhar. De verdade estavam com o cão no
couro, perdeu as estribeiras Lobinho, e atacou com uma faca o companheiro, de
mesa de bar. Defendendo-se Juvenal, com a mesma faca matou o cabra. Mas esse
nem fora o primeiro, nem seu último crime.
Napoleão e seu cavalo Le Visir!
De fato era com quem Juvenal e Soberano pareciam. Além de gostar de cavalos, outras semelhanças
mais, vamos encontrar entre o imperador Francês e nosso camponês. Na estatura,
na cor da pele, no cabelo revolto. De certo que o de cá, não nascera em família
nobre, no entanto como aquele, fora o segundo dentre os oito filhos que seus
pais, José Maria e dona Otília da Conceição teria posto no mundo. Com muito
sacrifício criaram: José, Juvenal, Luciene, Elisa, Luiz, Pauliano, Carolina e Jerônimo.
O caráter rebelde e indisciplinado rendeu-lhes castigos severos, Por
desobediência a ordens paternas, amargaria noites e dias trancado num quarto
sem comer. Assim como o monarca, nascera no dia 21 de julho, duzentos anos
apenas separava os nascedouros, 1971. Mania tinha de andar com a mão sobre o
abdômen. Sem com isso tivesse, como aquele, problemas de úlcera estomacal, mas unicamente
para manter contato com seu segundo maior amigo, o revólver calibre 38,
carregado de balas. Com a máquina de fazer buraco em gente, mandou uns tantos
de almas sebosas pra “Terra dos Pés juntos”. Encabeçou esse rosário macabro, um
preto velho, metido a curador. Foi assim, um dia dona Otília foi tirar barro de
louça pra fazer umas panelas e acabou mordida por uma cobra venenosa. O
tornozelo inchou na mesma hora, ficou preto da cor de carvão. Uma vez em casa,
colocou encima do ferimento seiva das folhas de barbatimão e a gosma da Babosa.
Tonta e muito fraca, prostrada ficou numa cama. Deram-lhe de beber um chá de
jalapa, que muito pouco adiantou. Se queimando em febre, trouxeram um rezador que
atendia na feira do povoado Caboclo. O preto velho aprontou um remédio que
incluía óleo de baleia, pó da canela seca de Siriema, espinhas do peixe Cará,
pena de papagaio novo que nunca falou. Tudo isso tinha o benzedor. Já fedida
estava a ferida, deu gangrena. Então colocou raspa do entre casca do mulungu e
enrolou com um pedaço de pano branco contendo maniva da mandioca brava. Depois
de três dias delirando dona Otília morreu. Juvenal simplesmente esperou o
sábado. Assim que o negro chegou pra começar o dia, nem bem armou a barraca,
recebeu inteirinha a descarga do revólver. Seis tiros na caixa dos peitos.
Juvenal tranquilamente saiu caminhando, montou Soberano e se foi. O que sentia
era satisfação do dever cumprido. Certo de ter praticado justiça.
Alexandre “O Grande”, mais que a
uma mulher formosa, amava Bucéfalo seu cavalo. De igual sentimento devotava
Juvenal por Soberano. Eram reflexos um do outro, simplesmente extensão e reflexos.
Dizem que Alexandre tanta paixão sentiu ao ver o cavalo pela primeira vez, selvagem ainda cavalgando nos prados no meio de um tropel, que passou três dias
seguindo-o e apenas observando-o. Uma vez capturado preferiu ele mesmo domar.
Sofreu ao tentar montá-lo, descobriria tempos depois que ele se assustava com a
própria sombra. Entre Juvenal e Soberano ocorreu exatamente o contrário, o
cavalo que era de outro dono ao vê-lo cismou de segui-lo. Juvenal era desses matutos
arredios que se espantava com qualquer coisa. Achou que aquele cavalo devia estar
possuído, e que tivesse parte com o tinhoso.
Um dia estava tudo muito
tranquilo, uma paz que aqueles que já cometeram coisas graves ficam assim muito
ressabiados, preparado pro pior. E sempre acaba acontecendo. Mataram Seu José Maria Adonias
pai de Juvenal. Pensou logo nos seus desafetos. Mas descobriu-se que havia sido por questões de
demarcação de terras, entre vizinhos. Juvenal ficou muito triste. Durante o sepultamento jurou
vingança. Antes de descer o caixão à sepultura colocou uma moeda na boca do
finado Adonias. O próprio demônio lhe contara, numa das vezes que se viram, que
antes das portas do inferno e do purgatório existia o rio do Limbo. As margens
haviam dois barqueiros, irmãos gêmeos, Caronte e Corante esperando os espíritos
desencarnados pra fazer a travessia. Juvenal recomendou: “-Vai meu pai na frente.
Não tarda irei eu também.” Uma rabeca gemeu em duas notas que lamentava a morte
e convidava ao choro. E concluiu: “-Peço que quando eu morrer matem meu cavalo.
Pras terras dos mortos, pra onde irei, quero ir montado em Soberano.”
Fabio Campos 16 de Abril de 2015
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