Sol e Lua de Betânia

Lá estava o aglomerado de casa, quase rústicas. Vistas de longe assim, falava duma nesga de cores pálidas. Os tons de branco  destacavam-se formidavelmente. Nas fachadas de tijolos rebocados e caiados. Donde alguns quantos se destacavam. A torre da igrejinha. O balaústre do mirante do açude. O muro do cemitério. 
E como querendo também compor excepcional quadrante, flutuantes nuvens destacavam-se lá no céu azul de anil de Betãnia. 

O tudo que se via, o olho do condor era que via. E os que lá embaixo viviam, ainda estes, e àqueles pormenores não viam. Talvez soubessem, ou tivessem ideia ao menos, que existiam. Duas mil e poucas almas habitavam corpos, que habitavam casas, que compunham paisagens. Sem se darem conta que o eram, mesmo sendo. Obcecados na tarefa de gastarem vidas viviam.  Laboriosos na mais relevante das ocupações, a de viver, e viviam. O carreiro o carro, carreava. O menino brincava de ser ele mesmo. O mercador mercantilizando palavras.  O cachorro deu com o rabo no ar, vã tentativa de espantar o tédio, de ser cachorro. Todos protagonistas de si mesmos. Mas se encenavam suas próprias histórias, aquele era tempo de viver outra encenação. A da Paixão. Teve início num pedregulho que tinha ao lado do campo de futebol. Abandonado naquele momento porque era sábado de aleluia. E como era semana Santa ninguém queria jogar bola pra não ser taxado de Judas. O lajedo excelente lugar para a cena do Sermão da Montanha. O que recebeu o nome de Jesus seguiu andando, acompanhado dos doze. Na casa de Seu Zacarias o burrico atado, foi requisitado por dois discípulos para que se cumprisse a palavra. "Alegre-se muito, cidade de Sião! Exulte Jerusalém! Eis que o rei vem a você, justo e vitorioso, humilde e montado num jumento, um jumentinho, cria de jumenta. Zacarias 9-9."

Uma pequena multidão seguia. O público quis também participar de cada cena. Na hora de acenar com os ramos de palmeira acenaram. Acompanhavam e gritavam junto com os atores: “-Salve o filho de Davi! Hosana! Hosana!” A verdadeira Betânia ficava a milhares de quilômetros dali, do outro lado do Atlântico. Tão distante do sertão e da caatinga. Ficava só a três quilômetros da cidade velha de Jerusalém e do Monte das Oliveiras. Bethania em grego, Bét-nyyah em hebraico, “casa de Ananias”, “casa dos figos verdes”. A cena da última ceia do Senhor ocorreu no patamar defronte a igreja. O Jesus adolescente, de barba rala, cabelos revoltos, e pele morenada pelo sol do sertão, partiu o pão, e distribuiu entre os doze. Elevou o cálice a cima da cabeça e compartilhou. Seu Luizão sapateiro quis fazer o papel de Judas. Cena das mais difíceis, o pobre discípulo condenado a ser o traidor, desespero perfeito na arte de fingir fingiu. Com força atirou contra os paralelepípedos, o saquinho com as moedas que com Caifás barganhou a traição do mestre. Quem terá sido os que pegaram as moedas? Haveria quem dissesse que cada um dos que pegou sofreu um mau presságio. As moedas que custou o sangue precioso de Cristo encerrariam maus desígnios para quem delas se apossaram. Um pastor de ovelhas depois de pegar pra si uma daquelas moedas de ouro, numa tempestade repentina perderia metade das ovelhas do seu rebanho. Um agricultor, dizem porque pegou uma daquelas moedas, amargou a ruína de ver a lavoura perdida por uma enchente que destruiu tudo.

“Mazurca velha mazurca/Dança grossa do meu sertão/ Quando toca uma mazurca véio macho cai no salão/ Dança duro batendo o pé balança a casa, balança o chão.” Assim dizia no rádio a canção de Luiz Gonzaga. Na vila Candunda havia a tradição de se dançar mazurca. Por ocasião dos festejos juninos se dançava na praça. Desde a quaresma começavam os ensaios. Um grupo de meninos e meninas, outro de jovens: moças e rapazes. E outro de adultos e idosos. Todos participavam do folguedo. Trajados em vestes de poloneses os homens. De polacas as mulheres. Representavam agricultores da região de Cracóvia. A tradição chegou trazida por um padre polonês. O padre chegou a vila no tempo da segunda Guerra Mundial, quando Hitler quase dizimou da face da terra, o povo Judeu. A igreja desenhada pelo padre tinha os traços arquitetônicos do Santuário da Divina Misericórdia da capital polonesa. Devido as aparições e revelações de Jesus, reconhecidas pela igreja Católica a Santa Faustina Kowalska. Os homens com seus chapéus verdes com uma faixa branca e preta, ornada com uma pena vermelha. As mulheres tinham aventais com franjas e lenços coloridos na cabeça, toda vestimenta predominava as cores vermelho e branco da bandeira da Polônia. Era engraçado, pra quem jamais vira, os passos da dança. Uma fila de homens, outra de mulheres, realizava bela coreografia. Inicialmente soltos, de passos, cujo ponto forte era o bater dos pés, como um sapateado. Depois as duas filas se aproximavam e dançavam aos pares. A um toque diferenciado dos músicos e todos largavam seus pares e trocavam de parceiros. O fole, e a zabumba predominavam, o triangulo, o pandeiro e o pífano eram alternativos.

Betânia não vingou no sertão. O nome sugerido pelo padre polonês, foi aceito e acolhido somente pelos habitantes mais jovens. Entre os antigos moradores porém, jamais deixaria de ser Candunda. Os mais antigos, nunca se acostumaram com o novo nome sugerido pelo pároco. Candunda era espécie de peixe de pequenas dimensões, alimentava-se basicamente de microrganismos dispersos na água. que filtravam à medida que sugavam a água pelas minúsculas guelras, com a ajuda de branquispinhas que eram excrescências ósseas dos arcos branquiais. (estrutura que segura as brânquias ou guelras). O peixe  não vivia em cardume e se reproduziam pouco. Com alternância da lua entre minguante e crescente. O fundo dos açudes seu nicho, tinham preferência pela profundidade onde podiam estar livre dos predadores, os peixes maiores, as tarrafas e os puçás dos pescadores. Ao atingirem a idade adulta não passam de 3 a 6 centímetros de envergadura. Na quaresma devido a época favorável a pesca, tornava-se presa do homem. Dava uma prato típico do povoado a fritada de Candunda. 

Existia uma lenda sobre a chegada do peixe ao açude da vila. Dizia que os colonizadores desbravando os sertões chegaram à região montado em mulas e jumentos. Cansados de tanto andar debaixo do sol quente, a caravana resolveu descansar. Ao se aproximarem de uma clareira perceberam um grupo de mulheres morenas, lavando roupa as margens dum lago, no sopé duma montanha. Aproximaram e perguntaram se podiam pegar um pouco de água, as mulheres permitiram, desde que algo lhes fosse dado em troca. Com uma exigência especial: tinha que ser algo vivo que nunca tivessem visto. Não aceitavam as mulas pois já conheciam, nem carneiro pelo mesmo motivo. Entre os colonizadores havia um negro escravo com uma moringa de couro de carneiro, na qual trazia uns peixinhos que pegara no rio Jordão. Pois diziam quem carregasse daqueles na moringa jamais morreriam de sede, nem nunca lhes faltaria água. Eles colocaram alguns dos peixes no lago depois se abasteceram da água de que necessitavam. O escravo disse as mulheres que ele viera da aldeia de Candundo em Angola na África. O povo do sertão aportuguesou Candudo, pra Candunda. Pondo este nome no peixe, por soar melhor. O negro se estabeleceu naquela aldeia. Constituiu família com uma daquelas mulheres. Teve um sonho em que seus antepassados teriam dito que se os nativos trocaram Candudo pra Candunda, três outras palavras o povo devia também substituir, dali por diante: Aldeia chamariam de Povoado, Lago seria Açude, e Montanha sempre chamariam de Serra.

Sol e Lua eram duas meninas. Nascidas gêmeas. Filhas de Maria Lúcia e José Francisco. Não sendo porem gêmeas idênticas. Uma tinha a pele morena como o pôr-do-sol. A outra a pele alva como uma lua cheia à meia noite. Sol, era franzina e de cabelo castanho encaracolado. Lua, de mais estatura tinha cabelo preto escorrido. Sol, como o astro que lhe inspirou o nome  extrovertida, pra não dizer supervitada, que o matuto apelidara de “esprevitada”. Lua, a personificação da palavra recatada, tímida.

Um dia, as duas meninas, juntamente com Júlio irmão mais velho, se inventaram de subir a Serra do Candunda. Naquele dia voltaram da escola mais cedo porque houvera festa para as crianças. Quando os pais descobriram o desaparecimento ficaram desesperados. Todo o povoado se mobilizou na busca. Logo caiu a noite. O céu negro-azul chuviscado de estrelas piscou-piscou, pra o sertão se regozijar de encanto, em cada canto.  Os aldeões vasculharam toda cercania. Em bandos, abriram picadas na mata com facões e tochas, e nada. De repente alguém notou um imenso clarão vindo do alto da serra. Se dirigiram para lá. E qual não foi o espanto de todos, encontraram as três crianças, de joelhos adoravam a virgem Maria, aparecida sobre a rocha. De um lado da virgem santa era dia, do outro era noite. O padre polonês ao ver o que via, entendeu sua missão. E disse aos que ali se encontravam: daquele dia em diante, a padroeira da aldeia seria Nossa Senhora da Conceição. Porque aparecera aquelas três crianças. E era o dia delas.
  
Fabio Campos 10 de Abril de 2015.

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