Três meninas se haviam na praça
da igrejinha. Amanda, Jéssica e Veridiana.
A um só tempo falavam, falas de meninas tenras. Do alto dos poucos mais de dois
lustros de vida confabulavam. De como umas as outras, achavam que estavam
ficando, feias, deformadas. E que logo, logo, de tanto caírem-lhes os cabelos
ficariam carecas. Do ódio às espinhas, que mesmo sem terem sido chamadas se lhes
vinham. Dos esmaltes da mamãe que roídos descascavam. Do devotado amor ao
chocolate. E de meninos chatos que só queriam saber de futebol. Tudo que emitisse
algum reflexo, às suas voltas, acabava de algum modo virando espelho. E o que mais entendiam
era que todas as coisas do mundo deviam render graças as suas existências.
"Eu fui no Itororó
Beber água e não achei
Achei bela morena que no Itororó deixei"
"Eu fui no Itororó
Beber água e não achei
Achei bela morena que no Itororó deixei"
Amanda tinha medo de borboletas.
Melhor dizendo, verdadeira fobia a todo e qualquer inseto alado. Outro dia,
quer dizer, outra noite, em que faltou energia elétrica, quase provocou um
incêndio em casa. Atraída pela luz duma vela, uma bela
duma mariposa, Betularia Negra enfiou-se quarto à dentro. Foi um deus-nos-acuda. Ficou tudo
revirado, lençol e colchão chamuscado, e o cheiro de pano queimado permaneceu
por um bom tempo. Tinha mania de
colecionar coisas, chaveiros, grampos de cabelo, fitinhas de pulso. No último
aniversário ganhara um par de pantufas que imitava o rosto duma tartaruga, o
que já rendera bela discussão com Jéssica que teimava que era o rosto dum sapo.
Num diário escrevia coisas, que a ninguém mais além dela própria era capaz de revelar.
De como queria que seu quarto tivesse uma janela enorme, que desse pra ver a
rua. E quando viesse o inverno pudesse ver as nuvens despencando do céu. E como
queria correr na chuva, só de calcinha. De como às vezes desejaria ser um
daqueles meninos pobres, que ficavam o dia todo na rua, e quando chovia como
naquele maio, ficavam brincando na sarjeta. Acompanhando a fantástica viajem de
seus barquinhos de papel, vencendo o aguaceiro até a boca de lobo no fim da ladeira.
E doidos desembocavam no rio, dando adeus a seus donos. Pra debaixo das bicas
corriam, a receberem o forte jato que lhes feriam a cabeça, quase a despi-los
dos seus trapos. Ficava pensando quem cuidaria deles depois dali. Quem lhes
enxugariam os corpinhos magros. Quem lhes envolveriam em lençóis, e lhes serviriam
biscoito e uma xícara de leite quentinho. E já bastante fatigados numa
cama conciliariam o sono e sonhariam sonhos onde podiam voar sobre um mar
bonito. Rumo ao horizonte, voariam a encontrar Peter Pan, na terra do nunca. Suas
mães a beira do fogo de certo cantariam cantigas antigas, que falava de bois da
cara preta, de pavão em cima do telhado, de ir à Espanha. Enquanto o bule
fumegante deitaria um líquido aromático, numa xícara branquinha de dar dó.
“Fui à Espanha buscar meu Chapéu
Azul e branco da cor daquele Céu
Olha palma, palma, palma. Olha pé, pé, pé
Olha roda, roda, roda caranguejo Peixe é.”
Ana Jéssica gostava mesmo de
ouvir música de rock’n roll. De ouvir coisas do passado, de fotos antigas.
Influência do pai, que era fã dos Beatles, tinha uma guitarra e uma réplica
duma Halley Davison. Nos finais de semana, ia a encontros de motoqueiros muito,
muito longe, e nunca a levava. Sempre deixada na chácara do tio Armando, ou no
sítio de vô Rosalvo e vó Isabel. Preferia a guarda dos avós, ali os abusos eram
mais tolerados. Sempre voltava de lá com uma
relíquia, tirada dum velho baú de maçaranduba, enlaçado por dois cintos
de couro curtido e ensebado. Da última vez ganhou um broche dourado pertencente
ao seu bisavô, condecorado por ocasião do cesquicentenário da independência em
Brasília. Trazia as efígies, dum lado Bento Gonçalves do outro Anita Garibaldi.
Com muito orgulho exibiria entre os colegas da escola, a honra ao mérito do pai
de seu avô coronel Idelbrando Costa Rêgo que havia lutado na revolução
Farroupilha. De tardinha dava sempre um jeito de assaltar a dispensa, com
direito a rapadura batida, mel de mandaçaia, frutas cristalizadas. E tinham os
passeios a cavalo quase sempre sem hora pra acabar. Dentre as três meninas, era
ela a que mais se preocupava com a aparência. Ainda mais por ser rechonchuda.
Brigava com a balança, com os meninos que lhe apelidavam, e com as roupas que
iam cada vez mais ficando apertadas. Esse incômodo compensava sendo ainda mais
extravagante. Caprichava na maquiagem, no uso de bolsas, colares, pulseiras,
cílios postiços e penteados estrambólicos. Gostava do jeito escrachado de Elis
Regina. Outro dia, ao sair da escola se inventou de passear na garupa da lambreta
de seu primo Plínio, em plena rua acabaram caindo os dois. O que lhes renderia um
braço quebrado uma perna luxada. Duas semanas encima duma cama, sem sair de
casa. Vieram visitá-la os primos, tias, e a turma da escola. Todos assinariam os
nomes no cano de gesso.
“Passarás passarás um delas a de ficar
Se não for a da frente a de ser a de detrás
De detrás de detrás
Tenho dois filhos pequeninos
Não posso mais demorar, demorar, demorar”
Veridiana queria ser guerrilheira
das tropas Somozista na Nicarágua. Um dia ainda conheceria aquele mundo mostrado
na revista National Geographic. Desbravaria sertões, florestas. Escalaria
montanhas, encontraria uma cachoeira, ou quem sabe uma caverna, nunca dantes visitada
pela civilização, a qual daria seu nome. Apaixonada por tudo que lembrava
natureza. A irmã mais velha Suzy Morgana sua fonte de inspiração era bióloga.
Imitava-a nos modos de vestir e pentear-se. Até nos trejeitos das mãos, da
entonação da voz. Vez outra levava uns sopapos, por pegar, sem autorização, coisas
emprestado, sutiãs, batons, perfumes, aos quais jamais devolvia. Pela fresta
da fechadura da porta, contígua a sala de estar, gostava de espionar o namoro da
irmã. No espelho do toucador borrava todo de baton a ensaiar beijos que um dia
daria no namorado que um dia teria. Várias vezes viu os namorados trocando
carícias viu quando fumavam escondido, e abanavam a fumaça pra rua. Enchiam a
boca de chicletes se percebiam que vinha alguém. As guimbas enfiavam na
caqueira de samambaias e avencas. Veridiana guardaria ainda um trunfo que
usaria para chantagear a irmã, ao vê-la livrar-se dum monte de comprimidos anticoncepcional,
enterrando-os no estrume dum pé de Crote. Dias depois sua mãe, elogiava de como
vistosa e revigorada estava a planta.
“Minha gatinha parda
Com certeza que sumiu
Onde está minha gatinha
Você, sabe? Você sabe? Você viu?”
Três meninas, sentadas nas
poltronas de veludo azul, do salão paroquial. Encostadas umas nas outras cochilavam. A noite, haviam passado em claro. No velório do vô Rosalvo. Porque
tivera que morrer justo na semana dos ensaios das apresentações, pelo dia das
mães na escola. Amanda e Veridiana viram Jéssica chorando voltar do banheiro. Buscou
o colo da mãe. Pensaram que era ainda comoção pelo avô, na verdade naquela manhã,
foi pro banheiro menina e voltou moça. As mãos alvas de sua mãe seguravam um
buquê de flores, os dedos longos as unhas pareciam pétalas afagaram o cabelo da menina-moça. Arqueou a boca que
dali a pouco beijaria o rosto gélido do pai. Boca com gosto de café requentado.
Boca de toda manhãzinha mastigar pão de queijo, antes de levar Jéssica a escola.
Boca de gritar que meio dia não era hora de tomar sorvete, pois não teria fome
pro almoço. Boca de rezar Aves-Marias apressadas para a filha e pras amigas da sua
filha. Nunca conseguindo terminar, vindo morrer as últimas palavras nos lábios,
quando já estava deitada. Antes de dormir Veridiana olhava fixo pra bailarina
de porcelana sobre o criado mudo, sob a luz do abajur. Jéssica abraçada a seu gatinho
de pelúcia se sentia tão mais protegida. Amanda deitada, ainda de olhos aberto,
olhava através de sua imensa janela imaginária, e via um céu de maio. Repleto de
nuvens carregadas, dali a pouco ia chover. E no meio da praça três meninos,
andando de bicicleta.
Fabio Campos 18 de maio de
2015
Esse lindo conto remexe nas lembranças de outrora menina moça... Uma viagem lá num distante passado...
ResponderExcluirObrigado querida prima Sandrinha! Bjos
ResponderExcluir