A Coruja e o Condor



As coisas todas do mundo revolveram a maio de 1976. Em recordações viera quase tudo daquele tempo. Ainda que já houvesse Deus concedido às cores as coisas todas. Relembrar o passado, mecanicamente, só se podia em preto e branco.  Apenas a natureza, e os olhos, conseguiam perceber tudo como realmente era. Sonhar, as noivas podiam. Inclusive com buquês de flores, de rosas vermelhas que levariam consigo. Talvez com os dias contados estivesse o tão esperado dia de casar. Feijão e milho na roça, se acordando. Debaixo do sol, se espreguiçando. Se preparando pra abençoada colheita. Aos trabalhadores, o primeiro dia daquele mês dedicado garantindo-lhes o sábado de descanso. Também os negros, no décimo terceiro dia, uma quinta-feira, outra vez eram libertos. As mães, no domingo, ganhariam presentes. O calendário sorria. A folhinha do coração de Jesus falaria de sabiás, de beija-flores, de bem-ti-vis, da Santíssima Virgem e a aparição de Fátima. Dúvida não havia, era maio. Mesmo que tudo estivesse em preto e branco, era maio de 76.


“Ao ver passar no céu as andorinhas
Eu sinto saudade do meu bem
Que talvez me espera
E também desespera”



A manhãzinha vinha que vinha, rodeada de mato. Permeada de veredas, e estrada, enquanto aguardava o sol, que ao chegar tudo expondo a se esquentar. Bem devagarinho afastaria o terral, e o céu noturno. Fazendo ir-se embora negro frio, da cor de escuro. Tonico era apenas um menino, ao pé da estrada. Se tivesse no que pensar pensaria num céu azul e branco, da cor de sua farda. E no seu céu particular poria um pomar, uma jaqueira, pião, estilingue, passarinho voando pro mato, açude com água por cima. E o campinho da propriedade de Seu Doroteu, onde mais tarde se encontraria com os amigos, jogaria bola. Roncando na estrada de barro, a camioneta de Seu Antônio vinha que era vindo. Do sítio pra Vila todo dia, ia e vinha. Mansamente desencostando-se da estaca Tonico esticava o braço. Solícito o automóvel parava. A carona de todos os dias, na ida pra escola rural do Sítio Santo Amaro, de manhã. Manhãs de estudo. Mais tarde, tarde de trabalho os campos lhe aguardavam.  Se olhasse pra casa de Rute, encontraria Seu Irineu sentado no alpendre, olhando com olhar de quem pensa, bem lá no ponto exato onde o mundo aqui do chão, se encontrava com as nuvens lá do céu. E o canto de estalo do pintassilgo, ia que ia longe. Vadiando pelo oitão da tapera, indo amarelar o gomoso cheiro do fruto da carambola, admoestados pelas melipondias. Aquela altura Seu Irineu já havia trazido água pros cochos do curral. Água sofrida, água chorada, água de canto, de carro de boi cantador. Benfazeja colhida dos tanques do lajedo chamados de caldeirões. Cedo ainda ia o dia, e tudo já estava quente pegando fogo. O gado, cabisbaixo mansamente catando verde verdinho mato, relva de maio. A menina na janela, da casinha velha encostada ao pé do lajedo, era Elisabete. Olhava o que já estava enfastiada de ver, céu bonito, mato, roça e serra. Farta daquela voz fazia de conta que não ouvia dona Gersina lá na cozinha. Falando do que as meninas de sua época brincavam antigamente. A dizer que seu pai costumava, ir lá no mato, tirava uns galhos de catingueira. E fazia móveis pra ela brincar, cadeirinhas, mesinha, uma caminha. Os pratinhos, os talheres e a chaleira, de barro de louça. Esses ela mesma fazia. A boneca uma calunga de pano. E sempre ao cair da tarde, depois de lavado os pratos, estendida as roupas no varal e varrida a casa. Com as amigas, ia pra debaixo duma baraúna, brincar de boneca. Hoje em dia o que pensam essas meninas, em namorar e se formar nas escolas da cidade.


“Passarás passarás/ uma delas há de ficar
Se não for a da frente/ há de ser a de detrás
De detrás, de detrás.
Tenho meus filhos pequeninos/ não posso mais demorar
Demorar, demorar”


E o que parecia normal, já não o era tanto assim. Talvez maio já não fosse mais. O estado de guerra vivido no Vietnã em nada, ou quase nada interferia para os que viviam no sertão. Em nada influindo para que se tornasse nem mais, nem menos triste. Continuava a mesma vida, entre os de cá, ou ao menos uma perspicaz tentativa pela permanência do que havia. Enquanto isso o agricultor pensava: “-Quem será que inventou a ‘tá’ Festa do Feijão?” E lá do outro lado do mundo a OPEP, a OLP de Yasser Arafat, o estado islâmico de Aiatollah Khomeini, longe estavam de por fim a crise no Oriente Médio. E o sertão ainda era o mesmo, silencioso, macambúzio. De que modo coisas outras que ocorriam mundo a fora poderia nos afetar? Explicar isso era tarefa para o professor lá na sala de aula. Papa Pio VI, semblante sereno no jornal estampado, de lá da janela do Vaticano pedindo paz ao mundo! Na cozinha dona Boninha, com um lenço amarrado na cabeça, a beira do fogo, punha vigília ao bule que dali a pouco  liquidamente verteria seu conteúdo negro no oco branquinho duma xícara em cima da mesa, forrada com forro de xadrez e franja verde esmeradamente bordada. A porção Gaseificada da infusão indo, a excitar narinas e cérebros, evocar outros desejos. E dona Quitéria, irmã de dona Boninha escutava o rádio de móvel. E mesmo sem olhar pro louro atrepado no poleiro perguntava: “-Tu sabe o que é bomba atômica “meu” louro?” Esticando e encolhendo o pescoço várias vezes, o papagaio respondia: “-Avé, Avé, Avé Maria!” E os meninos instigavam “meu” louro a dizer a reza inteirinha e sorriam dele. Depois corriam lá pro terreiro a brincar. E pediam pra Seu Severino destampar o enorme tacho de fazer sabão, fervendo, fumegante. E queriam saber por que de vez em quando era destampado e mexido com uma enorme colher de pau, que mais parecia um remo. Dona Berenice a vizinha chegava trazendo massa puba e nostalgia. E dizia que não lhe perguntassem por que, mas toda vez que comia tapioca com coco bem quentinha, se lembrava do presidente Jango, de sua morte inesperada. E repartia a dúvida: Como teria sido o enterro? Certeza que teria sido muito bonito.  Dona Quitéria emendaria que a ela, era o cuscuz amarelinho, cheirando no cuscuzeiro que lembrava-lhe Juscelino Kubstchek. Ó tão trágico acidente que lhe tirara a vida! Teria sido um atentado? Quem porventura desejaria ver morto um homem tão bom? O acender o cachimbo lembrava a Seu Severino, Getúlio Vargas. E jamais esqueceria que durante o estado novo mandara queimar sacas e mais sacas de café, somente pro “pretinho abençoado”, das mesas do povo brasileiro, subisse de preço.

“Como poderei viver/ como poderei viver
Como pode um peixe vivo/ viver fora d’água fria
Como poderei viver/ como poderei viver
Sem a sua sem a sua/ sem a sua companhia"


Dona Tereza a mãe de Tonico dizia em tom de seriedade que aqueles meninos não tinham ideia do valor que era abrir a torneira e ver a água jorrando da mangueira no capim verdinho do jardim. E o sol brincado com as gotas flutuantes daria de fazer um arco-íris particular pros netos de Seu Libônio. Algumas vezes era vista chorando realizando o simples gesto de lavar as mãos. Seu Fernando já morrera, na verdade todas as pessoas daquele maio já morreram. Ainda que vivessem eram outras pessoas agora. Com outros pensamentos, valorando outras coisas que nem existiam mais naquele maio. Bom seria se tivessem vivido o suficiente pra dizer como era. Quem sabe onde estaria o ator daquele velho filme, tão jovem na trama? Já envelhecido em 76. Os filhos se envolveram com drogas, casaram e agora eram avós. Usara tanta LSD porque na Califórnia era liberado até 1977. O vô de Tonico Seu Guilherme, era de maio. No seu aniversário gostava de tomar um bom uísque ouvindo Elvis, e fazia o Long Play repetir várias vezes a música “It’s Now or Never”. Ao cair da tarde, Tonico e Elizabete no domingo iam à matinê. O filme estava tão sem graça que acabaria adormecendo. Depois iam tomar sorvete na sorveteria Maringá.  Punha um pouco de guaraná no creme e ficava olhando a taça quase com a sublimação transbordar. Cadeiras e mesas de fórmica com madeira e ferro, o piso num mosaico estampado formado figuras geométricas, na propaganda de Coca-Cola a garotinha loira sorria um sorriso americanamente efusivo.

“It’s now or never
Come hold me tight
Kiss me my Darling
Be mine tonight
Tomorrow will be too late,
It’s now or never
My love won’t wait”


Era uma vez uma coruja, e um condor. Não simples aves, como já as concebemos. Muito menos protagonistas de fábula de Cristian Hansen. A coruja de que falamos veio vindo sorrateira pousar sobre a bandeira dos “Iluminados”. Uma ordem fundada em Baviera, no dia primeiro de maio de 1776. Isso aconteceu na famosa noite de Santa Valburga. Um grupo de jovens de idade semelhante a de Tonico e Elisabete, inflamados por um ideal revolucionário, pretenderam mostrar ao mundo que pela força duma ideologia poderiam mudar o destino da humanidade. Dois séculos depois tal sociedade secreta aportou no Brasil. Nestas paragens seria representado pela figura doutro pássaro, o Condor. As asas do tempo recrudesceram. Jango, J.K. e Carlos Lacerda, três ferrenhos oposicionista ao regime militar, em menos de um ano intrigantemente morreriam de forma trágica. Sendo o último, justo no mês de maio. Em 21 de maio de 1977, para ser mais exato.



Fabio Campos  05 de maio de 2015        

Nenhum comentário:

Postar um comentário