O Roxinol e a Cotovia



Três pés de coqueiros lá longe. Meio caminho andado do horizonte. Um cachorro beirando a estrada, vindo. Um cavalo comendo capim, tão próximo, dava pra ouvir a respiração. “-Vô, cavalo é menino ou menina?” “-Este de cá é menino. Aquele é menina.” Um homem de chapéu de palha uma corda na mão. Alto, esguio, de tudo se apossou, da estrada, da história, do cavalo que comia. 


No alto do morro um castelo todo branco, abrigava sonhos. A entrada ficava do outro lado. De cá dava somente pra ver as janelinhas, que olhavam. Um caminho velho de terra, tão antiga, chegava chorar de tristeza. Outro homem triste de longa barba e olhos de por medo. A muito tempo vinha, e ia. Já perdera a conta das vezes que vinha e ia. Uma vida inteira indo e vindo. Uma morte inteira, indo e vindo. Onde estaria Justino? Também um dia tornara-se dono daquela estrada, sendo parte da história daquele bairro afastado. Ninguém mais entre os viventes sabia disso. Muito tempo se passara. Meu Deus, e Firmino? Onde estaria? Os novos moradores jamais buscaram conhecer o que havia ocorrido, no passado. Sabiam apenas que Firmino era pai de Maria de Lourdes, que tinha vitiligo. Era mãe de André, Andreia e Melissa que não tinham a doença. Noutro dia dois moleques acuaram Firmino no ermo da estrada, e roubaram-lhe os pertences, uma velha carteira de couro, um canivete do cabo de madrepérola, de tanta estima. Carteira e documentos, jogados à beira da estrada. Noutro dia a neta Andreia encontraria. O canivete nunca mais. Tinha ido ao banco sacar o dinheiro mensal da aposentadoria. Venceram-se as contas de água e luz. Nada pode dar no mercado. 

Meu Deus que mês difícil de varar!  Na rua dos homens, viera um que estava embriagado. Era sábado e vinha da feira, nada nas mãos. Ficou parado no meio da rua. Feito estátua balançando, preste a desabar, gesticulava. Ao vento dizia. Conversava, a um interlocutor invisível, inexistente para quem apreciava. Na verdade um velho amigo. O vigilante noturno em plena tarde apareceu, na porta da casa do irmão. Chegou numa motocicleta vermelho cromada. Afrontou o azul do céu, de nuvens brancas sucumbidas por outras cinzas, túrgidas de água. A casa do irmão também vigilante. Havia sido morto num outro dia de sábado. Era noite, e vigiava o posto de gasolina. Recebeu dois tiros pelas costas. O sangue no calçamento da cor da luz da ambulância, ainda que muda gritava em vermelho. Nem tudo que estava lá era mentira. E se fosse, seria uma mentira diferente. Assim disse Thomas.


Pelo menos três crimes haviam ocorrido naquele mesmo lugar. O vigilante noturno, o dono do posto de gasolina, um motorista de carro de aluguel. Infelizmente, nenhum dos três jamais fora justiçado. Na época, a lua ensanguentada disse lágrimas. Ficou querendo se esconder atrás dumas poucas manchas escuras, quando viu que não tinha jeito, se obrigou a assumir toda formosura. E vieram outras tardes. O homem da motocicleta ficou na varanda da casa do irmão, esperando que aparecesse alguém pra conversar. Toda tarde ia lá. Desde quando ainda estava nesse mundo. Continuou indo depois do ocorrido. Queixo apoiado nos braços cruzados sobre o balaústre da casinha singela, esmeradamente pintada de verde. O próprio dono a pintara.  Casa de uma única janela, como nos contos de conto de fadas. Pra varrer a poeira e as folhas secas trazidas pelo vento, aparecia a cunhada. Lenço amarrado na cabeça. Com a vassoura tangeu ciscos, e o espírito. 


E tinha a louca. A mulher que perdera a lucidez. Em idade avançada à sensatez perdera. Alguns diziam que eram males de família, outros que estaria possuída. Na verdade talvez se sentisse perseguida, odiada, injustiçada. Por todos e por tudo, era nisso onde residia o incomum. Imprecações contra todos ditadas ao vento. O próprio vento inimigo mortal se tornaria. Tratamento a base de psicotrópicos, pouco adiantaria. Ao contrário piorara até. As cenas do rio, com muita nitidez viriam, não sendo nada bom rever. O rio havia se tornado ameaça. A filha do rio ameaça ainda mais forte se tornara. Eliminá-los tarefa nada fácil. A mãe, pobre mãe, sofria sem nada poder fazer, a não ser morrer. O que pra os lunáticos estaria de bom tamanho. Os irmãos se vivos estivessem jamais podiam admitir aquilo. Nada, nem ninguém jamais poderia ser empecilho na vida de quem quer que fosse. Ninguém precisava morrer pra que todos fossem felizes. Que outros planos não revelados totalmente, ainda mais escusos haveriam por trás de tudo aquilo? Naqueles outros planos talvez não se admitisse retrocesso. Voltar a viver na casa paterna era retrocesso. O mundo crudelíssimo carecendo o tempo todo de significados plausíveis. Viver infelizmente era algo que necessitava de significados. Com mil diabos! Nada fazia sentido naquele momento! Deus devia ser um cara de muito péssimo humor. Era o que pensava naquele instante. Primeiro fazia as pessoas avançarem, depois tinham que recuar. Depois de tantos avanços! Voltar séculos de suas miseráveis vidas. Perder vida em torno de um alguém que evidentemente não mais fazia o menor sentido. Preciosíssimos momentos infelizmente perdidos. 


O anjo negro sempre presente. Não aparecia, ninguém via, mas estava lá. Aconselhando sempre pro mal, como se fosse pro bem. E os dias molhados tanta falta fazia. O outro avô de Thomas chamava-se Tomaz. Todo dia ia pra roça, um homem pacato, feliz pela vida que sempre vivera. Realizado pelo que construíra. Filhos, roça, a barbearia, a gaita no cair da tarde. Um cigarro pitado depois das refeições. O que mais poderia almejar. A outra vó, na sua altivez nunca se escusava de dizer o que não lhe agradava. Sempre sublinhava: “-Pra mim, isso não se cria.” Também “-Não vejo graça nisso.” Tantas vezes ouvira dizê-las. Não concordava com o jogo de baralho de todas as noites que vô Tomaz inventava. Mais ainda nos finais de semana. Sempre na casa das meninas. Vindas das bandas de Pernambuco. Na língua da rua tão faladas coitadas. Final de rua, donde a lua sorridente, no começo da noite vinha.  Alta madrugada retornava a casa. 

Por outro lado, não concordava ele com o compadre, que toda noite pra cozinha da comadre ia, prosear até altas horas. Pouco se importando com a ausência do compadre. Naturalmente discutiriam a respeito. No calor da discussão foi chamado de idiota. Questionou que ninguém merecia de tal nome ser chamado. A própria bíblia condenava. Quando isso acontecia ia dormir numa camarinha de vara, coberta com um tecido de linho que pegara seu cheiro. Outro ia deitar ali pra sentir sua presença. Depois de muitos anos passados, vindo. Ditados que nunca mais ouvira repetir: “-Meu Deus do céu, quem morre deixa o chapéu.” E realmente deixou. De massa, e era preto. Todo domingo ia pra missa. As enormes pilastras laterais da nave central, coalhadas ficavam de chapéus. Todos já se foram. Os chapéus ficaram.


A Cotovia. A avó que Thomas jamais conhecera todas as manhãs lhes vinha. Do mesmo jeito que ia pra roça, na estrada que era dela. Estrada que ia construindo todo dia. Cantando cantiga de lembrar passado. No limiar de cada manhã vinha. Ainda Thomas se preparava pra ir pra escola. E lhes vinha a Cotovia. Através da janela Thomas via a ave cantando, sobre um dos fios de telefone cantando. Juliana lhe dando banho, perfumando, penteando-lhe o cabelo, colocando-lhe a farda. Ao descer as escadas do apartamento dizia: “-Mãe aquela passarinha gosta muito de mim.” Juliana concordava “-Está bem Thomas ele gosta.” “-Não é ele mãe é ela! É um passarinho menina!”


O Rouxinol. O avô que Thomas nunca conhecera, embora todas as noites lhe viessem. Na antiga fotografia jubilada, que pena alguns daqueles se tornaram maus. Do mesmo jeito que ia, no meio da rua dos homens vinha. Pra casa de jogo das meninas, vindas das bandas de Pernambuco. E punha a cantar seu canto que ia até a janela do seu quarto. E era um canto que desejava que ele fosse muito feliz. Não era pra ser um canto triste, mas acabava sendo. Três pés de coqueiros que de noite dava pra ver só a silhueta. Estavam lá ornando o imenso jardim da universidade. Até vir o raiar do dia e o canto da cotovia permaneceria lá.


Fabio Campos, 11 de maio de 2015.    

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