EPIDEMIA (4ª Parte da Saga de Tagor Fashall)



Lá estava Antonieta, sentada a um tronco de coqueiro, caído na preamar.  Nas mãos um livro velho, de capa dura, revestida de pano. Cuja gravura ao centro trazia o desenho duma ilha, com algumas construções suntuosas, cercada de floresta. Tudo limitado por um mar que cabia inteiro num imenso tacho, sustentado por três baleias. Enquanto dois elefantes, um de cada lado, atados por cordas as alças do tacho, puxavam em sentido contrário. Era o “The Book of the Azeroth Reign”

Aquele livro continha a história da ilha e do tesouro perdido. De alguma forma Tagor Fashall e Marcos tinham que se encontrar. Era preciso. O menino que sempre aparecia no seu sonho, era provável que ele tivesse, mesmo sem saber, poder para descobrir o dispositivo que acessaria a sala do tesouro perdido da caverna. Ao ouvir os rumores que vinha do lado oposto da ilha, teve certeza que outra catástrofe se avizinhava. Com nitidez em relampejos vinham acontecimentos de mil anos antes. Viu a formação da ilha quando ocorreu o cataclismo chamado de “O Grande Rompimento”, que provocaria a destruição da Fonte da Eternidade. O que acabaria dividindo a terra em quatro continentes. Separados pelo imenso oceano em cujo meio se situava a ilha de Kalimandor. A vinda dos estranhos seres do espaço, em suas carroças de aço. Cavalgando o ar sem tração de camelo ou elefantes. Apenas empurradas pelo hálito de Zeus. Tudo aquilo já havia sido previsto, pelo grande mago Fronzen do reino de Warcraft, escrevera no livro secreto, aquelas aparições que finalmente se tornaram reais. A grande peste negra também profetizada constava do livro do rei. Dizia que o contato dos nativos com os estrangeiros que levitavam nas carruagens de lata causaria o surgimento de uma praga, uma peste que ceifaria a vida de todos os habitantes da ilha. Todos que tivessem qualquer tipo de contato com os alienígenas contrairiam a doença. E todo aquele que fossem por eles tocados se transformavam em mortos-vivos.  Zumbis dos aliens, totalmente dependentes, física e mentalmente.  
  
Os homens maus frequentavam a sociedade da corte, os salões dos palácios reais. Sem nunca se misturarem com gente da classe baixa, a plebe. Os únicos pobres que ainda mantinha contato com a nobreza era a criadagem. Mesmo contra a vontade porque precisavam dos serviços deles. Acreditavam que isolados do contato com a gente dos burgos e feudos jamais contrairiam a peste negra. Estavam, infelizmente, enganados. O objeto de maior desejo de uma criança de outros tempos era uma bicicleta. As mulheres com seus filhos e suas amas iam pros jardins de delícias do palácio. Ali havia enormes pomares, labirintos gigantes. Parques ornados de plantas de magnífica beleza, trazida de diversas partes do mundo. Aves exóticas de cantos maviosos, encerradas em gaiolas de fino requinte. Fontes de águas dançantes, cascatas de águas de cores diversas, diáfanas. Arco-íris que remedava o jardim do éden. Carrosseis dotados de cavalos de verdade. Cavalos árabes, noruegueses, escandinavos, cujas patas maravilhosamente coroadas de longos pelos negros. De crinas lustrosas, sensuais, femininas, sibilantes ao vento. A medida que o lastro redondo rodava, uma música de realejo suavemente deixava-se ouvir e se ouvia. Meninas com seus rostinhos ingênuos, rechonchudos. O excesso de guloseimas consumidas sobrecarregavam seus lindos vestidos. E era como se estivessem sendo levadas para serem batizadas, tendo as amas que fazer de tudo pra mantê-las impecavelmente limpas.  E como gostavam de passearem de gôndolas no imenso lago azul. Onde enormes cisnes e garças, que mais pareciam feitos de gesso, como de propósito, faziam poses para que o fotógrafo lambe-lambe pudesse compor melhor, a solene foto da família. Tudo seguindo rigidamente o tradicional modelo patriarcal. O pai ao centro, sentado convenientemente numa cadeira de vime pintada de branco com apoio pros braços, rodeado da sisuda prole. A matrona trazia o primogênito ao colo. Olhava com seu olhar sereno, de mulher que cumprira fielmente a função dada por Deus de procriar. Solícita posava, pelo marido, pelos filhos, pelo mundo, pra posteridade. Aquele olhar que disfarçava como podia a tristeza da difícil tarefa de ser o que era. Sem conseguir completamente esconder por cima das sobrancelhas arqueadas, um possível sorriso de Gioconda.  

Naquele tempo, já os homens facínoras maquinavam contra o bem comum, contra suas próprias mulheres, contra si mesmos. Muitos foram os que foram dizimados pela peste negra. Uma doença misteriosa que bestializava as pessoas. Iniciava com uma febre persistente, avançava pra convulsões, alucinações, ataques de fúria. Os portadores acabavam de forma horrenda, apresentando pústulas. Por todo o corpo, feridas que secretavam líquido purulento e mal cheiroso. As carnes se diluindo como se o corpo estivesse derretendo. Dissolvendo sem que nada pudesse ser feito para reverter tal situação. Como se os doentes por um ácido terrivelmente destruidor estivessem sendo corroídos. Muitos, foram os que não tiveram essa sorte, acabaram destroçados a dente, ou esmagados debaixo dos pés do terrível monstro surgido das profundas da terra. O grande dinossauro, o devastador, o tirano, “O sauro, o rex”.

Os homens malévolos descobriram que a disseminação de doenças era um achado. Todos saiam lucrando: donos de funerária, donos de boticários, alquimistas, vendedores de xaropes. De tudo fazia o governo para manter imunes, livres da moléstia os que detinham título de poder, os da nobreza. Nas santas escrituras se amparava a igreja dizendo que os sinais dos fins dos tempos haviam chegado. Nessa época surgiram os remédios manipulados pelos curandeiros e magos. O xarope Coca-Cola foi um deles, criado pelos ameríndios no sopé da cordilheira andina, em terras bolivianas. A América o receberia como um excelente tônico contra todos os tipos de males, a baixo custo. O placebo se popularizou, mundo afora se espalhou. Somente muitos anos depois assumiria ser o que sempre fora, um refrigerante. Mas sustentaria até os dias da atualidade o termo xarope. Aqueles acabaram descobrindo que inventar novas doenças era um bom negócio. 

Um importante médico do Reino Unido Dr. Shadwell, em extenso artigo publicado no periódico “News London” declararia sobre o perigo das mulheres andarem de bicicleta. A matéria correu mundo causando grande polêmica.  O médico advertia que “o ciclismo era um modismo que não devia ser incentivado, e principalmente evitado pelo sexo feminino, sob o risco de se tornar uma grave doença.” O sintoma era bem claro: a mulher que adquirisse o hábito de andar de bicicleta ficaria com a “Cara de bicicleta”. Outros médicos mundo afora sustentaram a tese do esculápio britânico. Outros sintomas da moléstia da bicicleta foram sendo acrescentados. Diziam que gerava insônia, cansaço, palpitações, dores de cabeça e problemas de depressão. O que de verdade havia nisso? Tudo não passava de jogo de poder entre sexos. De sentir o status social ameaçado. Preconceito machista contra mais uma conquista das mulheres. A bicicleta passaria a ser considerada mais uma arma contra a supremacia masculina. Fundamentada no patriarcado, de séculos de domínio. Sendo ameaçado agora por um brinquedo bobo de criança.

Derick, o gato siamês do país dos sonhos e da fantasia, disse a Marcos que já era tempo dele saber a verdade. Antes que o dia amanhecesse, antes que ele acordasse precisava contar. E contou:  “Antes de vir parar na ilha do tesouro, Tagor Fashall vivia no mundo real, de onde você veio. Lá, ele ainda não havia sido árabe, nem tinha os poderes da longevidade, e da ciências ocultas que agora tem. Naquele tempo, não passava de um menino, chamado Reginaldo, e tinha um amigo chamado Dário. Nascidos e criados no sertão nordestino. Por toda infância foram muito amigos. O destino cuidaria de separá-los. Dário foi pro sul, fez um teste num time renomado, tornou-se jogador de futebol profissional. Ganhou muito dinheiro ficou famoso. Quanto a Reginaldo jamais saiu da cidade que nasceu e vivera. Toda uma vida de dificuldades viveu. Acabou se casando e continuou a viver, vidinha mansa de cidade de interior. Tornou-se vigilante de uma escola e criava galos de briga. Quanto a mim, nunca fui humano, sempre fui gato. Lá no mundo real, eu era o bicho de estimação de Dário. Foi na infância deles que o crime de Tagor Fashall ocorreu.  Os meninos estavam na casa de Dário.  Eu vivia a última das minhas sete vidas. Dário pela mãe foi levado pra tomar banho, enquanto Reginaldo sozinho ficou brincando numa área coberta do quintal. Entre os brinquedos do amigo, Reginaldo acabou encontrando um medalhão dourado. Era um belo amuleto reluzente que o deixou fascinado. Resolveu apropriar-se do objeto. Quando no bolso ia meter a medalha, percebeu-me lhe encarando firmemente.”  

Fabio Campos 16 de junho de 2015 (Continua...)

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