“Olha pro céu meu amor
veja como ele está lindo veja aquele balão multicor que lá no céu vai subindo/foi
numa noite igual a esta...[Zé Fernandes e Luiz Gonzaga]”
Houve um tempo em que os homens
gostavam de ser criança. Simplesmente porque um dia foram crianças. Entre as
noites mais esperadas do ano, estavam as do mês de junho. Tão esperado dia de
São João. Pelo dia, dentro dum céu cinza prometedor, a dadivosa chuva de
inverno. De noite, chuva de luz entranhando negro céu sedutor. Chuva de cores e
alegria dos rojões. Varais de bandeirolas, as roupas multicolores. E quão
divertida diversão. Em torno da fogueira sorrisos sorriam. Quem dera não fosse
apenas lembrança, de um passado de quatro décadas, simplesmente virada fumaça,
de fogueira. Desde aquele tempo, a rua só tinha sete casas. Sete ingênuas,
simplórias casas. Sete donos, que devagar e brando, um a um foram dormir, e
nunca mais acordaram. No hotel que ficava na esquina, lá no final da rua. Quem
sabe ocupassem singelos quartos, e agora mesmo dormiam. Um sono do qual nunca
mais acordaria. Quem dera fossem como São João. E a cada mês de junho
acordassem do seu sono. Pra viver, ora profano, ora religioso, novo sonho de
São João.
As labaredas das fogueiras
desenhavam sombras de meninos, nas fachadas das casas dos homens, que foram
dormir, também dos meninos que ainda se mantinham acordados. Feitos fantasmas refletidos
no rubro de fogo e quentura. Tão carregado de lembranças e saudades. A cândida
brincadeira de correr dos diabinhos, um artifício que simulava perseguição a
queimar e causar pequenos furos nas roupinhas de matuto, com tanto esmero feitas
pela vovó. A camisa de chita tão colorida, o chapéu de palha assanhado de aba
inacabada, dos remendos nos fundilhos e nas pernas das calças dos meninos. Os
vestidos coloridos cheios de babados, os chapéus com trancinhas e fitilhos das
meninas. Estourar chumbinhos no cimentado, de pingos brancos, a calçada de
pipocas abandonadas se forrando. As chuvinhas alegres num espalhafato
particular, de trazer tempestadezinhas de estimação. Com direito a nuvem,
pingos de luz, cascata de som, inundação de cores. E as tímidas estrelinhas de
São João, tão comportadas. Não chiavam, não estouravam, simplesmente choravam.
Lágrimas da cor de papel crepon. Ora azul, ora vermelho, feito velas choravam
virando pétalas negras. Num daqueles anos um vendedor de fogos não conseguindo
vender as estrelinhas, acabou dando de brinde a quem comprasse qualquer outra
coisa, foi uma festa. A rua molhada, os restos de fogueira, o montículo de
areia pra não carbonizar o calçamento. Os tições espalhados ainda fumegantes. A
tentativa de assar uma espiga de milho nem sempre lograda. A mesa farta com
pratos só servidos naquela época: canjica, pamonha, milho cozido, mungunzá.
Pros adultos quentões, licor de jenipapo, gengibre, sangria de vinho. Uma dose o
bastante pra vovó ficar tonta e logo queria dormir. Ainda mais apreensiva a
ficar com as traquinagens dos netos. O cheiro de São João indo parar nos
lençóis, a embalar doces sonhos. A fumaça impregnando roupas, cabelo, pele. A
micção involuntária na cama, das crianças que se expuseram demais ao fogo.
As borboletas, os sapos, as jias
como que raspando no fundo do pote chamando chuva, as saúvas, os caminhos de
formiga, os baratões do fundo da pia, doidamente a buscarem refúgio nos cantos
mais ermos. Pirilampos a fugirem da fumaça, do clarão do fogo ameaçando suas
frágeis asas, violináceas de fazer sinfonia insetívora. Os cães, pobre cães, de tímpanos sensíveis,
sofredores com os estouros das bombas e rojões, desapareciam mata à dentro nos
dias juninos. Cavalos, éguas, burros e muares quanto temor dos fogos de
artifícios. Teve uma vez que quase acontece uma tragédia, os meninos carvoeiros
naqueles dias vendiam fogueira. E se demoraram na entrega dos feixes de lenha.
De modo que ao cair da noite ainda estavam pra cima e pra baixo vendendo
fogueiras nos jumentos. Os meninos traquinos, de propósito soltaram rojões
justo no momento em que eles desciam a ladeira da rua do bordel. Ladeira a
baixo os jumentos desembestaram causando um deus-nos-acuda. Meninos e as cargas
foram ao chão. Derrubaram um pau de sebo, arrastou um barbante de bandeirolas,
que enganchou numa bacia de fazer adivinhação, derrubou a banca de fogos na
esquina. As relíquias se derramando em cascata ladeira abaixo. Para festança
dos meninos, e desespero do fogueteiro.
A rua das sete casas. Nas sete
casas moravam sete santos. Seu Marcos, Seu Jorge, Seu Jonas, Seu Francisco. E
mais, Seu Antônio que acenderia fogueira no dia 12. Seu João no dia 23, e Seu
Pedrinho no dia 29. Seu Antônio era barbeiro, Seu João padeiro, Seu Pedrinho
sapateiro. A madeira da fogueira da casa de cada um, tinha variada origem: a
poda dum pé de algaroba, um velho armário guardado pra aquela ocasião, e um
pilão de pisar café do tempo da avó do dono. As fogueiras eram acesas a
boquinha da noite. O café regado a iguarias juninas não tinha hora pra acabar. O
bolo de milho, o mungunzá, a pamonha e a cangica. O pé-de-moleque, o milho
cozido e o assado. Sem prestígio a pipoca e o cuscuz ficavam porque já eram
saboreados o ano inteiro. Pra desespero da preta Inácia os calçados dos meninos
de tanto brincarem em torno da fogueira. Ao entrar em casa sapatinhavam o piso
todo de pegadas negras de carvão e cinza. A quadrilha junina da escola antes de
se apresentar desfilava pela rua principal. De longe dava pra ouvir o ti-lim
ti-lim do triângulo. O bum-bum-bum do bombo, o fon-ron-fon da sanfona. Na
frente vinham os noivos de um lado o padre do outro o delegado. Os rojões não
tendo nenhuma obrigação de seguir o ritmo dos músicos descompassados estouravam
lá no céu. Muito embora cumprissem uma trajetória quase linear, aumentando de
intensidade a medida que o cortejo se aproximava da praça do ginásio.
Dentre as crendices populares
tinha uma que dizia que quem não acendesse uma fogueira na porta de casa, um
ano de atraso seria pros moradores de tal casa. A contar daquela data até o
próximo São João. E tinha saqueadores, desmanteladores e até ladrões de fogueira.
Os que arrastavam galhos em chamas de uma fogueira pra acender outra que
estivesse quase apagada. Os que jogavam bombas de cordão provocando fogaréu pra
todo lado. E os que furtavam lenha de várias fogueiras pra colocar na porta da
casa de quem não tinha. O velho Malaquias morava sozinho era vigia da
prefeitura. Quando era de manhãzinha ao voltar pra casa via a arte que os
meninos traquinos teriam aprontado na sua porta. O compadre Júlio naquele ano
foi passar o São João no sítio do compadre José Arlindo e comadre Maria
Faustina. Foi o São João mais triste da sua vida. Compadre Júlio era acostumado
a passar àquela noite maravilhosa dançando forró, se deliciando com as comidas
a base de milho, tomando quentão, regado a carne de galinha assada, até o raiar
do dia. No sítio do compadre como era diferente. Um jantar simples com o pardo
entardecer. A prosa com pitar dum
cigarro de palha a beira da fogueira a boquinha da noite, lá longe ainda dava
pra ouvir os foguetões estourando o tilintar do triangulo. E só, recolheram-se
pra suas camarinhas. Outro daquele nunca mais. No outro dia bem cedo veio
embora.
Como dizem os mais velhos: “Não
há um mal que não traga um bem.” Compadre Júlio voltaria pra cidade, trazendo
uma cuia de feijão, umas três mãos de milho verde na espiga. E uma galinha
gorda, pra comer na festa do outro santo junino. No proseamento da noite
tristonha tomou conhecimento duma lenda de São João que nunca tinha visto
falar, dizia que na noite de São João ao acender a fogueira o dono da casa
tinha que jogar na fogueira, a cruz de palha benta, ou o galho de arruda que
fora trazido pra casa depois da procissão de domingo de ramos do ano anterior.
Também uma pequena pedra que desse pra esconder na palma da mão era atirada
dentro da fogueira, no dia seguinte do meio das cinzas recolhida. A pedra
pretinha da cor de carvão coberta de cinzas, não podia ser limpa. Do jeito que
estava era amarrada de cordão num pedacinho de pano branco, ou era colocada
dentro da vasilha do sal ou pendurada no caibro mais próximo da porta da
cozinha ou da entrada. Para que aquela casa tivesse a proteção do santo contra ventos
maus, olho gordo, afastar maus espíritos e ter a proteção de São João Batista o
ano inteiro. O santo ermitão que vestia-se com peles de cordeiro se alimentava
de mel, gafanhotos e frutas silvestre. O fogo usava pra se aquecer nas noites
frias, manter afastados os animais selvagens e alumiar o corpo e o espírito das
trevas. Em torno da fogueira por três pedras sustentada, João Batista orava a
Deus.
Os três santos da rua das sete
casas. Naquela noite, ouviram uma história muito triste. De Sinhá Inácia
ouviram. A preta velha morava no subúrbio. No Alto dos Negros um morro que
circundava a cidade. Uma comunidade de descendentes africanos. Falou da vida
difícil que levavam os que moravam lá. Viviam do trabalho na roça dos grandes
senhorios. E que da festa junina a única coisa que restava era apreciar lá do
alto, a queima dos fogos de artifícios que das ruas subiam ao céu. Fogueira ali
era comum acenderem, pra eles com outra intenção, afastar o frio das rigorosas
noites de inverno. No cair da tarde se ouvia o baticum dos tambores seguido de
cânticos nagôs. Tirada dum enorme tacho uma gororoba chamada de angu feita de
fécula de mandioca era servida a todos.
Naquela manhã do dia de São João Seu
Antônio, Seu João e Seu Pedrinho atravessaram o rio, cruzando a ponte de
madeira, que dava acesso ao morro do Alto dos Negros. Levava cada um, um saco
às costas. No caminho encontraram Seu Júlio que voltava do sítio do compadre
Arlindo. Os três santos de Deus, numa versão só um pouco mais moderna, iam
levando sacos cheios de milagres. Chuvinhas, estrelinhas, chumbinhos, pães
doce, cavalinhos de pau. Felizes iam subindo o morro. Deixando pra trás a
cidade que pouco a pouco ia acordando.
”-Vamos
brincar de sete facadas?
-Vamos...
-Tudo que eu
disser você repete...E acrescenta “de sete facadas”.
-Encontrei
uma Cancela.
-Cancela de
sete facadas.
Encontrei uma
Pedra.
-Pedra de
sete facadas.
-encontrei um
Morro...”
Fabio Campos 28 de junho de 2015.
Nota do Autor do Blog: A Saga de Contos de Tagor Fashall que já estava na 5ª Edição entrou em recesso voltando na brevidade oportuna.
Pedimos desculpas e a compreensão dos nossos leitores pela interrupção. Agradecendo desde já os que acompanham nossos contos permanentemente.
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