LÁPIS LAZULI (Ao Meu Amigo Paulo Ney Onde Estiver)



Três meninas se haviam na janela e olhavam. Uma ruiva, uma loira, outra morena. Da janela do alpendre da casa olhavam. Levasse em consideração que era uma tarde nublada de um mês de julho, novo em folha. Talvez houvesse um quê de melancolia naquelas tardes. Triste, tão triste tarde de julho. Assim mesmo era. E quão era bom que fosse assim. Belo olhar das três meninas. Mas o que tinha aqueles olhos pra olhar? Uma serra enfumaçada, gigantemente muito próxima, uma roça verde de bonecas de espigas milharada. Uma estrada de terra, um cercado onde bois pastavam. E se se enfadasse de somente isso ter pra ver, bastaria estender os olhos pro outro lado, e teriam as casas do vilarejo. 


Cheio de preguiça lá estava o vilarejo. Pra quem não tivesse com que gastar o olhar. Muito pouco de interessante tinha pra se ver. Abandonada de si mesma. Amparados pelo frio vespertino alguns poucos se aventuravam ser o que sempre foram simples aldeões em suas lidas. Atores de si mesmo. Encostada no poste da esquina uma bicicleta, aguardava o dono tomar uma cachaça no quiosque. Sentado a um tamborete, entre tragos e cusparadas, um negro macerava duas frases: uma que falava de tempo e de homens. E outra que terminava com a palavra Deus. Na velha parede um cartaz desbotado anunciava, a mais de quarenta anos anunciava, grandioso espetáculo circense: “ O Magnífico Búfalo Bill, O maior toureiro do século! Não Perca! Nesta noite!...” (o que restava do cartaz rasgado). Um cachorro de rua seguia um menino na calçada, só pra se lembrar que um dia tivera dono. Pardais nas suas lidas de irem e virem gastavam a paciência do tempo, sem nunca envelhecerem, nem morrerem. Uma picape vermelha surgiu na estrada. Conduzida por um homem de chapéu de caubói. Angariou para si três pares de olhos femininos. Olhos claros, olhos azuis, olhos castanhos. A caminhonete rubra acabou tirando a paz da tarde entediada. Adiante, a sombra dos coqueiros, ao lado da casa parou. Saltando da boleia o vaqueiro se encostou no guarda-lama dianteiro. O maço de cigarros saltou do bolso do casaco pra mão, tirou um e acendeu. Com avidez se fez fumante, encontrou prazer para ato quase ignóbil. 


As ninfas chamavam-se Francisca, Lúcia e Jacinta abandonando seu casulo voaram ao encontro do zangão, ali aportado. Paulo perguntaria por Flavio o pai das moças. Tinha ido pra festa de Santana. Não teve como não voltar lembranças de antigamente.  Do tempo que seus pais a ele e a seu irmão levados a reboque pras novenas de Senhora Santana. Noites de dúbio sentimento. Agonia pela missa longa obrigado a assistir e o divertimento de ficar horas andando ao redor da praça da matriz. Ver coisas que somente a rua podia proporcionar. De gente em tamanha quantidade nunca vista. Uma enchente, tempestade de gente. Tanto movimento capaz de deixar qualquer um tonto, sem sequer tomar uma única dose de cana. Muitas músicas em tão alta frequência que chegava a provocar zumbidos nos ouvidos. A boca dormente, os dentes doíam ao tomar água de tanta bala de anilina e hortelã. Luzes muitas luzes, gambiarras em torno da praça, na torre da igreja. Os olhos eram pura vermelhidão, a noite em claro era muita coisa pra quem tinha costume de dormir cedo. Gastar os tostões, mas voltar feliz com os bolsos cheios de bugigangas. O cheiro forte dos famosos frasquinhos de perfume em tubinhos de remédio, uma vez colocado na roupa jamais se dissiparia, pudesse lavar como fosse. Os corrupios animados por um trio de tocadores de pífanos. Foguetes soltados na beira do rio, a todo instante pipocando no pretume do céu, em louvor da excelsa padroeira Senhora Sant’Ana. 


As meninas pisavam descalça a terra fria intumescendo os lindos pezinhos. Paulo de sapatos do tipo mocassim achou aquilo extravagante. Conversando alegremente se dirigiram até o alpendre. Sobre o telhado cadeiras, uma mesa, uma rede do cariri, e um velho sofá estofado tão deslocado coitado. Dera liberdade a Bob o cachorro da família, acabou expulso de casa impregnado do fedor de rabujo do cão. Dona Prazeres trouxe alvas xícaras, uma garrafa de café e sequilhos de manteiga, uma garrafa de vinho do Porto e queijo branco. Os assuntos versaram sobre a festa de Santana, o inverno, o frio, sempre comparando os de hoje em dia com o de anos anteriores. Paulo foi até o carro e voltou trazendo uma caixote cheio de enormes laranjas mexerica. Sendo a casca tão vermelha que mais pareciam outra fruta. Apanhou também sua pasta de desenho. Sobre a mesa papel almaço abrindo seu estojo de lápis pôs-se a pintar uma natureza morta composta de laranjas, garrafa de vinho e queijo.   
   

A igreja cheia. Não cabendo mais de tanta gente, o povo se acotovelava no lado de fora, nos batentes, nas calçadas, na escadaria. Padre Tiago, tão jovem abraçara o sacerdócio! Um menino ainda! Entregar a vida a servir a Jesus Cristo. Num tempo de tanta modernidade. Nada fácil renunciar as seduções do mundo. Coisas que só a fé explica. Veio de outra paróquia convidado a presidir a segunda noite do novenário de Sant’Ana daquele ano.  “-Ir ver missa do lado de fora da igreja? Jamais!” Assim dizia Dona Prazerinha. “-Missa é pra gente assistir olhando pro padre lá no altar. Ficar lá trás, do lado de fora, olhando pras costas ou pra bunda do povo, vou não! Prefiro escutar pelo rádio.” As meninas acompanhavam Paulo que continuava desenhando, e opinava: “-De fato dona Prazeres, missa é pra se participar, e não assistir.” Enquanto o padre na sua homilia pregava: “-Meus queridos irmãos e irmãs em Cristo Jesus. Alguém aqui já saiu de casa pra igreja. E ao chegar aqui se ajoelhou, e bem dentro do seu coração fez o seguinte pedido: -Jesus! Dá-me o céu! Eu quero agora mesmo ir pro céu! Não meu irmão, nem eu. Por que será que pedimos tantas outras coisas a Deus? E não pedimos o principal que é a salvação. Garanto! Qualquer um de nós por mais rico que se torne jamais será feliz por completo. Ninguém será feliz buscando realizações pessoais, sempre estará faltando alguma coisa. O homem nasce com um vazio no seu coração. Vazio este que só será preenchido com o espírito de Deus. Entre nós seres humanos somente uma nasceu livre do peso do pecado: Maria a santíssima virgem. Quando recebeu a missão deu o seu sim e foi cheia de graça! Maria ungida do Espírito Santo.  E desde então junto com outros santos desfrutam da glória dos céus  Ninguém alcançará salvação do jeito que nós a buscamos. Pedindo a Deus que resolva nossos problemas, nossas dificuldades diárias. Pedimos e clamamos por justiça. E nos angustiamos porque Deus demora a nos atender. Meu irmão, minha irmã: dê graças a Deus porque Ele demora a atender! Por que se Deus vier com sua justiça, não poderá ser parcial, atender interesses de uns e deixar o outro sem nada. Para que Deus pratique sua justiça naturalmente alguém têm, teve ou terá alguma queixa de você, de mim, do outro, e de mais outro adiante. E aí como ficamos? Todos condenados? Precisamos exercitar em nós os frutos do espírito Santo: paciência, persistência e longanimidade. Sendo paciente indubitavelmente seremos persistentes, mas a longanimidade dentre os três, é o maior dom. Em grego longânime, significa “coração grande”. Tenhamos irmãos o coração grande para amar o próximo. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!”


Depois da missa, no rádio iniciou um programa de música popular. Efusivo o locutor anunciou a primeira canção “João e Maria” que dizia assim: “Agora eu era o herói/ E o meu cavalo só falava inglês/ A noiva do caubói/ Era você além das outras três/ Eu enfrentava os batalhões/ Os alemães e seus canhões/ Guardava o meu bodoque/ Ensaiava um rock/ Para as matinês/ Agora eu era o rei/ Era o bedel e era também juiz/ E pela minha lei/ A gente era o brigado a ser feliz/ E você era a princesa que eu fiz coroar/ E era tão linda de se admirar/ Que andava nua pelo meu país/ Não não fuja não/ Finja que agora eu era o seu brinquedo/ O seu bicho preferido/ Vem me dê a mão/ A gente agora já não tinha medo/ No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido/ Agora era fatal/ Que o faz-de-conta terminasse assim/ Pra lá desse quintal/ Era uma noite que não tem mais fim/ Pois você sumiu no mundo sem me avisar/ E agora eu era um louco a perguntar/ O que é que a vida vai fazer de mim?”


Lúcia achou engraçada, Francisca disse que não entendera, e Jacinta nada disse continuava fascinada com o desenho que Paulo rabiscava já os arremates. A música segundo o artista plástico era uma declaração de amor a atriz Marieta Severo, esposa do compositor da canção Chico Buarque de Holanda. Muitos viram na letra uma crítica ao sistema de governo da ditadura militar. O presidente Emílio Médici perseguiu o artista. Não só ele como outros cantores que de maneira sutil criticavam o governo em suas composições. Em nome da perpetuação no poder, o regime ditatorial militar desnecessariamente perseguia toda classe artística, a todos considerando subversivos. Talvez vivessem ainda reflexos da semana de Arte Moderna de 1922. Em que escritores, pintores, compositores, atores, atrizes, vedetes do rádio e da televisão se reuniram em São Paulo para através das artes, escrita, declamada, pintada, interpretada revolucionar o modo de pensar da sociedade vigente. O Brasil depois daqueles dias jamais seria o mesmo. 


Fabio Campos 20 de Julho de 2015.

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