AIKA E OS 3 GIRASSÓIS



Lá vinha Aika, acabara de acordar. Desceu da cama, pés no chão. Arrastando o lençol foi até a cozinha. Os olhos ainda inchados de sono, acomodou-se no sofá. Queria a tevê ligada, um desenho animado, um gogó, uma chupeta com frauda pra cheirar.  A mãe pegou no colo, ajeitou o cabelo revolto, um abraço, um beijo. Depois da benção, a vó iniciou-se a cantarolar a alto e bom som: “Parabéns pra você”. Era dia do seu terceiro aniversário.


Pra Aika aquele não era um dia como outro qualquer. Acordara cedo, pra aproveitar melhor, o dia que era todo seu. Com os olhos acompanhava a movimentação diferente. A decoração, a mesa repleta de guloseimas, muitas delas ainda em fase de produção. A sala aos poucos se transformando num salão da corte. Repleto de grinaldas, coroas, cetros e tronos. Na iminência duma cerimônia real. Aika tinha medo de bexigas. Medos dos estouros das bexigas. Dali a pouco teria que tomar banho, verdadeira repulsa ao banho com água fria.  Debaixo do chuveiro o chororô, um desespero só. Queria pular no pula-pula que ainda não estava lá. Bem feito, quem mandou alguém dizer que ia ter. Os presentes porque não chegaram ainda? A moda agora era ganhar roupas, não achava ruim. Amava botas, óculos, bolsas, vestidos.  Enquanto muitos, muitos pássaros revoavam acima dos telhados. Um dia seriam todos seus.


O primeiro convidado chegou, Kalil, o hindu. Um hindu? Isso mesmo e em pleno sertão nordestino. Kalil chegou pela janela do quarto, entrou voando num tapete. Seu presente entregou logo, era um enorme diamante que levitava e emitia um som mágico. Kalil era um menino bem afeiçoado, pele curtida do sol do oriente. Jamais alguém admitiria que aquele poderia ser irmão  da menina caucasiana que acabara de chegar e estava sentada no balanço, tão pensativa, não parecia muito a vontade, nem que estivesse numa festa. Fazia universidade longe, muito longe de casa. Pra visitar os pais tinha que acordar de madrugada, baldear em três conduções. Comer em quiosques de beira de estrada, algumas comidas que muitas vezes lhes fazia mal. Na pequena escola do povoado São Felix fez estágio, deu aulas. Acabava em estatura e idade, se misturando aos alunos. Divergia, no entanto, das atitudes e dos pensamentos da maioria e reprovava o comportamento deles. Um suco, ou iogurte, a bola de basquete, a toalha de rosto sobre os ombros não era meros acessórios. Séria, levava a sério o que fazia o que ensinava, também o que aprendia.


Ficariam quinze anos esperando que o mundo lhes desse uma resposta. E ela viria, quinze anos depois. Chegou, em forma de reforma, na casa dos pais. Levou um vídeo pra eles assistirem, o filme causaria muita comoção porque a gente vive numa roda viva chamada vida. Mas que muitas vezes só nos damos conta quando nos vemos refletidos nos espelhos. Espelhos chamados filmes. Dizia dum menino e seu pai, presos num campo de concentração nazista, aguardavam sem o saber, o dia da execução. Enquanto houvesse olhos pra ver tanta coisa triste, haveria também olhos pra chorar tamanha dor, ainda que se perdesse todo lamento todo choro no túnel do tempo. A menina agradeceu aos céus porque o pai não estava em Meca naquele instante. Uma multidão alucinadamente orantes e que caminhantes caminhavam em círculo, aumentando paulatinamente o passo. Logo viraria tumulto, que viraria tragédia, o hindu porém escapara. Ficar em casa sozinho vendo televisão talvez não tenha sido apenas opção, mas predestinação. A menina chamava-se Analu de presente trouxe uma rosa roxa que mudava de cor de acordo com o humor do dono. Teria dito a Aika que cuidasse bem dela, pois rosas também ficavam entediadas e até morriam por isso. Sofia outra prima de Aika chegou numa carruagem de fogo deu de presente dois, dos quatros lobos que puxavam sua carroça. Disse que os lobos era seu lado obscuro, um se chamava Violento e o outro Mórbido. Diria que lobos entendiam da teoria da relatividade tanto quanto melhor era o faro que tinham. E que não era exagero pensar que pulgas e ácaros, claro, cada um com suas convicções, se organizavam em protestos nos finais de semana. Lutavam contra o estado de coisa instalado. 


Os que ainda não haviam partido estariam lá. Quarando, feito almas que cumpriam prisão domiciliar, e sufocariam sob a fumaça dos cigarros acendidos pelos encarcerados tabagistas, que infelizmente não tinham escrúpulos. Não se admitia aquilo numa festa de criança. Sempre desencadeando uns nos outros a vontade de se satisfazerem. A despeito de que externassem uma vontade muito insossa de largarem o vício. Se inventariam de comprar, com dinheiro que daria pra vinte maços de cigarro, uns adesivos que lhes auxiliariam no tratamento pra se livrar da dependência química. Parecia, no entanto, que jamais largariam. Isso lembrava aquele amigo que tinha dado tantos conselhos, milhares de anos antes de Cristo. E pediria até por favor,  deixasse Deus fora dessa história porque nem Ele, O Criador, tinha mais saco para ouvir suas lamúrias. Suas lamentações, repletas de orações intermináveis, sempre anexadas de pedidos, os mais variados. Pedia pela melhora da saúde da mãe, sempre começava pela mãe. Pedia pelos filhos para que nada de ruim acontecesse a eles. Horas e mais horas era só isso. E quando o Junior sofreu o acidente de moto ficou três dias intrigado de si mesmo. Não falava consigo mesmo, e por consequência com Ele. Era seu modo de protesto.  


A cidade precisava de ajuda. Assim dissera Aika. E que seus olhos estavam quebrados, mas sabia que havia conserto. A ponta de febre poderia não ser sinal algum, e não era.  Um monge foi o terceiro convidado a chegar a festa. E deu de aparecer vestido no seu impecável hábito tibetano. Chegou montado numa moto velha, barulhenta que queimava óleo de dois tempos. O escape impregnava as vestes brancas de óleo queimado. Junior acabou lembrando que um dia teria ido namorar, numa moto igual aquela. Ficou um tempão num bar próximo a casa da menina que cortejava. E pra ter coragem de falar com a moça resolveu tomar umas cachaças, acabaria bêbado. Alguns amigos ajudaram-no a subir na moto. Terminou pegando a estrada sem logro no namoro. Isso não fora tudo, acabou caindo no mato relou-se todo, e o retrovisor quebrado não foi o único prejuízo. Quando a menina perguntou-lhe pelo presente disse: “-Trouxe-lhe Sensatez.” A mãe disse; “-Ah! É um perfume...” “-Não senhora. Esse aí é Insensatez.” Segurando a palma da mão da pequena colocou um brinquedo dizendo: “Dentro deste pequeno castelo mora a virtude, da qual lhe falei. Uma vez que você sonhar com ela, será sua.” 
  

Quem dera a poeira do carro de boi ficasse lá trás e os sucos que as rugas fez na roça não lhes viesse criar rios intermitentes de água salobra a lhes descer pelo rosto. Todo final do mês de setembro, era sempre assim. No sábado foram acampar na beira do panema. Só voltariam no domingo a tardinha. Aika e os seus fizeram do rio sua morada, e cantou com seus pais ao luar até adormecer e sonhar. Com ternura Kid Abelha trouxe o amanhã e remoçou velhos sonhos que jamais deixariam de apaixonar. Os adultos viraram crianças e tomaram conta do pula-pula de Aika. Não apenas adultos, mas duendes, magos, ninfas, avatares. A música não tão infantil encheu o jardim. Os cachorros, presente de Frida uma bárbara Viking, sem conseguir dormir reclamavam. Já não queriam mais bolo, refrigerante e salgadinho. Os pardais sem suportarem o barulho saiam espantados do entre beira e bica. A geroz se partira. Rachou com o rigor do calor do verão, se não fosse consertada no inverno derramaria água pelas paredes. Os céus de setembro se apresentavam quase sem nuvem. Mesmo assim, alguns dias antes da lua vermelha, chovera.


De onde pareceu aquele indiano? Seria o último a chegar? Estranho, ninguém lembrava de tê-lo convidado. Jagadish saiu de dentro de um livro, quando a mãe de Aika fora pegar na instante o livro de receitas.  Por engano pegou o de fábulas da princesa Sherazad. Então Jagadish saiu de dentro e já dissera: “-Por favor, não se invente de fazer panquecas ou tortas sem saber. Olhem primeiro no livro de receita da vovó.” E não é que tiravam a medida da farinha de trigo com um copo americano. Aconselhou que pegasse a xícara branca que tinha um desenho de uma moça, da antiga propaganda de café. Pois é tinha que ser com aquela. Já havia medido com outras e não dera certo. Tinha certeza, se perdesse aquela xícara nunca mais ia fazer um bolo que prestasse. Uma Tailandesa trouxe um presente de seu país, um leque lindíssimo! Em forma de carruagem. Provou um creme de ameixa que achou simplesmente um manjar dos deuses. Quis saber como se fazia. Fernanda a tia de Aika que levava jeito pra fazer arranjos aproveitou uns velhos discos para a decoração. O vô não somente ele não achou interessante. Talvez fosse só a forma de resistir a perda de discos com Jerry Adriani e Wanderley Cardoso. A radiola e a antiga máquina de costura acabaram servindo na decoração


A festa já estava quase terminando, quando apareceu um galileu. Um menino, de seus doze anos, galileu. Na verdade ele estava lá o tempo todo, mas ninguém o percebera. Até que Aika o notou. “-Jesus está aqui vovô.” “-Está? Você viu ele? “-Sim. Está com os meninos, lá no pula-pula.” “E o que ele lhe trouxe de presente?” “-Girassóis, três girassóis.” 


Fabio Campos 05 de outubro de 2015

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