JACY-OBÁ - A Hora do Mundo



Cláudia, já se havia a treze anos, de frente do espelho. Na gaveta da cômoda um último vestígio de menina, laços com os quais a mãe amarrava suas tranças. Jamais permitiria que fossem novamente colocadas no cabelo. Juntos com as calcinhas, o pacote de absorventes higiênicos. Um quê de exibicionismo, como se fora um avanço rumo à maturidade. Quando tinha só dez. Com mercúrio cromo, tentou enganar as amigas. dizendo que havia se tornado moça. A própria mãe a desmentiu. 


Pequena Cláudia Sempre a desafiar a lei da natureza. Aproveitou a festa da juventude, fez tatuagens de rena, na parte interno do braço e nuca. Comprou cigarros, os primeiros tragos teve crise de tosse, e vômito. Um litro de licor de menta, marcaria o fim da virgindade para o álcool. Tanto dela, como de Eliane, e Vanderleia, duas das melhores amigas. Foi numa sexta-feira antevéspera de carnaval. Foi terrível voltar pra casa, e tentar disfarçar que não estava bêbada, depois de ter vomitado horrores no quintal da casa da amiga. Entrou no banheiro, não viu que o pai estava lá. Nu, fazia a barba, de frente pro espelho. Saiu correndo, colocando a mão na boca tentando segurar nova crise de refluxos. A mãe pensou que fossem enjoos da menstruação. No quarto, vomitou ao pé da cama, acabou dormindo. Altas horas da madrugada acordou. Devagar tirou a roupa. Tomou banho, esfregando músicas de rock por todo o corpo. Os ouvidos cheios de espuma e Legião urbana. “Por que você não olha pra mim. Por trás dessas lentes tem um cara legal.” Pintava as unhas dos pés enquanto Vital comprava uma moto “Pra se sentir total.”.


A casa do professor Zito era uma senhora casa. Construção antiga. O jardim era um convite a poesia. Tinha um banco pintado de branco suspenso numa trave, era um balanço. Dava até pra imaginar que ali sentados estivesse, à muitos anos, um casal de namorados, enamorados. Tivessem vivido naquela casa pelo menos um século antes. Enfrentaram as adversidades familiares, porque, sendo ele, de família humilde, os pais da moça não aprovavam as afeições. Almejavam pra filha pretendente a altura. De interesses além das simples pretensões dela. Prometeram um ao outro amor eterno, conseguiram. Viraram estátuas de clorofila, de musgos que escalavam os umbrais dos alpendres. Os batentes, os beirais mantinham os frisos, apesar do tempo, intactos bem arrematados. Cachos de uvas em cada quina se ofertavam como lugar plausível pro pouso dos pombos. Tons pastéis nas paredes, um verde pálido nas janelas ogivais. Com sua sequência de pestanas que parecia dormitar. A antessala era lugar cheio de objetos antigos. Uma máquina de costura Vigorelli em perfeito estado de conservação. Calada, contava história. Encimado, na parede, um retrato, onde aparecia o professor ainda criança ao lado de seus pais. O menino Zito, de pé sobre uma cadeira, tinha cara de triste. Semblante de menino sofrido. Apesar do terno, gravata borboleta, sapatos e meias, e calças curtas. Ao fundo vacas pastavam. O fotógrafo quis aproveitar a luz natural, da Fazenda Flor da Ingazeira. Bibelôs, ninfas, bailarinas de sapatilhas, chapéus engraçados. Adagas, sabres e espadas repousavam suas glórias sobre mesas esmeradamente polidas. Espada de todos tamanhos e estilos contavam história de uma saga, do clã que encerrava no professor. Uma espada minúscula chamava atenção, do tamanho de uma caneta, mas o que de especial havia nela? Era revestida de ouro! Sua empunhadura tinha formato de crânio, de olhos e dentes cravejado de pedras preciosas. Cadê a espada de ouro? Já não estava mais lá.


Um óleo reproduzia um cacho de Clitoria teneata sobre a lareira. Aquele azul trazia o mar pra dentro da sala. O professor estava a beira da piscina. Pediu que Cláudia sentasse numa daquelas cadeiras. Raquel a filha do professor veio até eles. O maiô molhado colado ao corpo aflorava-lhe o sexo. A pele alva, úmida, rija de frio. O cabelo, os cílios, gotejava confetes d’água na pérgula de granito. O corpo juvenil, frígido lutava contra as adversidades do clima e da veste de banho. O professor iniciou. Disse-lhe que sua mãe andava preocupada, e pedira-lhe que lhes desse uns conselhos. Raquel interrompeu o monólogo, chamou a visitante pra tomar banho de piscina. Aceitou. Adiava-se assim a conversa entre aluna e professor. O oitizeiro, o pé de fruta pão, o pé de jenipapo, o pé de carambola, e o maior de todos, a mangueira, que dava mango coco, passivamente assistia a tudo. Ofertavam seus frutos nos galhos e o que sobejava forrava o chão, ninguém, além dos saguis e marimbondos saboreava. Por cima da cerca espreitavam a tarde daqueles viventes. Raquel disse a Cláudia que não se preocupasse nem com a mãe, muito menos com o que seu pai tinha a dizer. Os mais velhos, todos eles, eram sempre assim. Era preciso que os jovens fizessem uma artimanha que os deixassem aflitos para que os respeitasse.


A noite lá fora, se avizinhava calma e devagarmente. Enquanto isso, lá no subúrbio a mãe de Cláudia ocupava-se a tirar as roupas do varal. Ia grávida, duma gravidez avançada, larga, pesada. De repente veio a lua despontando, enormemente cheia. A que ia dar a luz, ficou vidrada, perdidamente apaixonada, simplesmente não conseguia parar de fitar a lua. Feito pescador quando vê Iara mãe d’água cantando no arroio. Feito o índio apaixonado pelo reflexo a dizer: “-Jacy Obá!” Encantadoramente admirando. Eis que se aproximava a hora do mundo. E tudo rodopiou, alucinadamente rodou. Nada mais viu. A bola de ouro incandescente se foi, mergulhando num infinito azul de escuro, caindo num precipício de trevas que de tão fundo, parecia infindo. O pai de Cláudia chegou tarde. Algo estranho estava acontecendo. Não havia ninguém em casa. Chamou pela esposa, pela filha. Nada. Ao sair pro quintal, encontrou a mulher desmaiada. Correu a pedir ajuda. Levou-a pro hospital. Já era madrugada quando recebeu alta. Havia perdido o bebê. Chorava feito criança. Pra lua perdera seu bebezinho. Perdera o filho, pra lua perdera. As vizinhas diziam que melhor ter sido assim. Pior se àquele viesse ao mundo, de certeza seria lunático! Algo muito pior! Como trazia a chave de casa, num cordão pendurada no pescoço. Teria nascido com o lábio fendido! 


Raquel tinha um plano. A filha do professor, menina perigosa. Convidou a amiga pra uma aventura. Ora, pois então, donde a mãe de Cláudia esperava a redenção, estivesse a vir perdição. Convidou-a para fugirem. E disse mais, “-Nossos pais só respeitam a nós, quando fazemos algo que os deixem temerosos. E contou: “-Eu mesma sempre fui criada presa, tendo que estudar, estudar. Um saco! Nada de diversão, cinema, shows, rede social, nada! Um dia, depois da escola sai com uns colegas. Fomos pro riacho do Bode. Levamos vinho, queijo, azeitonas, batata palha. Léo levou o violão, foi tão bom. Tomamos banho, de farda e tudo. Vitor apareceu com um cigarro. Todos fumaram. Menina eu ria, ria tanto! Eu tive uma crise de riso. Acabei arriando. Adormeci lá mesmo. Acordei com meu pai me chamado. Ele foi me pegar, já era noite. Depois disso, eles passaram a me tratar como uma princesa. Era tanto paparico que não aguentava mais. Isso por parte de todos viu? Tios, avós? Nem se fala, tanta adulação.” Raquel não ouviu mas na ocasião sua vó teria dito baixinho: “-Pra essa. Chegou a hora do mundo.” 


Marcaram pro sábado o dia do exílio. Dia que os pais de Cláudia mais se ocupavam. Ele era mascate, vendia vassoura na feira e sempre levava a filha pra o ajudar. Serviço que odiava, ia por que era obrigada. Sua mãe era cozinheira, nos sábados ia pro hotel “São Francisco” produzir doces e salgados, pras festas de bufês de fim de semana. Ao contrário daqueles, os pais de Raquel eram funcionários públicos, aproveitavam pra dormir até tarde. Cinco da manhã o pai de Cláudia foi lhe acordar pra irem pra feira. Na cama o canto mais limpo. A menina havia colocado uns travesseiros pra tapear, e pensar que estivesse lá, deitada. As duas da madrugada as aventureiras já estavam na estrada. Lá no céu, a lua gorda que matava bebês não estava. No seu lugar havia uma, tão magrinha, coitada, daquele jeito não matava nem um pinto. Aquele fiapo de queijo incandescente navegando o espaço sideral. Trazia o tempo de criança quando as mães das meninas cantavam cantiga de roda: “-Benção mãe lua me dá pão com farinha. Pra me dar a minha galinha que está presa na cozinha.” 


Depois de cruzarem a ponte do João Gomes, estavam cansadas. No alpendre duma casa que julgava abandonada, resolveram parar pra descansar, um cachorro botou-as pra correr. Já iam pra lá do sítio Barriguda. A intensão era chegar ao pé da serra de Meirús onde morava um primo de Cláudia, com quem se correspondia. Avançavam vencendo o breu da noite e do asfalto. Barulho dum moto se aproximando. Dois motoqueiros que tinham varado a noite bebendo quis saber: Pra onde duas meninas iam sozinhas àquela hora? Mentiram, disseram que iam pra casa da avó logo ali perto. Eles conheciam a região, sabiam que a casa mais próxima, ficava pelo menos a uma légua dali. Desceram da moto, e iniciaram uma abordagem. Deixando, claro as intensões maliciosas, de que pretendiam. De repente dois potentes faróis dum caminhão projetou na pista asfáltica quatro espectros de sombras humanas. Raquel não perdendo tempo acenou para que o carro parasse. O caminhoneiro com uma carga de melancias cantou os pneus parando ao lado da trupe mambembe.


“-Moço pode nos dar carona até a rua?” “-Claro! As meninas estão indo pra feira?” “-Sim,” “-E os meninos?” “-Apenas amigos, nos faziam companhia, para que nada nos acontecesse.” Subiram a boleia. Lá se foram, traçando o percurso de volta pra casa. E eis que um sol novinho, quentinho, amarelinho. Vinha vindo risonho. Lindo sol d’aurora, cúmplice duma bela lição. Quem sabe servisse. Ninguém sabe realmente de que cor seria. Se infinitamente azul, se esperançosamente amarelo. Ninguém sabe de que cor seria. Ou a que momento outra vez aconteceria, a hora do mundo.


Fabio Campos 14 de outubro de 2015

Nenhum comentário:

Postar um comentário