SOFIA e a 5ª Essência



Sofia nasceu num dia, bom de tomar café com chocolate quente. Dia bom pra ler um livro. E se deliciar com torradas e geleia de mocotó Colombo, lembra? Assistindo tevê, vendo comerciais em preto e branco. Lembrar dum tempo tão lá trás que choraria no peito, só de lembrar. E no meio dos cacarecos das lembranças surgiria Mônica, com seus olhos verdes, pele alva, magra, de franja. Enrolado no pescoço um cachecol enxadrezado vermelho. Menina mais danada! Pra estreá-lo queria porque queria ir pra o frio. E olhe que era um tempo em que frio não fazia, já vinha feito. O paraíso amanhecia coberto de neve. Igor teve vontade de fazer bonecos de neve. Mesmo sabendo que quando viesse o sol derreteria. E só sobraria o velho chapéu, o nariz de cenoura, os botões de tampas de garrafa. Não dava pra dizer que isso, não tinha a menor importância, porque tinha. Daí Sofia pensou, pensou, e disse: -Seria muito legal se existisse uma máquina de “Nunca Deixar as Coisas Boas Se Desfazerem”. 

Já ouviu dizer que alguém tivesse sede de coisas? Mônica tinha. Como assim sede de coisas? Rafa quis saber. Vontade de comer uma tigela inteira de doce de leite. Dona Zefinha um dia, fez Cláudia comer uma travessa inteirinha, por conta da sua insistência ao pé do fogão querendo comer doce quente! Vontade de comer todinho o pote de Catchup. Vontade de provar coisas improváveis. Tipo, soprar o pó de estrelas da Via Láctea, dar um beliscão na lua. Pra ela, a lua era igualzinho gente. Tinha sonhos, uma jornada cansativa de trabalho. Horário a cumprir isso tinha. Igor ralhou dizendo: -Só era o que faltava! Não vá me dizer agora que a lua tem sentimentos. A outra irmã mais nova já havia disso isto. E completava: -Minha vó pedia a benção a lua. Ficariam todos ansiosos, que chegasse logo o final de semana. Isso tornava as coisas, bem menos chata. Felizmente nada daquilo tirava o brilho nem a essência das coisas. Necessidade de fazer novas amizades não havia. Porque obrigatoriamente discutiriam a existência, e o que realmente era essência. E as discussões fatalmente iriam se acalorar, alguém tinha que recuar, e viria o risco das amizades saírem arranhadas. E como se odiava por ter que concordar com coisas inaceitáveis, só pra não magoar os outros. 

E tinha a história que o mundo fora criado a partir de uma grande explosão de átomos. Isso causava certa inquietação. Quer saber, até indignação. Não que fosse de todo inaceitável. As hipóteses era que não convenciam. Gostava de tudo bem explicadinho nos mínimos detalhes. Na aula de Evolução a pergunta: quem teria nascido primeiro o ovo ou a galinha? Provocou discussão extensa, extenuante. O que aquele pé estaria fazendo plantado bem no meio do jardim? Achou por bem perguntar: -Você é um pé de quê? -De ciências. Respondeu. –E o que dá um pé de ciências? –Dá o que você quiser... –Dá uma máquina de desinventar coisas? Disse que dava.


A quíntupla parte dos pensamentos de Sofia, era de como criar a engenhoca do “Para Sempre Sem Fim”.  Um troço que fizesse com que as coisas, das quais mais gostava nunca, jamais se acabassem. Uma espaçonave que a levasse até vovô e vovó, onde estivessem naquele momento, venceria a implacável distância. Na gaveta da cômoda pegou, papel e lápis. Material suficiente para iniciar sua obra. Primeiro rabiscou um homem máquina, que sabia construir balões com letras do alfabeto. A cabeça era de lata de leite em pó, e o corpo de caixa de achocolatado, os braços dois garfos, e os pés duas colheres, cujas conchas voltadas para baixo, pareciam sapatos. O robô falava. E das palavras que pronunciava pegava as letras de que precisava. O robô disse: “-Palavra!” Daí pegou a letra pê, encheu de ar os pulmões, e soprou na pontinha do pê até ele ficar deste tamanhão. Depois falou: “-Quatro”, e o quarto número cardinal, que se parecia uma cadeira de ponta-cabeça, usou para fazer a cesta do balão. Dando um nó na letra éle, amarrou a cesta ao balão. E voou alto. Tão alto que não era mais que um ponto red, um ‘redzinho’ de nada no blue. Aliás, no ‘blusão’ bem grandão. 


Cinco pensamentos continuavam pensando. Tudo de que Sofia mais gostava e que devia ser infinito. Primeiro brincar no quintal, entrar na piscina inflável, e poria o colete inflável, e encheria a boia de zebra também inflável com seu sorriso de domingo. Ah! Os dias de domingo. Este dia da semana jamais devia acabar. Como era legal, ter a certeza que todos os dias seriam dias de domingo. Segunda-feira era domingo, terça-feira, domingo, quarta-feira, e assim por diante. Acontece que não tendo mais os outros dias da semana os garis não recolheriam o lixo. Isso tinha que ser resolvido. Eureka! Os garis seriam contratados pra fazer hora extra! No segundo domingo, da semana que só tinha domingos. O açougueiro não abria o mercado. E as mulheres não teriam como comprar pernis de porco para o churrasco do fim, do fim de semana, que agora era todo dia.


O parque de diversão, do mundo de Sofia, vivia sempre aberto. Todos os dias, o dia todo. Pobres pais e funcionários não aguentavam mais os turnos dobrados. Aquelas crianças incansáveis. Era preciso chamar criaturas igualmente hiperativas! Ora! Porque não pensamos neles antes, os duendes da Terra do Nunca. Eles amavam o trabalho com brinquedos e crianças. Cervos, cavalos e unicórnio também se revezariam na diuturna jornada de brincadeiras. Ninfas, fadas e princesas alegremente divertiam as energéticas crianças. O parque se expandira tanto que ia até o infindável fim do mundo. E os sorvetes, eles simplesmente não se acabavam. Os pirulitos, as maçãs do amor, os churros, idem. Carrinhos feitos de mashymeloon. Carruagens de melancias com cobertura de chantilly e recheio de caramelo. Castelos argamassados com pasta americana. O fosso era um rio de achocolatado onde boiavam trufas. Pipocas coloridas davam em árvore.  Escorregadores de creme de baunilha com degraus de biscoitos waffers  que viravam pranchas em piscinas de refresco de groselha e guaraná.


O estado Gasoso, das coisas.  As nuvens lá no céu, quanto mais longe mais perfeitamente perceptível se faziam. Era pra lá que todas as rezas iam, a se diluírem nas asas dos aviões. Aquela tal brancura? Estaria diretamente ligada a ausência de água em seu interior? Imaginar os anjos caminhando sobre elas causava estranheza. Se sentissem sede, era só comer pedaços de nuvem como se come algodão doce. E pensar que do nada, a qualquer instante, podia nascer um arco-íris. Era fantástico imaginar isso. A fumaça saindo da chaminé do trem querendo se igualar as nuvens. Subia, subia. E o balão precisava de ar aquecido pra se manter no ar. Enquanto o trem se mantinha nos trilhos trilhando o infinito.


Estado Líquido. A chuva no caderno escreveu um monte de riscos. Era a chuva de Sofia. E Igor o menino que desenhava abriu o guarda-chuva pra que Rafa, o menino do desenho, não se molhasse. Um pingo de verdade fez guache que inundou a ponte, o rio e a casa. Tinha que ter um barco, mas o menino só sabia fazer chapéus de jornal. O pai do menino sabia fazer barcos, mas estava muito ocupado tirando a água de dentro de casa, por isso não fez. O avô tempo suficiente tinha, mas não sabia. O menino com muita paciência pediu a Sofia. Ela fez um barco que era pura travessia. Incluía Creonte e a filosofia, porque navegar era preciso, e viver não era preciso. 


Estado Sólido. –Professora? Sólido, é tudo que é duro? Não necessariamente Zacarias. Por exemplo, muitas vezes é duro viver. No entanto, viver não é necessariamente sólido. Precisamos sempre mudar nossos conceitos, opiniões, e isso pode se tornar sólido. Pedra é a coisa mais sólida do mundo, pena que elas podem se tornar incrivelmente solitárias. Além do que pedras não são mudas. Muito, muito falam, sobre limo, sobre rio, e pescador. O que é sólido muitas vezes nasce do sol, e morre de solidão. A faca em cima da mesa era tão mal, tão seca, tão feroz, tão sólida que chegava a doer! E seria melhor que não houvesse tanto de solidez, em coisas tão sólidas assim. Porque corriam risco de ficarem com frio, e ficarem triste assim. E não era bom estar triste. Não era nada bom tristeza e certeza do abstrato. Porém o bom de tudo isso era saber que as coisas sólidas não eram as mais esperadas no mundo de Sofia. Deviam ser porque lembravam eternidade. Lembravam coisas duradouras. Uma pedra de gelo estava bem ali na mesa inda’gorinha! De repente virou bolha d’água. E já não estava mais.


Fantasma, o Estado de Plasma. -Vovô! Tem um fantasma no sótão da casa. -Ora! Como pode ser se a casa não tem sótão? -Vô, é que o sótão também é fantasma. -Como você sabe que há um fantasma lá? Ele veio conversar comigo. Primeiro pensei que fosse um menino cheio de farinha. Mas era um menino fantasma. Ele me falou que viera da terra onde todas as coisas nunca se acabavam. –Sério? Então, quer dizer que o lugar existe? -Não vô não é que o lugar existe.  Lembre-se que não imaginei um local, mas uma máquina de fazer coisas que nunca se acabassem. E como se não entendesse nada do que Sofia dizia. Preferiu esperar o caos a calmaria da quinta essência. No quinto quintal enquanto isso. As plantinhas, as melhores amigas de Sofia brincavam, cantando cantigas de roda, cujas notas musicais se materializavam feito bolhas de sabão.


Fabio Campos, 23 de Outubro de 2015.

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