O BOM, O MAU E O FEIO (I Can See Cleary Now – Jimmy Cliff – 1978)



Dava pra ver claramente vários meninos brincando. Dava pra ver, uma seara verde cana-de-açúcar, ou seria capim elefante? Havia um menino, sentado a porta de casa. Melhor vendo, dois meninos estavam lá. O segundo se havia no batente da janela.  Era velha a casa. Igualmente velha ia a história, com seus mais de cinquenta anos. A mãe, também já velha, doente, passava o dia, deitada numa cama. Com a voz fraca chamava um dos meninos. Mas o menino não ia. Apelava pro outro, e chamava. O outro também fingia que não escutava. Os dias andavam quentes, abafados. As noites eram tristonhas, amedrontava com suas garras de trevas. Muito queria dizer e dizia. Poucos porém eram os que entendiam.

I can see clearly now the rain is gone
I can see all obstacles is my way
Gone are the dark clouds that had me blind
It’s gonna be a bright (bright)

bright (bright) sunshine day
It’s gonna be a bright (bright)
bright (bright) sunshine day



“Posso ver claramente agora que a chuva se foi/consigo ver todos os obstáculos em meu caminho/as nuvens negras que me cegavam foram embora/será um brilhante dia de sol/brilhante dia de sol/será um brilhante dia de sol/brilhante dia de sol.” Abdias era como se chamava o primeiro menino. Ele queria, um dia, ser jogador de futebol profissional e, ganhar muito dinheiro. Azarias, o nome do outro, não queria ser nada. Os meninos da turma, todos tinham apelido. “”Zé Gago” e “Orelha de Abano” eram os apelidos deles. Abdias realmente gaguejava ao falar. Azarias, por conta da pecha ficava brabo e brigava com qualquer um. Eram meninos negros. E sorriam com dentes alvos e perfeitos, herança magnífica de sua mãe. Era o que de mais belo tinham. Aqueles dentes diziam quanto dona Flora, na juventude, teria sido uma negra muito bonita. O pai era um homem mau, os meninos nunca conheceram, fora embora quando tinham: Azarias, meses, e Abdias uns três anos. Bebia, todos os dias, e ficava agressivo com dona Flora, ainda bem que um belo dia amanhecera e não anoitecera, até aquela data. Aquele foi um dia bom. Sozinha dona Flora teve que criar os filhos. Lavava roupa de ganho, no hotel Santanense. Era camareira, somente nos fins de semana, quando o movimento aumentava. Em casa deixava os meninos sozinhos. O que eles não sabiam era que sua mãe ainda jovem tivera duas filhas mulher, gêmeas. As crianças foram dadas pra adoção. A um casal de funcionários do Banco do Brasil que fora embora. fazia tempo, adotaram. As meninas deviam estar agora por volta dos seus quinze anos.


Oh yes, I can make it now the pain is gone
All of the bad feelings have disappeared
Here is the rainbow l’ve been praying for
It’s gonna be a bright (bright)
Bright (bright) sunshine day



“Agora sim, a dor foi embora/todos os sentimentos ruins desapareceram/aqui está o arco íris pelo qual tenho rezado/será um brilhante dia de sol/brilhante dia de sol.” Quando eram pequenas Morgana e Magna, juntas brincavam e nas bonecas faziam trancinhas. Sem jamais imaginarem que tivessem irmãos pobres, que passavam todo tipo de necessidades, que não tinham quarto forrado de gesso, pintado de cores pastéis, tapete fofinho ao pé da cama, par de pantufas, guarda-roupas cheios de ursinho de pelúcia, cama limpinha, quentinha pras noites de inverno, com travesseiros perfumados, forros de cama com personagens de Disney. Abajur com caixinha de música. Toucador com xampu, condicionador, sabonete líquido e talco Pom-pom. Aos domingos vestiam vestidos iguais, e todos admiravam a dupla de negrinhas filhas da madame Mirian. Também na ida a escola as lancheiras iguais. Os cadernos tinham que ser diferentes para não se confundirem, estojos de lápis. Tinha aulas de reforço, inglês e artes marciais. No sábado as aulas de catecismo que as prepararia para a primeira comunhão. O padrasto bancário, já velho e cansado tinha diabetes, sofreu um acidente vascular cerebral. Passou alguns dias internado, acabou não resistindo. Dona Mirian cuidou das meninas até morrer. Aquele sorriso inconfundível das meninas. Aqueles dentes perfeitos, os rostinhos idênticos no quadro da parede. Os cabelos, a pele, os olhos, e em especial, os dentes idênticos aos dos meninos que elas jamais conhecera. As meninas cresceram. E foram pra Boston nos Estados Unidos, morar com uma tia, irmã de sua madrasta. Tiveram alguns desentendimentos e a falsa tia acabaria revelando o que elas já sabiam, que eram adotadas. Magna casou com um americano ruivo do Alabama, corretor de imóvel, viciado em cerveja e maconha, e que amava tudo que tivesse alguma relação com música country. "Mississipi" da banda Pussycat pra ele era como um hino. Morgana foi ser baby sister em Miami, contratada por um ator famoso, em decadência, que bebia todos os dias, e esbanjava indiscriminadamente. Com o que ganhou, deu pra comprar no Brasil, um apartamento, um lote de terra na beira da praia, um carro e uma moto. De moto ia ao shopping porque o carro demorava muito no transito.     

“Ooh… Look all around, there’s nothing but blue skies
Look straight ahead, there’s nothing but blue skies”


Olhe a sua volta...não há nada além do céu azul/olhe em frente, não há nada além do céu azul.” A água estava ficando cada vez mais escassa. O olho cego do açude secando, secando. Olhando a lama marrom Abdias pôs-se a pensar no passado. Lembrou-se de um dia mau, um dia feio que apanhou bastante da mãe porque deixou a panela de feijão queimar. Era o último cozinhado que restava. E comeram assim mesmo. Até rasparam a panela. Aquele dia das lembranças ruins do passado, talvez fosse um ótimo dia pra mãe morrer. O besouro, a mosca, o latão de querosene cheio d’água na cabeça, tinha um furo e derramava no rosto. E a carroça por que estava tão longe? O carro de boi, a bicicleta. A corrente quebrou, a chinela quebrou, o prato quebrou. Realmente era um dia mau, bom pra dona Flora morrer. E como desgraça na casa de pobre nunca vem solteira dona Flora, naquele dia, morreu. Jamais esqueceria aquele dia. O colar do menino nu de lata. Um pingente guardado junto com as bijuterias da mãe. Julgava perdido, a mãe guardara. O anel de calhambeque. A mãe costumava guardar coisas sem importância, um catálogo da Hermes, uma página da revista Cláudia com uma propaganda do Avon, onde uma moça bonita sorria. Um envelope da Sonora o laboratório que revelava fotografias em Manaus. A foto do pai com uma bicicleta que no lugar do guidão tinha direção de carro. Dentro da bíblia encontrou uma embalagem do chiclete Bolete, com a figurinha dos “Tremendões”, bem engomadinha, cheiro de chiclete não tinha mais. Teve vontade de ler, e leu bem devagar, tudo que havia naquela página.
   

“Adão conheceu Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu a luz Caim, e disse: “Possuí um home com a ajuda do Senhor.” E deu em seguida à luz Abel, irmão de Caim. Abel tornou-se pastor e Caim lavrador. Passado algum tempo, ofereceu Caim frutos da terra em oblação ao Senhor. Abel do seu lado ofereceu dos primogênitos do seu rebanho e das gorduras deles; e o Senhor com agrado para Abel e para sua oblação, mas não olhou para Caim, nem para os seus dons. Caim ficou extremamente irritado com isso, e o seu semblante tornou-se abatido. O Senhor disse-lhe: “Por que estás irado? E porque está abatido teu semblante? Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te. Mas se procederes mal, o pecado estará a tua porta, espreitando-te, mas tu deverás dominá-lo. Gênesis 1-1,7”

I can see clearly now the rain is gone
I can see all obstacles in my way
Real, real, real bright (bright) bright (bright)
Sunshine day
Yeah, hey, it’s gonna be a bright (bright) bright (bright)
Sunshine day



Fabio Campos, 30 de novembro  de 2015

O QUE É ISSO? ("Don't Let Me Be Misundertood" - 1977)




Parecia um dia como outro qualquer. Realmente era um dia como outro qualquer. Nele cabia, todo aquele sol, quente, oblongo, sereno. Desencardindo pelo menos umas quatro, das cinco horas, da manhã. O homem com cara de iraquiano ficou mais de meia hora na porta da mesquita esperando. Cansando, sentou-se no batente. A espera foi ficando da cor do sol que vinha, e os vitrais reluziram luz e esquentaram tudo, por dentro, e por fora, reverberando luz por todos os poros. Finalmente o carro chegou. O taxista era um negro que falava rápido ( a minha vó diria: “-Esse bebeu água de chocalho.”). Parou mas não desligou o motor. Falava rápido, nervoso, como quem iam assaltar um banco. O iraquiano entrou, na parte de trás, pois já havia alguém no banco da frente. As falas animadas era pra ver se conseguiam espantar o sono. Ganharam a estrada. 

E veio o quadro na parede que dizia coisas de quase três décadas. Pra ser exato, vinte e nove anos se haviam passado desde quando se casaram. Lá estava aquele quadro, continuava, trazendo o passado. Chegou a conclusão que o passado ás vezes doía. Concluiria, no entanto que doera somente quando era o pretérito. No tempo presente a dor passada ficara como que adocicada. Lembraria de ter ido ao correio, enviar uma carta pra mãe. Procurasse na caixa de sapatos de guardar papeis velhos, tinha certeza que ainda estaria lá. Quando esteve na casa da mãe lá estava (a carta) na máquina de costura, resolveu guardá-la. Falava da casinha de taipa na praia. Engraçado, não falava da areia branca na praia, quente, de muito sol como aquele, muito menos do cheiro de peixe vindo do mar. Mesmo assim as lembranças vinham acompanhadas de tudo isso. Lembrava de ter subido num coqueiro, de ter ralado o abdômen na hora de descer. Ficou na carne viva.

A casinha branca coberta com palhas de coqueiro, à sombra do coqueiral, ficou guardada na lembrança. Aquele dia de tempestade, se abrigaram do vento, e da fúria do mar. E o medo, jamais esqueceria, o frio que sentiu na alma. O velho amigo sertanejo, de chapéu, bigode bem desenhado, que um dia foi lhe visitar achou tudo estranho. Nos dias que esteve ali ficou nervoso. Guardaria pra sempre a imagem dele, sentado num banco baixo, as pernas bem afastadas, amassando o fumo na palma das mãos pra fazer um cigarro. A expressão do seu rosto, dizendo que jamais moraria num lugar que vivesse com um monstro de água ameaçando o tempo todo invadir a casa. E do outro lado? Uma montanha enribada dum farol. Minha mãe Santíssima! Pra completar, Deus, de palmo em palmo, com gosto de gás abria as portas do céu. Nunca viu tanto aguaceiro na vida. E se de lá de cima (falava da montanha) viesse uma enxurrada? Aí não tinha mesmo como ninguém escapar! Os dias que passou ali, só ia dormir de porre. Só depois, de tomar muita cachaça. Morria de medo do mar.

O carro avançava, engolindo a faixa de betume. As serras, lá longe pareciam que ainda dormiam. O som do rádio vinha c'uma música cuja introdução um violão bem dedilhado trouxe lembranças de João, aquele cujo cognome era "de Deus". Dizia que, ouvindo aquela música do grupo Santa Esmeralda dirigiu de Santana ao Carié. O carro avançando e a música Don’t let me be misundertood. As lembranças levaram-nos ao sítio Lage Grande. Nos dias que o mundo ficava com cara de quaresma. A família da namorada, todo ano passava os dias grandes no sítio. Organizaram-se pra romaria. A namorada veria, pela primeira vez, suas pernas desnudas, pois só em ocasiões como aquela colocava uma bermuda. O irmão dela não conseguiu segurar um riso, as pernas que raramente viam o sol pareciam de outra pessoa. Além de secas, desproporcionais, e só agora se dava conta disso. O carro de boi avançando, cantando cantiga de pinho. A cachaça pegando fogo, tomada na boca da garrafa. A mão metida no bisáco de farinha catando um taco de preá, torrado no óleo. O amigo sertanejo, pai da namorada, na dianteira com a vara comprida de ferroar. O facão pendurado na cintura. Chapéu de couro amarrotado, cobrindo o cocuruto. Jamais esqueceria aquela cena. 

O sol vinha que veio. No início feito manga doce. Depois abusou-se de servir de mote pra poesia, aí o peste esquentou as orelhas. Empinando virou-se numa serpente, pareceu ter prometido a si mesmo que torraria a tudo, e a todos. Era esperar pra ver. Só não duvidasse. O suor pingando na areia quente, dizendo: ponto final, ponto final. Os pés da cor do chão. A poeira, feito meias vestiu as alpercatas. Depois que tirasse ficaria outra, no bronzeado das marcas das tiras. Dormir no alpendre, sentindo a brisa morna da noite também foi inesquecível. Por uma nesga flertaria a noite escura. Tão escura, que as estrelas tinham preguiça de brilhar. O cansaço era tanto que o sono vinha logo, sem dar direito ao corpo a estranhar a dormida diferente. Aqueles cheiros todos misturados, palma cortada, catingueira quebrada, sabão da terra, couro cru dum gibão velho, o bodum do sedém duma égua, a inhaca dum jumento, o cheiro de bosta de boi, E os olhos pesados, pesando ainda mais, reviravam sem querer se entregar ao sono. Finalmente se renderiam ao hálito morno e adoçado do boi. Entre um e outro sopro forte pelas ventas, moendo e remoendo capim.

Aquelas nuvens no céu, e vieram outras lembranças mais. O aguaceiro na vila obrigava que a ida a padaria fosse debaixo duma sobrinha. E tudo estava azul. Uma chuva azul molhando a tarde. Água nos azulejos das casas antigas. Caindo das bicas enchendo de azul os tonéis. As lâmpadas dos postes em dias como aqueles acendiam mais cedo. No meio da rua estreita, desigual. Lá ia a menina comprar pão com sua sombrinha da cor duma fatia de mamão. O homem da bicicleta, parcimonioso no pedalar. Também um menino de bicicleta, afoito, achou de passar o homem, o pneu foi pra dentro da sarjeta, melhor não ter feito isso. Havia um buraco coberto pela água. A queda feia foi inevitável. Caiu na calçada no momento que o homem da casa da praia ia passando, foram ambos pro chão. O menino ganhou arranhões, o homem o pé machucado. Ficou de cama. O padre foi a sua casa saber por que não foi ao compromisso. Sentado na cama se explicou. Tomaram chá com pão com manteiga torrado. A balsa apitava solene, cobrava somente a travessia dos carros, pedestres passavam de graça o rio, em estado de graça. O motor fazendo aquele barulho de teco-teco, a chaminé soltando fumaça negra. Parecia um crustáceo de aço, gigante, que fumava enquanto boiava até a outra margem. Nas últimas sextas-feiras de cada mês tinha que ir a cidade fazer feira. O dinheiro separado com cuidado, enrolado num saco plástico, guardado no fundo da carteira. A igreja imponente, majestosa. Olhando pro rio Manguaba. O sino calado, esperando as horas completarem os minutos pra se anunciar. Tempo perdido, o homem do autofalante não tendo muito o que dizer ficava dando as horas. As bancas de roupas de chitas coloridas, as frutas vistosas empilhadas no calçamento. “-Moço essa laranja é doce?” “-Não, é laranja”. “-Bem feito! Pra quem faz pergunta boba.” O vendedor de picolé parecia um menino velho, que vendia porque gostava do produto. E não estranhasse se caso não vendesse chupasse tudinho, ele mesmo. O caminho da volta era de caminhão. As mulheres por causa da poeira amarravam lenços na cabeça. Os homens tirariam os chapéus cuidando que não voassem. A paisagem era coqueiro correndo na praia, brincando de pega com o sol. E a água do mar ao meio dia parecia vidro derretido se espatifando na areia. Como um copo de absinto caindo, lentamente caindo. Embriagando quem estivesse ao alcance de seus olhos, do seu cheiro. Teve uma feira de fim de ano, cujo dinheiro extra, renderia a compra dum colchão novo, e um pequeno armário. Uma gaveta pra colocar os garfos e facas, na outra os panos de prato. Se acabou a dormida de esteira no chão duro. A rapadura quebrava, em pedaços, por conta das formigas, ia pra dentro dum vidro com tampa.

O homem de chapéu, sem saber o porquê, ali dentro do carro, lembrou-se do porteiro. Aquela hora estaria abrindo o portão pros estudantes. Tantas daquelas manhãs os dois testemunharam. O porteiro era poeta. E isto era muito bom. Confidenciou ao homem de chapéu que ia publicar um livro, de poesias. Já o havia feito. Perguntou se tinha tempo para dar uma olhada. Disse que naquele exato momento não, mas prometeu que qualquer hora veria sua obra. Diria o quão achou interessante, a cada estrofe uma adivinha. Ficara legal. Ele próprio leu uma demonstração. “-Uma moça de cinturinha bem feita/com seis irmãs no braço/que choram diferente/por uma boca só/ Viola.”

Lembraria ainda das vezes que o viu no quiosque sentado a uma mesa, na companhia das músicas de outros tempos, voando baixo, indo mansa, por debaixo da marquise. E as cores se movimentavam, ora devagar, ora alucinadamente. E nunca mais aquele sol traria aqueles outros tempos. Muito embora tentasse. A menina filha do promotor de justiça, cresceu, e agora promovia terapia de grupo. No jardim cultivava flores, incensos e música do tempo de sua ( e de muitas outras) juventude. A sacada era a mesma de outrora na casa da menina psicóloga, talvez também no granito do quiosque, onde sentava o poeta em dia de feira. Os meninos agora crescidos e velhos brincavam de sentar em cadeiras de plástico de polipropileno a rirem do passado. Vestiam camisas de poliéster, nylon e só dez por cento de algodão, com estampas bem maneiras. A calça jeans e o tênis pareciam de velhos tempos. Só não era mais boca de sino, nem os sapatos cavalo de aço. Os cabelos ao estilo dos “Bee Gees” agora escassos, pratearam.

A Bodega de Seu Ozéias, o Pic-Nic lanches de Seu João Salgado. A casa de dona Espercina, a casa de Seu Manoel Constantino, a casa da professora Narair, o Cine Glória. Tudo mudado. Cine Glória que tristemente serrou suas portas de grades sanfonas. Por uma brecha deixaria passar os moleques a brincar no enorme salão vazio. Depois viraria o departamento de Abastecimento - Cobal. Ainda antes seria reaberto pra abrigar a Guarda Mirim. Os bravos (pequenos) guardiães da cidade. Trajados numa farda verde, um boné na cabeça, sapatos Vulcabrás, portavam respeitáveis cassetetes. O lema era o mesmo da bandeira nacional: “Ordem e Progresso”. E caso prendiam um delinquente imitavam no trato, o mesmo, de choque, dispensado pelos soldados no auge do período militar no poder.

Marcos Virgulino sofreu feito a gota, na unha da guarda Mirim, mas também descontava nos pivetes do Grupo Escolar do padre Albuquerque. Uma vez João da Toca (saudade) se enrolou no telequete com Virgulino a briga foi feia. João saiu de olho roxo. Tempo, tempo, santificado sois. Tempo passado que o calendário se encarregaria de levar pra trás. Aí vem o porteiro, poeta. Uma viagem a Garanhuns, se inventando de trazer tudo de volta.

Fabio Campos, 21 de novembro de 2015 


P.S. O autor incluiu, neste Conto, versos do livreto: “O que é? O que é?[nov2015]” Do poeta santanense Vanildo José Tavares.

LUIZA E CORINA (Ezequiel 23)



Era uma vez duas mulheres. Nascidas e crescidas em lugares distintos, bem dentro do sertão. Mulheres guerreiras, mulheres de fibras, mulheres da vida. Mulheres do mundo. Os meninos da copa de setenta conhecera Corina já velha. Os homens de meia idade no tempo da seca de setenta com ternura lembrariam de Corina, já Luiza pouco conheceram. 

Luiza, muitos nunca souberam, talvez fique sabendo agora, era a mãe de Elisabete. Corina, nesse tempo ia decaindo, pois era de muitos anos antes disso. Corina gostava dum lenço estampado na cabeça, que descia pela nuca. O lenço com uma franja colorida. Os brincos grandes e dourados, a deixava parecida com uma cigana, embora não fosse. Jamais expunha seu cabelo em público. Era uma cabocla de pele curtida, atarracada, nariz anduco. Filha de índios criada na aldeia. Nunca talvez tenha ido numa escola. Embora contasse umas histórias do tempo que estudava. Talvez mentisse. Se algo escrito lhe era entregue para que lesse, surtava. Pra disfarçar comentava sobre a caligrafia. Como achava bonita a leitura, do que quer que fosse. Fascinada ficava ao ver alguém, com os lábios, dando vida as palavras, tesouro escondido do qual sonhasse um dia desvendar. Era esse seu segredo. Alegando problema de vista e os muitos anos na idade safava-se pedindo pra alguém ler. Tinha vergonha de ser analfabeta.


Corina igual a samaritana que a buscar água no poço, era uma sofredora. Assim como aquela tivera vários maridos. Um dia aquela encontrou um galileu que profetizou sobre sua vida. Nas noites quentes e abafadas de novembro, na cozinha de dona Boninha e dona Lourdes duas irmãs, velhas solteironas. A mulher se danava a contar as histórias de sofrimento que passara na vida, de quando era pequena. Dizia que era filho de índios, que sua mãe morrera quando ela e seus dois irmãos ainda eram pequenos.  Achava que índio não tinha coração, porque seu pai não se importava se quer, se ela e os irmãos tinham fome. Era de cortar coração o que contava. Eram obrigados a ir pra roça, sem botar um nada no estômago. Ela e seus dois irmãos. Trabalhavam de sol a sol, no pesado, trabalho de gente grande. Pra não morrer de fome, com as mãos cavavam a raiz dos umbuzeiros pra comer. Mas não podiam invadir o território de outros índios, sob o sério risco de serem mortos. Além do que tinha deles que enterrava cacos de vidro no pé da raiz pra caso fossem cavar cortassem as mãos. Na época da colheita de feijão e milho, o que comia o dia inteiro era mandioca crua e tomavam água de barreiro. O álcool do tubérculo no estômago entorpecia a mente. A menina Corina acabava bêbada, e arriava não dando conta do aceiro da roça que tinha pra limpar. Isso provocava uma fúria incontrolável no seu pai que lhe batia com um chicote com tanta violência que lhe fazia as roupinhas em trapos, e o couro das costas ficava na carne viva. Dor sentia, mas não muita pois anestesiada estava pelo álcool da mandioca. Somente no dia seguinte com o sol batendo nas feridas acordava. E começava tudo de novo.


Tempos depois foram morar no arruado da Ribeira do Panema. A casa ficava no largo São Francisco. Era uma fileira de casinhas baixas num terreno baldio. Bem ali, no tempo que os meninos da copa de setenta nem eram nascidos, naquele terreno baldio havia um cemitério. Ficava por trás da igreja Sagrada Família. Igreja feita por Seu Zé Quirino, pro padre Bulhões rezar missa pra família Gonçalves. Os meninos da copa de setenta alcançaram ainda algumas catacumbas reviradas e não era comum encontrar ossada de caveira no meio do monturo. Teve uma vez que Rubinho de Seu Idelfonso brincando por ali achou e levou pra casa um fêmur e um crânio humano. Ao vê-lo com o sinistro, sua mãe disse um monte de impropérios e lamentos, e o fez devolver os ossos ao local donde havia encontrado. 


Lá embaixo descendo pro lado da estrada do aterro tinha um pé de castanhola muito grande cujo tronco enorme era da largura dum elefante, somente um menino, dentre todos os meninos da copa de setenta, era capaz de escalar aquele pé de castanhola: Tonho Pacaia. Ao lado do pé gigante ficava a casa de Luiza, a poucos metros do muro da cadeia. Onde os meninos fizeram um campinho de futebol. Toda vez que o jipe da polícia passava levantava uma poeira doida da estrada. Isso no verão porque no inverno era uma lama fria e densa que grudava as pastadas na bainha da calça, e formava um bolo debaixo do solado dos coturnos dos soldados que faziam-nos ainda mais irritados por conta disso. Pobre dos bêbados e ladrões de galinha quando iam presos, eram obrigados a tirar a lama do caminho, capinar o pátio da delegacia, cortar os pés de velame que cresciam ao lado dos degraus da cadeia pública, e limpar as botas dos soldados. E tinha Elias, um detento conhecido já, por suas investidas ao alheio, sempre pego pela polícia. Um dia foi obrigado a lavar o jipe, e carregar no carro de mão todo o entulho que ajuntou no entorno da caserna. Na hora de levar a última carrada de lixo, aproveitou um pequeno descuido e achou de fugir. Não iria muito longe, a guarnição foi em seu encalço. Graças a “Lucifér”, o cachorro pastor alemão do delegado, o alcançaram. Levou mordidas de todo tamanho. Mordidas que deixariam sérias sequelas. Elias quase perdeu a mão direita. Tantas mordidas, à altura do pulso levou do cão que quase aparta do antebraço. Com defeito no pulso Elias ganhou o apelido de “Mão de Onça” que odiava. E perseguia os meninos arteiros que o ralhava. A delegacia acabaria virando sua casa. Passou a ser contínuo do gabinete do delegado. Toda sorte de coisas fazia, pro batalhão e pros presos, levar e trazer recados, limpar uma fossa era tarefa que encarava com naturalidade.


A casinha feia, de taipa, as telhas sujas, quase caindo, que ficava por trás da cadeia era de Luiza. Difícil saber de que lado era a frente ou os fundos. Luiza era arredia, não gostava de Corina, mas tinha forte amizade com Nazinha. Gostava muito de plantas e tinha um monte de pequenas caqueiras rodeando todo o telhado baixo. Pés de crote, samambaias, copos de leite, espadas de São Jorge, comigo-ninguém-pode, roseiras e lírios. As hortaliças, coentro, tomateiro, cebolinha, hortelã da folha grande e da folha miúda talvez ficassem perto da cozinha. Ao por do sol, de vez em quando tinha um soldado, nu da cintura pra cima, sentado num tamborete, lá no terreiro dela. Enquanto ajuntava folhas e galhos secos com uma vassoura velha, Luiza ia fazendo sua reza silenciosa. Tinha uma historia velada, contada por poucos, que num tempo de uma dezena de anos antes, Luiza teria tido um caso com um homem chamado de Zezinho, que estava preso naquela cadeia, por ter matado outro, por ciúme dela. Luiza se arrancharia por ali pra ficar o mais próximo dele. Aguardava sua soltura. 


Elisabete pelos meninos, era chamada de “rainha Elisabete”.  A rainha do Reino Unido dos meninos da copa de setenta. Nunca foi coroada, nunca teve luvas brancas de cetim. Nem chapéu, nem boina na cabeça. Nunca andou de carruagem, nem jamais sonhou com um príncipe desencantado. Elisabete nem sabia que existiam rainhas de verdade, tinha-as como seres de um mundo encantado. No entanto, a mulher mundana era tão branca como a londrina. Mulher dos homens. Tinha o cabelo ‘de fogo’. Os olhos pequenos, a boca de Merilin Monroe. Gostar gostava de estar de baton. Elisabete era albina. Elisabete mulher do mundo. Ia pra praça e logo estava rodeada de meninos. Mulher devassa, ninfomaníaca. Pouco se importava com o julgamento alheio. Mesmo que as mulheres damas, da alta sociedade a olhassem com desprezo, não se importava. Apontada como rapariga pouco se importava com o título. Desvirginou muito menino do grupo escolar do padre Albuquerque. No começo por puro prazer. Aprendia junto com eles os segredos do amor. Seriam muitos, em muitas noites. Elisabete a rainha e seus súditos. Lá iam descendo a avenida Martins Vieira, na calada da noite, protegidos pelas copas das árvores que faziam sombra das luzes dos postes. Iam em busca de um lugar ermo. O departamento de obras contra a seca – Dnocs ficava no caminho. A noite tornava-se um local aprazível.


Corina, Elizabete mulheres feitas pro mundo. De ganho ganharam o mundo. Não se intimidaram. Abraçaram sua causa, amaram e beijaram sua causa. Descobririam o que era - a um só tempo - amar e odiar. Talvez tivessem consciência de que o mundo dava e tirava. Entraram na vida de muitos, e muitos dentro delas entraram. Desusadas, abusadas até virarem estátuas de gelo, e perecerem. Vagariam pelo universo, até que seus nomes fossem escritos na palma da mão de Deus. 


 “Veio a mim a palavra do Senhor dizendo: Filho do homem, houve duas mulheres, filhas de uma mesma mãe. Estas se prostituíram no Egito; prostituíram-se na sua mocidade, ali foram apertados os seus seios, e ali foram apalpados os seios da sua virgindade. E os seus nomes era Aolá, a mais velha, e Aolibá, sua irmã; e foram minhas, e tiveram filhos e filhas; e, quanto ao seus nomes, Samaria é Aolá, e Jerusalém é Aolibá. E prostituiu-se Aolá, sendo minha; e enamorou-se dos seus amantes, dos Assírios, seus vizinhos. Vestidos de azul, capitães e magistrados, todos cobiçáveis, cavaleiros montados a cavalo. Livro de Ezequiel Cap. 23 vs 1-13”


Fabio Campos, 13 de novembro de 2015