AQUARIUS DELIRIUS (Em Quinta Dimensão)



Lá ia Cecília, pro mundo. Era sempre assim. Porem sozinha não ia, as Cecílias todas iam. Bem cedo, meio dia, de tarde, de noite. Sempre havia coisas pra resolver entre o mundo e as Cecílias. Pouco importava o por quê. Naquele instante, mais importante seria estar na praia andando de pés descalços. Com olhos de olhar o mar, pensando coisas que vinham com gosto de sal, totalmente. Um sol fadigado do amarelo fubazento dos pássaros esperando pacientemente o dia. As conchinhas madrepérola, substancial inoxidavelmente refletiriam a lua. Siris crustaceando, metalicamente, violáceos de ventos, debaixo dum céu infinitamente azul, azuladamente infinito.


Um dia Cecília amanheceu morena. Os cabelos amanheceram negros, feito uma noite sem lua. A franja que não precisava pentear. Franja que as noites de travesseiro não conseguiam nunca assanhar. Os olhos, duas castanholas, tristes castanhos. Fez tudo como nos outros dias. Sentada a mesa posta de sol, de frente pra dona Elvira sua mãe tomou café com leite, comeu pão francês com manteiga Camponesa. Queijo do reino, da lata vermelha, redonda como um coco. Não quis, porque achava muito salgado. Os dentes alvos, escovou fazendo um sorriso pro espelho. Sorriso com pouco riso e muito pensamento. Pensasse talvez nas linhas do caderno em branco, sem a resposta da tarefa de Ciências. E a escola chamou-a no toque tricúspide da sineta. E correu aos átrios do pátio. Os ventrículos do ventre moreno na blusa voando. Cantar, rezar, dizer bom dia a todos. Duramente concluiu que Eduardo amava mais jogar bola que qualquer outra coisa. Era uma realidade que tinha que aceitar se não quisesse mais conflito do que já lhe havia proporcionado. 


Os bicos dos albatrozes podiam, somente eles podiam. Navegar o mar suavemente pondo as asas no fio do horizonte. A ponta das penas, a ponta das patas, riscando a areia. A calça jeans, a bolsa de livros às costas, o tênis saltando os riscos da calçada, como quem com os pés tocasse um piano imaginário, gigantesco. E a música tempestuosamente tocando o ar. Uma a que os ouvidos escutavam: Mississipi, e outra que dentro da cabeça rememorava: Aquarius. Não havia necessidade que as ideias fossem compatíveis com a realidade. Não era preciso que tudo combinasse com a paisagem. Determinadas coisas estivesse séculos de anos atrasadas. Outra história sua tinha sido inventada. Cada vez mais se convencia que aquela, vivida realmente, não passava duma cópia completamente cheia de falhas, tanto quanto a primeira. O filme da moça dançarina era um passado sempre presente. Uma sombra boa de abraçar, de deixar se envolver. O homem de terno, encostado no poste da esquina. O som da música. Já não estava mais lá.  


Encontrou Rejane conversando com Eduardo. De melhor amiga passou a pior inimiga. A troca de olhar meloso entre eles. Foi flagrante ver a sirigaita praticamente se entregando nos braços dele. Os dois ali sozinhos, distante da turma. Ambos deviam-lhe satisfação. Ela, porque considerava amiga. Ele, porque, quer queira quer não, namoravam. Se não fosse algo sério, pelo menos estavam ficando. Prometera mais dias, menos dias namorariam de porta. 


O calçamento da rua um abismo negro, sair da calçada podia significar o fim. Precipitar-se num turbilhão de sentimentos num buraco negro, trevas, e o fim. A tempestade inevitável, os homens, eles é que não perceberam os sinais. Nunca fora indecifrável. Enigma onde havia apatia, ódio, volúpia se precipitando. Havia um homem num Corcel 73. O homem a chamou queria saber o nome daquela rua. Era um negro enorme, tinha os olhos vermelhos, como se tivesse chorado. Talvez por causa da fumaça dum cigarro branco, amassado. Queria saber quem morava na casa número 175 da esquina. As feições daquele negro não era de todo estranha. Talvez o tivesse visto no terreiro da casa do macumbeiro que morava ao lado do cemitério São José no sítio Barroso. No dia do sepultamento da tia de Rejane o viu. O alienado continuava olhando pro céu, comentava a respeito das nuvens. Falava das nuvens como se fossem moças que desfilasse sua beleza e juventude pela tarde. Despudoradamente sonharia com suas curvas desnudas. Fatalmente pediria perdão ao vento, a montanha, ao pé de coração da índia. A cigarra, no cantar, acabou confundida com um pardal. O toque duma viola lá longe, veio passando por cima das colchas coloridas no varal do vizinho. 

A moça ruiva de cabelo lindo, cantava música triste que falava do amor que sentia pelo Mississipi. Uma gaita, a guitarra, a calça boca de sino, trouxe tudo de 1977. Perturbou-se pele, mente e coração lembrando de Aquarius. E sentiu frio até a alma. Um frio salubre abrindo feridas antigas, abrindo na pele cortes que se pareciam vaginas. E eram cortes de facas de cabos pretos, azuis e branco que caiam de noite imediatamente sumindo, pra surgirem no raiar do dia. Um doce poderia se tornar amargo, não sendo doado com muita esperança podia travar na boca. Necessitava de um motivo pra aceitar a realidade, por que se apresentava inexoravelmente irreal. Absurdamente inadmissível. Inadmissivelmente absurda.


Cecilia pediu ao moço para lhe deixar em paz. Mas quanto mais pedia mais ele a importunava com perguntas,  porque tinha certeza que não estava bem. Nunca estivera tão bem, e não seria ele com sua cara de pateta que ia colocar em ordem mais de quinze anos de desordem. Pássaros vinham voando, em câmara lenta traspassava-lhe. Inevitavelmente abriam buracos enormes no peito, arrancando-lhe costelas e deixando sombras e pedaços de asas sangrentas. E homens bêbados que não podiam beber porque tomavam remédios controlados, se excediam, se descontrolavam. E dançavam no meio da rua uma dança estranha, sem medo. E iam levados pela cascata de paralelepípedos em brasa e larva, caindo no vazio. E o sol não sendo mais que uma bola de boliche quente dizendo calafrio e náuseas. O alienado estava esperando o cometa passar. Continuava parado, olhando o planeta, dizendo cores que não tinham textura, flutuava no nada. E o gosto na boca era de folhas de papel amareladas, como documentos velhos escritos em línguas que ninguém conseguia decifrar. Compreendia apenas o significado por trás do gesto ou das intenções veladas. 


Cecília entrou na sala do 2º ano, foi até a carteira de Rejane, agarrou-a pelos cabelos. As duas se engalfinharam. Foi preciso que o professor interviesse. A sala virou balbúrdia. E tudo era como se estivesse meticulosamente predestinado a acontecer exatamente do jeito que acontecia. O outro jeito era morte. No interrogatório na diretoria todos tiveram direito a falar. Ninguém ficou convencido de nada. A mãe de Cecília odiou tudo: filha, amiga da filha, professor, diretor, Eduardo, e odiou Deus por ter permitido tudo aquilo. Os registros não tivera a assinatura de todas as partes. A volta pra casa foi aquele outro inferno. No retorno um cavalo de ferro em brasa, as patas incandescentes deitando larvas no leito da rua. Os meninos feitos de gelo brincavam, sem a íris dos olhos donde vertia lágrimas de sal e mercúrio. E o rosto de areia em pedaços caindo, cada vez que as patas do corcel batiam com mais força no granito incandescente. O mau ficava visível na claridão dos dentes, do sorriso falso da caveira sobre o animal, cujas costelas se confundiam com o fundo negro. O cavalo e o bispo, de vidro, devagar descia a escadaria do castelo.


Cecília em transe ia pra quinta dimensão. As quatro já existentes - altura, largura, volume e tempo - se aglutinavam dentro da sua cabeça. A quinta se fazia presente toda vez que ocorria a êxtase psicótica. Tristeza e ódio, não conseguia tocar em nada apenas sentir. Espessa se sobrepondo, no espaço, onde nada era grave, nem havia gravidade, de galáxias muito distantes, tão longínquas que não podiam nunca ser vista da Terra. E enquanto houvesse mundo. Sempre haveria coisas pra se resolver entre ele e Cecília.


Fabio Campos 06 de novembro de 2015

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