Até Quando Deus Quisesse...

A casa agora estava vermelha. Os meninos estavam de volta. Nem as telhas conseguiram segurar o choro quando eles chegaram. Foi num fim de ano como aquele quando partiram. Havia uma lua crescente, que só dava pra ver quando viesse à noite. Vespertina volta. O pé de goiaba lá nos quintais, desafiando a lei darwiniana produziu de seus abrolhos esplêndidos frutos do maracujá, amarelos, vistosos. Mais pareciam bolas de bilhar deslizando na cortina verde do jardim suspenso dos animais. Saguis brincavam de olhar. Com seus enormes olhos de olhar olhavam. Com suas cabeças tridimensionalmente inquietas. Tão familiarizados com tudo. Sem receio algum a disputar a banana que a moça, com ajuda duma cadeira, colocara sobre o muro.

O homem na garagem ajuntava quinquilharia. Fazia isso todo fim de ano. Considerava que era tempo de livrar-se de coisas. Coisas que demasiadamente ia se ajuntando, ao longo do tempo, da vida. Duro, decidir entre o que devia ser descartado, e o que não. Coisas que acabavam trazendo ternas recordações, em cartas antigas, retratos que julgava perdidos, carcomidos. Discos, velhas canções. Era tempo de se submeter ao rito da águia. E ter coragem de extirpar o que um dia tinha sido útil, mas agora era peso morto. A bicicleta de marcha, magra, solícita. Como a dizer que dentre os que ali se encontrava ainda era dos poucos que tinha algum valor, serventia. Tão profissional, na arte de esticar, inflar músculos. Insinuava-se, convidativa, tristemente apelativa. Dois eskates entregues ao desprezo, ao esquecimento. Dormiam tranquilamente parecendo não se importar caso fossem, ou não, descartados. Chapéus, paletós velhos, a fantasia de marinheiro do último carnaval, uma coleção de canetas velhas, cadernos cheios de anotações. Um jogo de dominó faltando peças, baralhos incompletos de cartas viciadas. Uma fita vermelha da vela da primeira comunhão. Sabe-se lá de quem. Lembrou que era benta, atirá-la ao lixo jamais! Lentes de óculos de grau, vencidas. Por que tantas coisas sabidamente inúteis permaneciam guardadas? Algo daquilo, um dia ainda serviria, pra quê? A estima os salvava. Uma carteira cheia de cartões de apresentação, de disk táxis, disk botijão de gás, disk água mineral, disk pizza, restaurantes, lojas de departamentos, manicures, e tantas outras prestadoras de serviços. Tudo aguardando veredicto. Ficariam um ano mais ocupando espaço nas gavetas? Ou seria aquele o ano de serem descartados? Talvez no lixão tivessem mais chances, de alguma utilidade. Pedaços de fios, clips, alicates, chaves de fendas, martelo, lixas, tubos de fitas, de colas, latas com restos de tintas. Certa confiança tinham que não seriam vítimas do descarte. Um canivete, um abridor de vinho, um cortador de ponta de charutos! Donde, como entrara na sua vida? Não lembrava quando ou como alguns daqueles objetos tinham sido adquiridos. No entanto tudo que nos rodeia quando não conta uma história evoca outras. 

O cortador de charutos trouxe personagens dos tempos da guerra fria, das guerrilhas colombianas. Che Guevara e seu longo cabelo revolto, contido debaixo da boina de estrela vermelha, a barba da rebeldia dizendo ao mundo que lutaria até a morte. E ela viria, prematuramente viria. Fidel no seu impecável fardão, verdemente militar propagandeando ao mundo o mais rentável produto de sua ilha. A foto do jornal, em preto e branco, mas todos sabiam qual era a cor da dor. Esverdeada dor da ditadura. E o cheiro que cheirava era da fumaça dos charutos. O emblemático Winston Churchill, de chapéu coco, dentro de imenso sobretudo acenando pro público, a mão direita sem a luva a ostentar o calibroso acessório de folhas de tabaco. Benito Mussolinni com uma ushaka, o chapéu próprio pra o frio siberiano. Olhar ríspido queixo endurecido, tudo meticulosamente estudado, pra deixar claro quem mandava. Na limusine com teto conversível o presidente John Kennedy, desfilou para a morte pelas ruas de Dallas vítimas de atentado. Leonid Brezhnev estadistas russo, suas imensas sobrancelhas negras, seu rosto descomunal. Após discursar no trigésimo aniversário da República Alemã em Berlin, o beijo na boca do então primeiro ministro Herich Honecker. O ósculo de cumprimento, tão comum em seu país, girou o mundo escandalizado. Onássis e Jaqueline figuras do topo da sumaríssima lista dos milionários do século vinte.

Os meninos voltaram. Do tenebroso e fundo túnel do tempo, e da vida, para onde foram tragados, voltavam. Pareciam bem. A jornada que empreenderam talvez tenha causado poucas avarias aos nossos viajores. E riam, com tanta sinceridade, e se abraçavam, não conseguindo evitar um beijo em seus rostos de barbas pontudas, falhadas, tão a “La Che Guevara”. O Raul Seixas na parede era uma reprodução da capa do último disco. “Genesis” a banda de rock que um dia fundaram estava de volta. Os integrantes pelo menos ali estavam. Pouco importava se agora eram pais de família, o sonho adormecido renascia. O magro tocava guitarra, o magérrimo tocava Baixo, Davi era o vocalista. O que roubava chapéus do pai de Jó não tocava nada, pra compensar bebia, divertia os outros, se divertia. O botijão de vinho ia passando de mão em mão. Só um, Miqueias, era fumante. O licor dos deuses e púrpura eram os sorrisos. O do violão namorava [e um dia num breve futuro casaria] com a menina que tocava bateria. A Eva do paraíso conversava tranquilamente com a serpente aguardando calmamente o pé de manga dar maçãs. Patrícia fez uma foto bem Cindy Lauper. A trupe compunha-se de dois brutamontes, uma mina, dois magrelas, e um gordo. Toda turma que se preze tem um Pedrão, bem grande. O nosso era gigante de coração, em sorriso, em afabilidade. E o estômago, sempre carente de algo pra digerir. Pedrão porem só estava com a turma nas festas de natal e ano novo. 

A Banda Genesis caricaturava os “quatro de Liverpool”, os “Mamonas Assassinas”. Somente sob esse olhar se podia entendê-los. Davi, Jó, Amós e Marcos. Os pais jamais leram uma única linha da Bíblia, muito menos. Sequer haviam nascido quando certo metalúrgico do ABC paulista em São Bernardo do Campo, vindo de Pernambuco, num fim de ano como aquele, foi as ruas com a classe operária protestar contra a demissão em massa das fábricas de automóveis por conta da recessão. O sertanejo que teve o dedo mínimo da mão direita decepado, enquanto os patrões locupletavam fez valer a lei do grito. Não tinha dom da oratória mas discursou bonito. Com voz embargada diria o que todos queriam ouvir. Nada é mais convincente que a verdade, ainda mais, dita com simplicidade. O xará e conterrâneo de Luiz Gonzaga, cantou o baião do ‘basta de exploração’ que todos precisavam ouvir. Caetano Veloso Gilberto Gil, ousaram de Tropicália, em plena ditadura. Cadernos da faculdade donde arrancavam folhas, dos livros de Filosofia, pra fazer um baseado altamente cultural. Gal e Betânia, baianidade, morenez tão aflorada, reverenciada, e o Amado com maestria retrataria, nos livros que escrevia. 

Papoulas vermelhas, rosas amarelas de Valença trazidas. A década era explosiva o hino universal ‘Yesterday’ os Beatles tocava em todas as rádios. Louis Armstrong ‘Good Morning Vietnan’ ficou na mente aquela menina vietnamita nua correndo da vila onde morava que sofrera bombardeio, ataques dos seus irmãos do Vietnã do sul. Os anos desceram a ladeira junto com as trovoadas que arrastaria a bagaceira pro Panema. E a areia se acumulava na sarjeta tornando a rua impraticável. Um cheiro de besouro morto, molhado. Junto com a lama arrastavam-se os pensamento com gosto de trovoada. O café com leite gelado de doer primeiro nos olhos depois nos ossos.

O professor Paulo, de pé, olhando a tarde, enuviada e triste, através da janela da sala dos professores. Disse que tinha uma história pra contar. Era história de fim de ano. Sem se ater que era, contou: “Já faz alguns anos, meus alunos do curso de pós-graduação sabendo que eu ia embora, ensinar noutras plagas. Fizeram uma festa surpresa de despedida. Na ocasião deram-me de presente uma imagem de Nossa Senhora Santana. Com muito carinho guardei embora fosse um católico não muito atuante, de bom grado guardei o presente. Um belo dia na capital onde voltei a morar, conheci uma professora cuja irmã se encontrava em situação de saúde complicada a ponto de ir parar num hospital. O diagnóstico era depressão profunda. Caso persistisse o quadro, seria fatal. Chamei a amiga e com a imagem da santa na mão dei pra ela dizendo que tivesse fé. Ela a levou pro hospital. Desde o dia que a imagem foi colocada ao lado da cama da irmã da professora só houve melhoras e a moça recuperou a saúde. Ela devolveu-me a imagem dizendo que havia adquirido outra imagem de Santa Ana pra ela.” 

Os meninos tocavam Titãs, e o natal agora era passado distante. Uma semana se passara, e o mundo que separara a ‘Genesis’ deu de ajuntar outra vez. Outra mais se fariam necessárias, muitas outras. De idas e vindas assim era a vida. Lembrava que na infância natal era coisa de se ir. Vinha a missa passava, quadros na parede passavam. Cores das casas passavam. No ano que vinha teria que de novo pintar a fachada. O limo, descascava, desbotava de tristeza e de lembranças. A garagem tinha coisas pra ficar, ou ir embora. Agora mesmo, era hora de ensaio da banda Genesis. Até quando Deus quisesse...

Fabio Campos 30 de Dezembro de 2015. DESEJO A TODOS, UM FELIZ ANO NOVO!!!

LUZ, TREVAS, LUZES - Quase Um Conto de Natal



Natal nada poderia dizer, não fossem os objetos, e os homens. Os homens conversavam sentados na porta do mercado da esquina. Talvez não lembrassem que era natal. Do que falavam? Futricavam das nuvens que noutro dia passaram, e as que passavam então. Lembravam de velhos colegas que morreram. Dos que não conseguiram emplacar um ano mais. De certo de um menino que nascera num longínquo povoado quase desconhecido, esquecido. Talvez nem soubessem. Do pequeno vilarejo às vezes falavam. Onde ficava? Isso sabia. Tinha deles que era de lá.

Luz. Pra chegar lá era preciso domar o touro de fogo que campeava no firmamento. Pra chegar lá era preciso vencer a serpente de barro batido, que circundava a montanha gigante. Uma hora boa de caminhada, se não parasse pra nada. Melhor ir de manhã cedo, ou de tardinha pra não sofrer debaixo do bisonte abrasador de Deus. E lá estava a vila, com suas casinhas anãs, conversando umas com as outras. Final da madrugada, início daquela manhã, na penúltima casa da rua, comadre Antônia merendeira da cantina do grupo escolar, teve um bebê. Dera a luz uma menina que receberia o nome de Laísa. Se fosse menino se chamaria João. E seria dos que teriam vigor nos braços fortes e coragem pra carregar um balaio de pão na cabeça. Sendo menina seria prendada arranjaria bom marido pra juntos encherem a casa materna de netos. Criaria galinhas poedeiras, e todo ano sevaria um porco pro natal. E seus tios se animariam comentar. Pondo escárnio e tudo ficaria bem mais fácil. Com ênfase falariam da artrose que entrevava as vontades fosse verão ou inverno. E parecia que tudo perdia o gosto. Maldita falta de animosidade que aleijava até pensamentos. 

Trevas. A estupefação diante da obviedade de todo vivente, a morte. Tal qual o nascimento. Por que a morte não era aceita com naturalidade? Morrera João Felix o fazedor de arreios da vila. Era assim, o cachimbo da alegria incontida incensava a casa de comadre Antônia enquanto o bafo morno do chá da tristeza mornamente descia pela calçada, pela rua, em frente a casa de mestre João. Serelepe matina. Sisuda vespertina. Cavalos mantinham-se sérios, presos pelas rédeas a uma estaca na porta do salão fechado. Um retângulo negro na soleira dizia: Luto. Fantasmas de gente vagavam pelas calçadas. Aguardariam a saída do cortejo. Na palma da mão direita fechada compadre Nildo mantinha um isqueiro “rala-dedo”. Quem pegasse emprestado sentiria nele o calor do seu corpo. Os dedos do defunto rijos, frios, sem vida retinha ainda o cheiro de tabaco. A ponta do nariz severamente apontando pras telhas. Os olhos e os lábios serrados sem mais nada querer dizer, nada. O chapéu de massa azul profundo que tanto falava na cabeça, no cabide abandonado, mais nada dizia. Não importava, sempre pronto pra congelar todo olhar que pra ele acorresse. Sabia o que pensava quem olhasse pra ele. A sarjeta desigual, os bancos desiguais. Olhares desunidos. Palavras desencontradas, desconexas. Mal saiam da boca voariam errantes, cambaleantes. Bastariam verem-se soltas, esbarrariam nas paredes, cairiam no chão sujo, grudento de pétalas de flores pisoteadas. Ninguém as queria, inúteis, desfalecidas sobre o féretro. Quando o cortejo saísse duma trovoada ia carecer o mundo pra lavar a alma da rua. O negro automóvel da funerária cúmplice do crime cometido pelo vento que derrubou o único azul que restava. O único Cristo que havia ficaria sozinho com seu olhar indefinido de papel de feltro. A única vela que ainda restava acesa se apagou. O tonel encostado no poste lá na calçada espreitava delinquentemente, sujo, esmolambado, inconveniente. Olhos vermelhos rosto banhado de lágrimas, pranto dos familiares, pranto. A hora mais dolorida, a hora de por a tampa do caixão, a hora da saída. Desespero, choro incontido. Comovente.

Luz. De novo outra manhãzinha vinha pelo meio rua. Na rua tinha um homem. Um homem calado. Pensamentoso não se dava conta que era paisagem. Perdia o amanhecer, ruminando pensamentos. O dia gritava silenciosamente sua sinfonia, pobre homem nada escutava. Seus olhos cegos não alcançavam o canto dos pássaros, solitário varria a rua de manhãzinha. Juntava um pouco aqui e acolá depois ia com a pá, apanhava. A tarde se encheria de redemoinhos. E viria o caminhão e pegaria os lixos das casas. O homem do caminhão de óculos escuros a qualquer hora do dia, ninguém jamais vira seus olhos. Nem no dia do natal quando todos se cumprimentassem cumprimentariam um par de lentes escuras. Caso sorrisse de certo teria um dente de ouro. As escolas em clima de final de ano. Pondo os meninos a encherem as ruas de zoada boa, alegria farta. Correria de sapatos plaf-plaf nos corredores, no calçamento. Interessante as nuvens passageiras se descendo a esquerda do por do sol. Donde viria tal hidrogenia? Teria sido dum lago velho onde cavalos pastavam na relva onde um vento soprava nas folhas dos pés de manga.

Trevas. O homem que parecia um jangadeiro encontrou charque e bacalhau no tonel de lixo da calçada. Cheirou pareceu ter gostado do que seu olfato percebeu. Estava garantida a ceia de natal. Uma caixa de fósforos, uma garrafa de água mineral com dois dedos de um amarelo amendoado. Óleo de soja? Gasolina? O suficiente pra destruir o mundo, destruir uma fome, destruir uma vida. Dormiria num pedaço de papelão de uma caixa de fogão. Se cobriria com um saco plástico. Ao lado uma caixa com uma lata cheia de cachaça. A luz da marquise tinha besouros teimosamente batendo contra o bulbo. 

Luzes. Havia a lembrança de um fim de ano que todas as crianças do grupo do Padre Albuquerque foram ao clube festejar. Distribuíram guaraná nuns copos de papel de aniversário colorido, e uma fatia de bolo num guardanapo. Alguém queria briga e houve uma encrenca. Alguém tentaria bater no menino de camisa branca, sapatos, meias marrom, e calção de botões na braguilha. O menino não entendia porque aquela raiva. O irmão do outro pra mostrar quem mandava derrubou-o ao chão. Ruim não fora cair, muito pior era sentir-se indefeso. O menino não queria agressão só era incompreendido. Como fora de outra vez quando Lucas um colega negro lhe chamou pra briga e não topou por vários motivos. Primeiro como brigaria se não tinha raiva do outro. Acabaria não revidando os socos que porventura o outro lhe desferisse. E os meninos que jamais sabiam o que era uma lapinha caminhavam por entre os partidos de cana. O vermelho que chegava ali, de certo que não era o do Noel, era do carro de bombeiro. Os piscas-piscas que vez outra chegava até lá não eram de árvores de natal. Era de viaturas da polícia, as guirlandas que ia naquele lugar não enfeitavam as soleiras das portas, enfeitavam túmulos de cadáveres cujos retratos desbotados não refletiam mais a realidade. A manjedoura nunca teve feno, nem capim elefante. Teve sal. Teve formol, e estava perfurada de balas. E o sangue fazia desenhos enquanto descia ferindo mortalmente o calçamento. 

Natal nada poderia dizer. Talvez fosse feito de objetos, e de homens. Os homens sentados na porta do mercado da esquina conversavam em torno dum garrafão de vinho. Talvez festejassem o natal. Do que falavam? Do calorão que fizera o dia todo, a semana toda. Melhor dizendo o mês inteiro. As nuvens que passavam, já não eram as mesmas. Sempre a formarem outros desenhos assim dizia minha mãe. Lembravam velhos colegas que morreram. De certo de um menino que nascera num longínquo povoado quase desconhecido, esquecido talvez não lembrasse mais. Do pequeno vilarejo às vezes falavam. Onde ficava? Que filhos meus completam ano esse mês? Precisava que alguém a auxiliasse.

De certo que quando João Felix chegasse no céu lá vinha Jesus ao seu encontro, a puxar conversa: “-João amigo velho... Quer dizer então que você foi que fez aquele chicote com que os soldados tanto bateram em minhas costas? E João sorriso maroto diria: “-Eu?... Fui eu não Senhor! Eu lembro que o padre da igreja uma vez me pediu pra fazer um par de alpercatas pro senhor. Ele botou numa imagem que saiu na semana santa. Lembra?” Nisso vem chegando o xará do nosso amigo. Barbudo, a barba já branca, cajado na mão. Vestido numa pele de cordeiro, completou: “-Pois foi. Justo àquela que não sou digno de desatar as correias. Até hoje.”

Fabio Campos, 21 de Dezembro de 2015.

ATÉ NUNCA MAIS...[Toque de "IL Silenzio" - Andre Rieu]



Tinha um menino olhando. A mulher porém, não o via. Descendo do carro, pegou pacotes no banco da frente, levou pra dentro, voltaria pra pegar os que ficaram. Não se dava conta que era observada. O pensamento ia longe, cheio de tantas coisas, tanto, que o entorno era esquecido. Mentalmente listava os ingredientes do bolo que ia fazer. Mas o que faltava mesmo? Faltava ainda a manicure, o cabeleireiro. Por Deus! Carvão pra churrasqueira... Sabia que tinha esquecido algo... O menino sorrateiramente pulou o balaústre do jardim. Aproveitando a porta aberta entrou na garagem, e ficou aguardando o momento certo.

A estrada de todos os dias agora estava moderna. Perto de três décadas já se passara, desde que fora plainada e ganhara tapete negro de betume agora recrudescido. Mas nem sempre fora assim. Houvera dias de pouca glória, de vastidão, de seca, e toda tristeza do mundo um dia já habitara ali. Ó tristeza, pra onde foste habitar? Pouco a pouco empurrada, pra bem distante, indo embora até sumir lá longe. Pra onde os olhos gostariam muito de ir novamente encontrar. Estrada de chão batido, de costelas de vaca, de carro de boi. De pouquíssimas coisas que tivesse vivas cores, onde os olhos pudessem descansar daquela aridez. O curral? Onde foi parar o velho curral, de paredes desmoronando? Uma nesga de construção de alvenaria. Um canto de sala, um resto de cimentado dizendo já fui. Já tive valor. Abriguei gente, era família numerosa, infelizmente foram embora, me abandonou. Já não servia pra mais nada desde aquele tempo. Uma cancela também velha, torta, descadeirada. Um cercado caindo aos pedaços. Uns arremedos de estacas esturricadas, arame farpado enferrujado, retorcido. Como se o que restava ali tivesse sobrevivido a um ataque nuclear. 

Tudo dava dó de ver, de sentir, de estar lá. E novamente estava. Sempre que quisesse ia até lá. Era só querer, e sempre queria. Pois, apesar de sofrida, boa era aquela lembrança. Capoeirão vasto de ver, de apertar os olhos de tanto sol. De suor pingando, gado magro pra apartar. Os irmãos se revezavam no serviço brabo, um a cada dia da semana. Chocalho batendo seco, seu badalo compassado, marcado no passo do casco bipartido. Uma coisa dava para perceber, no vasto ambiente não se via uma única embalagem de plástico abandonada. Descartado ali somente o que era do próprio sertão. Seixos, ossos, gravetos, pedras de bolandeira, garrancho de catingueira, tacos de palma.


A mulher agora falava ao telefone móvel, ia até a cozinha, voltava. No sofá a bolsa, os pacotes, os óculos, a carteira aberta. Através da janela, sem ser visto, o menino observava. A noite ia caindo, ajudando com isso o observador intruso a concretizar seus atos, sem ser importunado. Alguns transeuntes passavam pra caminhada vespertina, trajados em seus colantes, calçados em seus tênis próprios para marchas longas. O velho vendedor de doces com seu chapelão de palha, todos os dias àquela hora retornava, pelo mesmo caminho A oferecer sua variedade, a base de açúcar: goiabada em pasta, em calda, em postas. Doce de leite, doce de manga. E sucos de graviola, e mangaba, e umas frutas exóticas chamadas kiwí e açaí, propagadas como ótimas, energéticas. Aos homens maduros pregoava como estimulantes sexuais. Depois viria o vendedor de mungunzá com divulgação difusora, numa gravação a voz de falsete, o locutor apregoava as maravilhas da iguaria do Tony. O vigilante do posto de gasolina, nem ele, homem treinado pra ver o que os outros não via, se quer percebeu que algo errado se sucedia. Seguiu levando sua bolsa de companhia sub noturna, contendo casaco, garrafa de café, sua arma de fogo uma bíblia. Os meninos retardatários da escola brincavam de correr. A não perderem de vista os jardins pra tirar uma rosa, um abrolho. No entanto ninguém notava o menino furtivo espreitando pela janela. 
   

Placas de sinalização implacavelmente agredidas. Sem conseguissem dizer o que queriam, diriam apenas placa. Tem coisas que de nada adiantava achar ruim. Mais uma borracharia foi aberta, justo na entrada da rua. A mulher não achou nada legal. Viu agressividade, aspecto de lixo que ficaria o entorno e o frontespício da capela. Pneus velhos iam se amontoando na calçada da igreja. Comprometiam a bela vista.  A casa da mãe. O homem sujo de graxa argumentava, sem saber de nada, sem nada dizer, que precisava ganhar dinheiro, que era um cristão, um filho de Deus, um pai de família como outro qualquer. Mesmo assim não convencia, não amolecia a dureza de coração da mulher. Os homens usavam refugos de pneus para sentar, com um pedaço de tábua improvisaram um tabuleiro pra jogar dominó. A depender da hora e do dia, o cenário mudava. A tardinha tinha meninos andando de bicicleta, pra noutro instante uma roda de operários a revezarem uma garrafa de aguardente. O borracheiro, nas horas vagas, por trás dos óculos raiban ficava olhando a vida e os carros passar. Os carros, predador espreitando sua presa.   O boné sem cor definida atolado na cabeça, impregnado de graxa e óleo, assim como todo o corpo, bem como suas vestes. Tomasse banho pra ir à missa do galo levaria o perfume dos motores de combustão pra igreja. Seria sua única oferenda. 


A filha da mulher, àquela hora sempre voltava da faculdade. Finalmente a esperança de que alguém pudesse flagrar, e surtar os planos vis do menino espreitador. O barulho da batedeira vindo da cozinha indicava que a massa do bolo logo estaria pronta. Faltava os últimos retoques na árvore de natal, ligar os piscas-piscas. Eis mais uma chance do menino ser descoberto, fosse a mulher até a janela checar as luminárias brilhantemente acesas, ela sempre fazia isso. Não se conformava em apenas apertar o comutador tinha que ir até o jardim contemplar sua obra, de todos os anos, no natal. Não tinha como não ir. Era o encontro entre criadora e criatura. Dessa vez o menino seria descoberto. A mulher surgiu no campo de visão do menino que tomou um susto. Lá estava no meio da sala metida num roupão, o rosto coberto por uma máscara de creme que isentava somente os olhos. Seu lindo cabelo escondera dentro duma toalha que lhe punha com aparência de um rajá com seu turbante branco. Toda beleza esvaída, noutra pessoa transfigurada. A bela, remediavelmente transfigurada na fera. 


O homem da casa estava distante. Ao menos pra aquela situação, com ele ninguém podia contar. Tão necessário naquele momento de aflição, no campo dos anjos. Na estrada viajando, dirigindo um caminhão, carregado de esperanças, em melhores dias.  O anjo da guarda tão amplamente requisitado durante as orações da família devia estar muito ocupado pensando que ali sua presença fosse dispensável. Afinal nada de interessante acontecia ali. A boleia, pra espantar a tristeza, enchia de música. As lembranças ainda que magoassem mesmo assim eram bem vindas. Mas como espantar tristeza ouvindo “O Toque de il Silênzio”? Aquela triste melodia, trazia o passado, lembrava de quando conheceu a amada, na festa da padroeira, no encerramento das atividades do parque de diversão. A última volta na praça, o último beijo, furtivo até. O menino Jesus quietinho na manjedoura, rodeado de São José e de sua mãe serenamente pensativa, pensava: “-Ele veio pra salvar o mundo.” O seu plano de salvação incluía a mulher vaidosa, a filha voltando da faculdade. O marido na estrada, o menino que planejava má ação.  E aquele considerou que era hora de entrar em ação.


Um vidro de perfumes aberto escapou pela porta do quarto aberta. Espalhou vigor de uma manhã de sertão por toda casa. O quadro da ponte, a cascata congelada, o frio da alma que a tudo via, via e sentia. O cheiro de bolo no forno. A longa cinza cilíndrica do cigarro, sozinho consumido no cinzeiro. O chuveiro, por trás da cortina de plástico, o sabonete percorrendo o corpo nu. No box do banheiro, uma canção de natal num rum rum-rum-rum, de lábios serrados, que se saísse em palavras sairia “noite feliz” repetidas vezes.


O menino pegou a carteira, a bolsa, o telefone móvel, e um litro de uísque no bar perto do centro. Rapidamente fez o caminho de volta. Uma vez na rua foi encandeado pelo farol da moto do vigilante noturno na sua campana. Soube na mesma hora do que se tratava. Sacou o revólver, ordenou que o menino parasse, abandonasse os pertences, deitasse no chão. O menino não lhe atendeu. Um estampido, um projétil a interceptar a fuga. Fez estrago numa vértebra lombar. Levado ao hospital, entre a vida e a morte. Sobreviveu. E veio natal. Outros natais viriam. Da mulher, do homem do caminhão, da menina universitária, jamais seria o mesmo. Até nunca mais. A noite feliz do menino, muita gente se confraternizando.  Presentes, sendo abertos, passando de mão em mão. Todos abraçavam o menino. Faziam-lhe cafunés, no fulgor dos ânimos rodopiava a ele, em sua cadeira de rodas.


Fabio Campos. 14 de Dezembro de 2015

QUEDAS VENIAIS [My Mistake - Pholhas - 1977]


Nem se dobrara direito ainda o dia, por debaixo do negro cobertor. Acabara de se deitar sob o peso da própria fadiga às primeiras horas de trevas a rua. Se bem que nem dava pra considerar aquele rabo de vila como sendo uma rua. Não passava de quatro ou cinco casas. Feito peças de dominó postas de pé. Uma arcada de dente falhada ou espiga de milho bonecada que o sertão brabo deixara de vingar.

Ia um homem caminhando. A pouca luz obrigava os instintos, aguçar outros sentidos, além da visão. Bom seria que houvesse escuridão apenas. Para além dos postes apagados, havia a escuridão das almas. O farfalhar das asas dos demônios. Caminhar no escuro só não é problema pra quem já conhece o terreno onde se pisa. E o homem não demonstrava que conhecia ali. Aliás, toda a cidade pra ele, era estranha. Porem já se acostumara a andar debaixo das trevas ainda que com muito calor. E tão abafado estava o tempo que um músculo, uma folha sequer do pé de figo mexia. Uma rua vazia, uma casa feia, muitas casas feias. De longe algumas coisas feias acabam virando poesia. Tão lá longe, que nem dava pra ver a tristeza que havia. Apenas se imaginava que muito triste estavam porque era quase natal e não havia como antigamente árvore pra montar, nem piscas-piscas de luzes coloridas. Uma lua cheia, de histórias pra contar, como que choramingando. O homem de corpo, ia sozinho embora testemunhasse a tudo não queria escutar a ninguém. Bem baixinho disse pra si, algo que não queria nem que Deus escutasse, porque o que ia fazer talvez não fosse bom. Disse bem assim, “É tempo de ir.” E sem dizer pra onde, foi. Desceu uma ribanceira seguiu por um terreno baldio.

As meninas que jamais gostavam de serem chamadas de menina já tinham se ido. Era quase noite, suas almas porem permaneceram brincando na praça pequenina, tão pequena que mal cabia seus pés descalços, nos resvalos caiam, e riam de suas quedas. As mães sentadas nos bancos diriam pra terem cuidado, e que lavassem os pés antes de se deitar. Dava pra ouvir muito longe os acordes de uma banda de música, o trompete reinando astuto, os demais instrumentos no seu encalço. O cantor empolgado atirava graves que voavam e, ao passar por entre as folhas do pé de mamão, que dera frutos pros pais das meninas, destoavam ao vento. Os olhos dos gatos que um dia o pai os alimentou ao pé da mesa, com as sobras de sua janta, agora vagavam nas telhas de argila coberta de limo e calor refratário. No passado, ainda novas eram tão vermelhas. O primo de olhos verdes que fora pro Mato Grosso retornou, vinte anos mais velhos. Os olhos continuavam os mesmos. Foi por eles que o reconheceu, pelos olhos. Agora calvo, os longos cabelos e a barba ficaram brancos. Tinha deixado de fumar. Não jogava mais bola como jogava na areia do Panema. Quando tinha oportunidade ainda montava cavalo. Será que lembrava do incêndio no paiol da casa da barragem? 

Com muita nitidez, e com todo pavor, do passado veio o dia do incêndio. Por mais longe que estivesse aquele dia, ainda conseguia encher-se de terror. Os sapos e cobras tentando fugir como podiam, os que não conseguiam crepitavam nas línguas vorazes de fogo. Saguis e cassácos queimados vivos virando horrendos bibelôs, perfeitos pra enfeitar antessala dos infernos. O azeite da mamona ardendo, enchiam os olhos e o nariz de fumaça. Uns vidros com água, álcool e formol na prancha da parede estouravam antes mesmo de serem atingidos pelo fogo. Seu Zé do Chapéu cedo da tarde amarrava o cavalo ali pra pastar. O cavalo de seu Zé do chapéu, salvo pelo próprio fogo que queimou a corda livrando-o do laço da morte. Também a parelha de boi de seu Andrade que desde manhã pisoteava e comia o capim seco agora quase morria queimado, não fosse o negrinho que Seu Andrade criava a os acudisse. Os passarinhos aturdidos buscavam outros abrigos, encandeando-se pela luz do fogo intenso acabavam batendo no muro do grupo e caiam na passarela, os gatos aproveitavam para caçarem sua janta. Os fundos da casa de seu Antônio nunca vira tanto clarão e quentura em suas paredes bolorentas. O cachorro no quintal, acorrentado ao pé de limão pressentia o perigo latia pro fogo, como se com isso conseguisse afugentá-lo. Conseguiu somente ficar rouco e um ferimento da coleira no pescoço. 

O velho Macambira, já bêbado, vinha da roça, ao ter aquela visão atirou a enxada no chão, dançando agradeceu a Deus, pelo fogo pois o tinha como algo divino, e muito poderoso, desconsiderando totalmente o lado destrutivo. A fumaça benfazeja foi aos quartos de dormir acordou os mosquitos, a beijar lençóis e forros com seu beijo sujo. A menina que estava na cama chorou porque tinha medo de fogo daquele tamanho. De fogo pequeno que a vó fazia detrás de casa não tinha. Medo mesmo de trovão, relâmpago e do “velho do saco”. Lembrou do dia abafado que havia arrancado um dente. Doía muito e doeu mais ainda quando começou a trovejar e relampear. O coração disparado, de sangue encheu um lençol de cama. Paula perigosa, mesmo com o dente arrancado foi andar a cavalo foi bater na roça. Foi só vir à boca da noite viu estrelas. Roger deu um pedaço de fumo pra colocar na gengiva aberta pra ver se estancava a sangria. Ao pé da cama o penico de estanho branquinho, da borda preta, vermelhou. 

O menino traquino da última casa da rua banguela, rua dos doidos, aproveitou o alarido do fogo, invadiu a casa da vizinha, roubou o rádio, a lanterna, a faca peixeira e a bicicleta. Comeu salame e o queijo tirou da geladeira deixou encima da mesa. Pegou uma calça, jeans, um par de tênis e uma camisa. Tomou banho no quintal sobre a mureta onde as meninas se banhavam, a toalha molhada largou sobre as calcinhas das meninas. Tempos atrás quando a água escasseou na cidade com umas babonas de plástico na estação rodoviária ia buscar, fazendo o caminho até alta madrugada. Pegar água num carrinho de mão toda noite pra lavar roupas, beber, tomar banho e preparar comida. As meninas e o menino iam pra escola de bicicleta. Da porta Vânia cumprimentava com um bom dia. Foi um ano tão seco aquele que até o riacho do bode, o lago artificial feito pelo governo, ameaçou secar. Seu Zé Rosa, o vigia foi instruído a proibir a pesca de tarrafas e litros que pegavam pitu. Somente a pesca de vara e anzol estava permitido. Mesmo assim já existiam os ímpios que além de descumprirem as ordens acendiam pequenas fogueiras que provocavam incêndios. Teve um dia que ao voltarem do Gravatá cozinharam uma dúzia de ovos de pata e comeram ali mesmo. Uma cobra cascavel não se intimidando com nada continuou devorando um sapo enorme. As poças d’água na estrada depois da trovoada faziam medo porque parecia assombração, Na descida da Serra da Camonga de bicicleta, um deles ficou sem freio. Quase se esbagaçava em cima dum arame. Socorrido que foi pelos meninos carvoeiros que vinham da rua com suas mulas. 

A noite avançava e mais claro ia ficando o enigma do estrangeiro. O homem pediu de comer numa casa, ali perguntaram seu nome. Atendia pelo nome de James, viera de Jaboatão dos Guararapes a pé. Longa jornada do litoral pernambucano pro sertão de Alagoas. Ficou vagando pela Serra dos Macacos, e surgiu um foco de incêndio lá, e puseram a culpa nele. Na Lagoa do Junco também esteve, e novo foco de incêndio na calada da noite iniciada, tanto avançou que ameaçou as casas. De novo disseram ter visto um homem mal encarado andando por ali. Na encosta do morro do Pelado em pleno meio dia o fogaréu comeu solto. Um doido andou passando por aqui, disseram. Faltava a prova que realmente era James.
  
James era de pouca conversa, doutora Jaqueline no entanto conseguiu arrancar dele muitas coisas. Era alcoólatra tinha passado pelo menos umas três vezes pela Centro de reabilitação “Casa de Jericó” em Marechal Deodoro. Na última vez que passou lá, ficou dois meses, e conseguiu fugir. De que fugia? Das vozes que ouvia. Tinha esperança que nessas caminhadas por onde ia, um dia encontrar a paz, era o que tanto procurava. 

Estava feliz agora, ia passar o natal junto com nove novos amigos, que conseguira no fim daquele dia. Tinha muito o que ouvir porque contar não gostava. A uma última pergunta da psicóloga sobre se não se cansava de andar tanto a pé. Diria que andar não cansava. Cansava fechar os olhos ver trevas, ouvir vozes. A escuridão dos olhos fechados dava-lhe medo, e tinha medo de dormir, de escuridão. Verãozão lá fora, maior calorão, e os braços frenéticos. Aquele frio, de onde vinha? Precisava se aquecer.

Fabio Campos 07 de dezembro de 2015