Até Quando Deus Quisesse...

A casa agora estava vermelha. Os meninos estavam de volta. Nem as telhas conseguiram segurar o choro quando eles chegaram. Foi num fim de ano como aquele quando partiram. Havia uma lua crescente, que só dava pra ver quando viesse à noite. Vespertina volta. O pé de goiaba lá nos quintais, desafiando a lei darwiniana produziu de seus abrolhos esplêndidos frutos do maracujá, amarelos, vistosos. Mais pareciam bolas de bilhar deslizando na cortina verde do jardim suspenso dos animais. Saguis brincavam de olhar. Com seus enormes olhos de olhar olhavam. Com suas cabeças tridimensionalmente inquietas. Tão familiarizados com tudo. Sem receio algum a disputar a banana que a moça, com ajuda duma cadeira, colocara sobre o muro.

O homem na garagem ajuntava quinquilharia. Fazia isso todo fim de ano. Considerava que era tempo de livrar-se de coisas. Coisas que demasiadamente ia se ajuntando, ao longo do tempo, da vida. Duro, decidir entre o que devia ser descartado, e o que não. Coisas que acabavam trazendo ternas recordações, em cartas antigas, retratos que julgava perdidos, carcomidos. Discos, velhas canções. Era tempo de se submeter ao rito da águia. E ter coragem de extirpar o que um dia tinha sido útil, mas agora era peso morto. A bicicleta de marcha, magra, solícita. Como a dizer que dentre os que ali se encontrava ainda era dos poucos que tinha algum valor, serventia. Tão profissional, na arte de esticar, inflar músculos. Insinuava-se, convidativa, tristemente apelativa. Dois eskates entregues ao desprezo, ao esquecimento. Dormiam tranquilamente parecendo não se importar caso fossem, ou não, descartados. Chapéus, paletós velhos, a fantasia de marinheiro do último carnaval, uma coleção de canetas velhas, cadernos cheios de anotações. Um jogo de dominó faltando peças, baralhos incompletos de cartas viciadas. Uma fita vermelha da vela da primeira comunhão. Sabe-se lá de quem. Lembrou que era benta, atirá-la ao lixo jamais! Lentes de óculos de grau, vencidas. Por que tantas coisas sabidamente inúteis permaneciam guardadas? Algo daquilo, um dia ainda serviria, pra quê? A estima os salvava. Uma carteira cheia de cartões de apresentação, de disk táxis, disk botijão de gás, disk água mineral, disk pizza, restaurantes, lojas de departamentos, manicures, e tantas outras prestadoras de serviços. Tudo aguardando veredicto. Ficariam um ano mais ocupando espaço nas gavetas? Ou seria aquele o ano de serem descartados? Talvez no lixão tivessem mais chances, de alguma utilidade. Pedaços de fios, clips, alicates, chaves de fendas, martelo, lixas, tubos de fitas, de colas, latas com restos de tintas. Certa confiança tinham que não seriam vítimas do descarte. Um canivete, um abridor de vinho, um cortador de ponta de charutos! Donde, como entrara na sua vida? Não lembrava quando ou como alguns daqueles objetos tinham sido adquiridos. No entanto tudo que nos rodeia quando não conta uma história evoca outras. 

O cortador de charutos trouxe personagens dos tempos da guerra fria, das guerrilhas colombianas. Che Guevara e seu longo cabelo revolto, contido debaixo da boina de estrela vermelha, a barba da rebeldia dizendo ao mundo que lutaria até a morte. E ela viria, prematuramente viria. Fidel no seu impecável fardão, verdemente militar propagandeando ao mundo o mais rentável produto de sua ilha. A foto do jornal, em preto e branco, mas todos sabiam qual era a cor da dor. Esverdeada dor da ditadura. E o cheiro que cheirava era da fumaça dos charutos. O emblemático Winston Churchill, de chapéu coco, dentro de imenso sobretudo acenando pro público, a mão direita sem a luva a ostentar o calibroso acessório de folhas de tabaco. Benito Mussolinni com uma ushaka, o chapéu próprio pra o frio siberiano. Olhar ríspido queixo endurecido, tudo meticulosamente estudado, pra deixar claro quem mandava. Na limusine com teto conversível o presidente John Kennedy, desfilou para a morte pelas ruas de Dallas vítimas de atentado. Leonid Brezhnev estadistas russo, suas imensas sobrancelhas negras, seu rosto descomunal. Após discursar no trigésimo aniversário da República Alemã em Berlin, o beijo na boca do então primeiro ministro Herich Honecker. O ósculo de cumprimento, tão comum em seu país, girou o mundo escandalizado. Onássis e Jaqueline figuras do topo da sumaríssima lista dos milionários do século vinte.

Os meninos voltaram. Do tenebroso e fundo túnel do tempo, e da vida, para onde foram tragados, voltavam. Pareciam bem. A jornada que empreenderam talvez tenha causado poucas avarias aos nossos viajores. E riam, com tanta sinceridade, e se abraçavam, não conseguindo evitar um beijo em seus rostos de barbas pontudas, falhadas, tão a “La Che Guevara”. O Raul Seixas na parede era uma reprodução da capa do último disco. “Genesis” a banda de rock que um dia fundaram estava de volta. Os integrantes pelo menos ali estavam. Pouco importava se agora eram pais de família, o sonho adormecido renascia. O magro tocava guitarra, o magérrimo tocava Baixo, Davi era o vocalista. O que roubava chapéus do pai de Jó não tocava nada, pra compensar bebia, divertia os outros, se divertia. O botijão de vinho ia passando de mão em mão. Só um, Miqueias, era fumante. O licor dos deuses e púrpura eram os sorrisos. O do violão namorava [e um dia num breve futuro casaria] com a menina que tocava bateria. A Eva do paraíso conversava tranquilamente com a serpente aguardando calmamente o pé de manga dar maçãs. Patrícia fez uma foto bem Cindy Lauper. A trupe compunha-se de dois brutamontes, uma mina, dois magrelas, e um gordo. Toda turma que se preze tem um Pedrão, bem grande. O nosso era gigante de coração, em sorriso, em afabilidade. E o estômago, sempre carente de algo pra digerir. Pedrão porem só estava com a turma nas festas de natal e ano novo. 

A Banda Genesis caricaturava os “quatro de Liverpool”, os “Mamonas Assassinas”. Somente sob esse olhar se podia entendê-los. Davi, Jó, Amós e Marcos. Os pais jamais leram uma única linha da Bíblia, muito menos. Sequer haviam nascido quando certo metalúrgico do ABC paulista em São Bernardo do Campo, vindo de Pernambuco, num fim de ano como aquele, foi as ruas com a classe operária protestar contra a demissão em massa das fábricas de automóveis por conta da recessão. O sertanejo que teve o dedo mínimo da mão direita decepado, enquanto os patrões locupletavam fez valer a lei do grito. Não tinha dom da oratória mas discursou bonito. Com voz embargada diria o que todos queriam ouvir. Nada é mais convincente que a verdade, ainda mais, dita com simplicidade. O xará e conterrâneo de Luiz Gonzaga, cantou o baião do ‘basta de exploração’ que todos precisavam ouvir. Caetano Veloso Gilberto Gil, ousaram de Tropicália, em plena ditadura. Cadernos da faculdade donde arrancavam folhas, dos livros de Filosofia, pra fazer um baseado altamente cultural. Gal e Betânia, baianidade, morenez tão aflorada, reverenciada, e o Amado com maestria retrataria, nos livros que escrevia. 

Papoulas vermelhas, rosas amarelas de Valença trazidas. A década era explosiva o hino universal ‘Yesterday’ os Beatles tocava em todas as rádios. Louis Armstrong ‘Good Morning Vietnan’ ficou na mente aquela menina vietnamita nua correndo da vila onde morava que sofrera bombardeio, ataques dos seus irmãos do Vietnã do sul. Os anos desceram a ladeira junto com as trovoadas que arrastaria a bagaceira pro Panema. E a areia se acumulava na sarjeta tornando a rua impraticável. Um cheiro de besouro morto, molhado. Junto com a lama arrastavam-se os pensamento com gosto de trovoada. O café com leite gelado de doer primeiro nos olhos depois nos ossos.

O professor Paulo, de pé, olhando a tarde, enuviada e triste, através da janela da sala dos professores. Disse que tinha uma história pra contar. Era história de fim de ano. Sem se ater que era, contou: “Já faz alguns anos, meus alunos do curso de pós-graduação sabendo que eu ia embora, ensinar noutras plagas. Fizeram uma festa surpresa de despedida. Na ocasião deram-me de presente uma imagem de Nossa Senhora Santana. Com muito carinho guardei embora fosse um católico não muito atuante, de bom grado guardei o presente. Um belo dia na capital onde voltei a morar, conheci uma professora cuja irmã se encontrava em situação de saúde complicada a ponto de ir parar num hospital. O diagnóstico era depressão profunda. Caso persistisse o quadro, seria fatal. Chamei a amiga e com a imagem da santa na mão dei pra ela dizendo que tivesse fé. Ela a levou pro hospital. Desde o dia que a imagem foi colocada ao lado da cama da irmã da professora só houve melhoras e a moça recuperou a saúde. Ela devolveu-me a imagem dizendo que havia adquirido outra imagem de Santa Ana pra ela.” 

Os meninos tocavam Titãs, e o natal agora era passado distante. Uma semana se passara, e o mundo que separara a ‘Genesis’ deu de ajuntar outra vez. Outra mais se fariam necessárias, muitas outras. De idas e vindas assim era a vida. Lembrava que na infância natal era coisa de se ir. Vinha a missa passava, quadros na parede passavam. Cores das casas passavam. No ano que vinha teria que de novo pintar a fachada. O limo, descascava, desbotava de tristeza e de lembranças. A garagem tinha coisas pra ficar, ou ir embora. Agora mesmo, era hora de ensaio da banda Genesis. Até quando Deus quisesse...

Fabio Campos 30 de Dezembro de 2015. DESEJO A TODOS, UM FELIZ ANO NOVO!!!

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