JULHO, OUTRA VEZ...



Era julho outra vez. O quintal, o pé de manga alcançando as alturas. Resignada a goiabeira curvava-se ante o maioral. O pé de maracujá arteiro escalou os dois. Foi-se embora rameando-se pelo meio das majestosas fruteiras. Sempre que se falava em manga e goiaba faceira Paulina dizia: “-Na casa da vó Lourdes o pé de manga dá maracujá!” O tonel da bica, cheio às bordas de céu escuro. Um pouco menos ameaçador que o de lá de cima. Eduardo na ombreira da porta da cozinha conversava com a mãe Lourdes, enquanto os olhos corriam soltos visitando e matando a saudade de tudo o que havia pela frente. A carestia, tema principal da conversa vingou até que outros assuntos viriam à tona. Paulina, não mais queria ir pra creche. Chorava feito uma condenada, toda manhã a mesma ladainha. Já saía da cama chorando. Ter que tomar banho, o lanche matinal, escovar os dentes, vestir a farda, arrumar a bolsa, o martírio de todo dia. Ameaçou fugir um dia pra vir morar com a vó. Ainda bem que era julho, e assim ficaria um mês inteirinho na casa de vó Lourdes.

Casa de vó, casa dos pais, tudo de bom, tanto pros filhos quanto pros netos. De manhã poder dormir até mais tarde, o modo que a vó lhe acordava tão diferente do pai. O rádio ligado e o locutor mandando um abraço pra Júlia, fazendo declaração de amor pelas ondas de frequência modulada. A música de Belchior enchendo os cômodos, tantas outras lembranças voltando. “No corcovado quem abre os braços sou eu/ e as paralelas na rua tão nua/ como é perversa a juventude do meu coração/ que nunca sabe o que é cruel e o que é paixão...” Se bem que na cabeça rolava mesmo era Djavan, que combinava muito mais com aquela manhã fria. Boa pra ler um livro, tomar café quente, fumegante, numa xícara de porcelana. Os pés encolhidos debaixo dos lençóis do sofá da sala. Enquanto se olhava através da janela.  Ainda o rádio anunciou o desaparecimento de “Dublê” o cachorro pitibull de doutor Edmundo. Afonso viu o cão um dia antes, andando perto da Estação Rodoviária. Solto na rua não parecia tão ameaçador, de quando estava preso no portão. Vagabundo seguia pelo passeio revirando as lixeiras, aproveitando a liberdade tão o tempo todo negada. 

Dos retratos na salinha o que mais se destacava e impunha respeito era do vô Antônio que jamais conhecera Paulina. Dele o retrato e alguns pertences restara. E dona Lourdes apesar de tanto tempo passado lembrara saudosa das vezes que chegava da rua. O jeito próprio e único de colocar o chapéu no cabide, quase tão teatral. Com seu sorriso não totalmente declarado, apenas se insinuando pelos cantos da boca. Sentaria a mesa, sempre na mesma cadeira cujo respaldo dava as costas pra parede, o lugar de destaque, do chefe da casa. Se permitiria olhar demoradamente pra estante, os olhos fixos no retrato da família. Sempre que chegava o mesmo gesto. Inácia trazia uma xícara guarnecida de pires e colherzinha. O açucareiro, a garrafa de tampa negra, o bule com leite, o mantegueiro, uma faca, porta guardanapos, o pote de biscoitos, o paliteiro. Tudo já estava à mesa numa imensa bandeja inox. Perguntaria sobre cada um dos filhos, começando pelo mais novo. Tio Petrúcio disse um dia que vô Antônio tinha por hábito tomar um trago de aperitivo antes do almoço. Lembrou até duma marca do vinho que mantinha na cristaleira, vinho Raposa que trazia no rótulo um desses canídeos tomando vinho derramado duma daquelas garrafas engraçada. O cálice erguido pelas mãos de dedos nodosos, a aliança grossa porém sem brilho, os dentes amarelados do seu sorriso, os olhos claros também sorriam. Poderiam passar os anos porém jamais esqueceria aquela cena. Brinde solitário, a si mesmo. A vida era ao que brindava.

Paulina jamais imaginou que Eduardo um dia a levaria pra ver o rio. Lá estavam serenamente Eduardo, Paulina e o rio. O dia nublado deixava-os tristes, desmotivados, preguiçosos, Eduardo, Paulina e o rio. A ponte de pedras. Lembrou que dali mesmo quando era criança tantas vezes pulara pra alcançar as águas revoltas das cheias e enxurradas. Pensou e se tivesse que pular agora? Sentiu um certo receio, um temor. O que temeria? Talvez por sua própria vida, porque somente agora adquirira tal medo, não sabia. Naquele lado havia uma prainha, todas as vezes que fora ali sempre houvera meninos jogando bola. Estranhou que naquele momento não houvesse quase ninguém lá. A menina se aventurou a cata de umas conchinhas branquinhas na beira d’água, algumas quase enterradas na areia. Não teve como não molhar os sapatos, achou por bem tirá-los. Havia um homem sentado numas pedras, pescava com vara e anzol. Curiosa Paulina aproximou-se pra ver o que havia numa frasco que o pescador vez por outra remexia. Eram minhocas! E estavam vivas ainda! E se mexiam num pouco de terra molhada. O pescador deu-lhe num frasco um peixinho que a menina pegou com tanta ternura e carinho, e tão agradecida. Com a satisfação de quem acabara de ganhar o primeiro bichinho de estimação. Ao chegar a casa buscou no banheiro outra vasilha. A pobre piaba foi parar no pote que Eduardo usava pra fazer espuma de sabão pra fazer a barba. A menina achou que o peixinho havia ficado mais feliz no novo recipiente, na verdade agonizava, e morreu. 

As festas da padroeira. As novenas, o parque de diversão, o ápice das férias. Eduardo lembrava com uma ponta de saudade dos tempos idos. Os brinquedos tão singelos. Tudo tão simples, uns barcos que o próprio brincante tinha que desprender uma força enorme para pô-lo em movimento. As patinhas, umas cadeirinhas suspensas sob correntes num carrossel impulsionado por uma manivela, tracionada por mãos de dois homens fortes. A polia gemia gemido feito carro de boi na estrada agora abafado pela zoada reinante. O Laça-laça consistia em carteiras de cigarro sobre um tablado onde cédulas de dinheiro aderidas atraiam os fregueses que eram obrigados a ficar além dum cordel limítrofe. Também tinha a pescaria, uns peixinhos de lata atolado num caixote de areia, somente com a cabeça de fora e que deviam ser pescado daí se descobriria um número que equivalia a um determinado prêmio. Prêmio chinfrim: uma calunga, uma bola, um carrinho de plástico. A noite toda era um burburinho só. Os estouros de fogos de artifício, as guloseimas. O barulho da meninada, os balões coloridos, a música ensurdecedora. O estampido das espingardas de seta, o estouro na chapa de zinco, do tiro-ao-alvo. Todos esses sons ficaram para sempre imprimidos nos tímpanos, na memória da criançada. Jamais em tempo algum se apagaria. Os quitutes, as toldas cujas empanadas lembravam os movimentados dias de feira no sábado. Se chovesse, e sempre chovia, os transeuntes ali se amparariam.

Tio Petrúcio perguntaria a sinhá Lourdes a respeito dos meninos, se quando eram crianças se eram unidos. Vó Lourdes confirmaria que sim. Eduardo e Reginaldo, então, por serem o mais novos, eram feito carne e unha. Diferente de Rafael e Carlos Antônio. A idade próxima muito provável tenha contribuído pra isso. Coisa de só saírem juntos fossem a onde fossem. Ainda mais pra festa da padroeira. Se um ia, o outro também tinha que ir. De escolherem sempre os mesmos brinquedos para se divertir. Assistirem os mesmos filmes nas matinês. Lembrou que o pai comprou certa vez um paletó igualzinho pra cada um, diferente apenas na cor. Um bege outro azul claro. As calças curtas, os sapatos, as meias três quartos, brancas. O arremate era a gravata borboleta. E o corte de cabelo a moda soldado de cuia fazia com que ficassem parecidos, a ponto de muitos perguntarem se eram irmãos gêmeos.

Mas o mundo de voltas e nas voltas que o mundo dá tantas águas que o rio levou lavariam as pedras da ponte dos meninos irmãos. E de tantos amigos de escola. Foi numa maratona de carnaval, de muitos anos depois da época de criança. Eduardo e Reginaldo já eram homens feitos, já haviam casado eram pais de família. Mas como tornaram-se distantes, nem pareciam irmãos.  O frevo rolando solto na praça e eis que Cosmo amigo de Eduardo se desentendeu com Damião seu irmão gêmeo. A ira aflorada, as palavras agressivas, a calúnia levantada contra o próprio sangue. O álcool ingerido, a faca surgindo reluzente na mão. Seis golpes desferidos. Segurando as tripas Damião pediu a turba de curiosos que o socorresse. Socorro que chegaria tarde demais. Morreria ali na praça mesmo, dentro da ambulância, enquanto o frevo sequer parou. Outra vez era julho. Dez anos havia se passado. Cosmo agora sentava no banco dos réus. Entre o corpo de jurado Eduardo. Outra vez era julho. 

Fabio Campos 20 de julho de 2016.

*P.S. A Gravura que ilustra este Conto é uma foto da Belíssima Capela de São Francisco de Assis, localizada em Paulo Afonso - Bahia. A arquitetura mistura rusticidade e o estilo europeu, donde viveu o Santo de Assis vida simples. Construída pela C.H.E.S.F. em meados de 1965.