O CÃO DE VANUATU (6° Episódio da Saga: O Crime de Tagor Fashall)



Entre, desvendar um crime, e descobrir um tesouro perdido, haveria que preferisse acrescentar ainda mais mistério. Acontece que muitas outras coisas estavam pra acontecer, e isso era só o começo. Naquele exato momento Marcos temia por sua vida. Apesar de que, se o míssil “F.A.S.H.ALL” detonasse, o máximo que poderia acontecer era desintegrar-se. E isso o obrigaria a retornar a Terra do Fogo. Dentro da caverna uma coisa observou. Um livrinho de capa vermelha que o Alien chefe, com firmeza, segurava na mão fechada. Nada o fazia largar. Passou a acreditar que nele contivesse muito do que buscava.

O homem olhava pro céu. Como se de lá, tivesse pra vir, resposta pra sua angústia. Era o que esperava. Não sabia do que sentia mais saudade, da ilha ou da taverna. Tudo, no entanto caminhara pra um irreversível estado de decadência. Só restando agora, sombra do que um dia fora. Taverna de homens sombras. Fantasmas de si mesmos. Esperavam pacientemente o que eles próprios duvidavam se chegaria um dia. Se distraiam jogando pôquer, fumando, bebendo uísque. No auge da corrida do ouro aquilo ali fervera mais que um festival de rock. Na época, Porto Vila virara a meca do narcótico, do álcool, da prostituição e da jogatina.  As moças, apáticas, cansaram da própria beleza. Pra onde fora o entusiasmo dos tempos da corrida ao metal amarelo? A alegria de outrora do bordel não havia mais. Os rapazes, receio nenhum tinha, de gastar o dinheiro adquirido com tanto suor no garimpo. As áureas noites de festa se foram, era tudo passado agora. Sem ter o que fazer, o barman, encostando a calva ao balcão cochilava. Aquela cara amarrada, o bigode, o queixo duplo, a pele vermelha luzidia. Muito dele remetia ao Senhor Morion Lucindo, o velho ferreiro, contador de causos.

Lá estivera senhor Lucindo, aproveitaria a apatia reinante no saloon, e iniciaria mais uma de suas histórias. Falaria dos seus antepassados, que um dia vieram de Ushuaia, na Terra do Fogo. De lá, os seus, da parte de pai vieram. Contaria de seu avô, um dia lhe falara do desaparecimento dum bando inteiro de guerreiros da tribo dos Yaganos. Como num passe de mágica, sem deixar vestígios sumiram. Esse acontecimento ficaria conhecido como a noite da grande tribulação. Pra eles, teria sido uma terrível maldição duma noite de lua cheia, de agosto. Era madrugada de mudança de lua, a aldeia inteira despertaria aflita. Apavorados tiveram a aparição dum cão, de uns dois metros de altura. Surgido das montanhas, se posicionou junto a um rochedo que terminava na entrada da aldeia. O pelo amarronzado, viscoso, eriçado, volumoso, cobria-lhe todo o corpo. Molhado de neve, descomunalmente musculoso. Os olhos como brasas, a baba a desprender-se dos caninos, sibilava ao vento. O uivo horripilante de causar calafrios na alma, de qualquer vivente. Os nativos foram às armas. Arcos, flechas incendiárias, lanças, facões, tochas, e coragem. A própria vida dariam pra defender a aldeia, a prole, os víveres, os antepassados. Se não conseguissem matá-lo, tentariam ao menos enxotá-lo pra longe dali. Seiscentos homens partiu pro ataque. Assim que se aproximaram da fera sumiram. Como num passe de mágica os bravos guerreiros Yaganos. Como que tragados pela terra, perante as vistas de toda aldeia desapareceram. Enquanto isso, o feroz canídeo gigante, como se nada mais tivesse o que fazer ali, virou as costas e foi embora. Seguiu rumo a montanha. A façanha ficaria registrada para sempre nas mentes da tribo, o avô de Morion Lucindo era um deles. E num afresco que o rei Roy Matta mandou pintar na antessala da tenda real o embate nunca ocorrido. O sacerdote o resto da noite queimaria incenso, recitando trechos do Morashá, uma espécie de pergaminho contendo escritos sagrados.

Tagor Fashall passara os últimos dias na aldeia de Étole Chavalier. Pretendia com a maior brevidade casar-se com Joane Antonieta. Antes precisariam apresentar, um ao outro, aos familiares. Decidiram que ele conheceria primeiro a família dela. Depois de ter se tornado mulher, a filha de senhora Luiza Madalena, nunca mais vira sua mãe. Tinha saudade da vila pobre de sua infância, que ficava perto da igreja de Santo Eustáquio, num bairro afastado. Pai, não tinha mais. Buscaria a antiga morada da vila dos pinheirais. Ficou sabendo que sua mãe estaria muito doente, vivendo num asilos para idosos, na região montanhosa de São Martino. Tagor prometeu que visitariam a ela, e a seu pai. Mas o pai já não tinha  morrido? Indagou-lhe. Ele apenas sorriu.  

Émile Passion naquele momento dentro duma carruagem viajava pelas estradas que levavam a vila de Étole Chavalier. De volta de Paris, onde passara um mês na casa do primo. Enquanto avançavam os cavalos pelo bosque seu pensamento voava. Estaria apaixonada por Rafael Bertrand? Depois que o pai morrera e antes que revivera, fora a busca de seus tios, a parte nobre da família. Dom Ferdinando de Valverde comerciante de tecidos e também músico. Ensinava flauta doce aos missionários do mosteiro de São Bento. Boas lembranças guardaria dele, um bom homem. Envelhecera com sabedoria, cultivando o que de melhor a vida pudera, até então, lhe proporcionar. Maria Antônia de Cena a esposa, matrona zelosa nascera com dois dons, ser mãe e esposa. A mansão dos Valverdes a beira do lago do vale dos Cisnes. Construção medieval, rodeada de jardim suntuoso. Entre os Valverdes havia uma tradição de família, que todos os membros teriam seus retratos pintados em telas a óleo de corpo inteiro, sempre pelo mesmo pintor Luiz Cantagallo um italiano de Gênova. Émile talvez fosse a próxima a posar para o pintor. Uma particularidade tinha os quadros do genovês, se apresentasse qualquer mancha na gravura, não demoraria e morria. De modo que aonde surgisse a mancha, sairia a causa da morte. Émile realmente estava apaixonada por Rafael. Dez anos, já se havia passado de quando o retrato de Gabriel, irmão de Rafael, apresentou leve mancha, quase imperceptível, no pescoço. Os três irmãos, nas montanhas alpina, propriedade do príncipe Ricardo III, de férias a caçar faisão. Enquanto carregava a arma, acidentalmente Miguel acertou um tiro no pescoço do irmão. O ferimento o levaria a morte.

Tagor Fashall sabia a origem daquele cão. De onde também outros oito vieram. Marcos acabaria conseguindo o livrinho. Sob a escuridão da noite, passou pelo bando de corsários, escravos dos alienígenas que dormiam. A caverna, o altar de pedra, e o livreto de capa vermelha agora era seu. Conseguira desvendar parte do mistério. O capítulo cinco era todo dedicado a invasão dos cães de Vanuatu a terra. Com a ajuda do mago Berlioz que habitava o sopé do vulcão Lopevi,  conseguiu traduzir os escritos. Eles vieram do espaço, dum planeta distante chamado Vanhatu, pertencente a quinta irmã da Via Láctea. Se rebelaram contra os maus tratos dos aliens a que serviam. E por isso nove deles foram banidos.Vagaram no espaço até encontrarem a terra. Os sábios que testemunharam sua chegada deu-lhes nomes dos planetas do sistema solar. Três deles eram alados, grandes asas traziam no dorso. Outros três eram aquáticos, nadadeiras possuiam nas patas. E os três últimos terrestres, iguais aos cães tal qual os conhecemos. Só que todos eram descomunais no tamanho. Os alados, foram habitar os lugares mais altos da terra: Alpes suíços, Cordilheira dos Andes, e as montanhas do Tibet. Os três aquáticos foram: um pro mar da Austrália; Outro pro triângulo das Bermudas e um terceiro pro estreito de Magalhães. Dos que ficaram em terra firme somente o da Terra do Fogo fora descoberto até então.  

Derick o gato de Marcos estava com muito frio. As montanhas geladas não era o melhor lugar pra quem é friorento, e ele era. Tem coisas que todo gato preguiçoso detesta. Ter que caçar sua própria comida. Caçar só era legal quando se fazia por diversão. Mas quando se está à três dias sem comer nada, caçar não tem a menor graça! As corças no meio da neve viravam alucinações, pernis suculentos lentamente levitando sobre a neve. Os peixes saltando sobre a correnteza a escaparem milagrosamente da implacável patada do urso polar. Comida voando, pra sua boca faminta. Pra piorar as coisas tinha que aparecer justo a sua frente, um, que todo gato simplesmente odeia, seu arquirrival. Um cão! E aquele era tamanho família. E aquela cara pouco familiar. Droga!


Fabio Campos 31 de agosto de 2016.

*P.S. I: Parte do Desenho que ilustra este Conto, é de autoria de Aika, a terceira Neta do Autor do Blog. Data de 02/02/2016.

*P.S. II : Os Cinco Episódios anteriores da Saga "O Crime de Tagor Fashall" estão publicado neste Blog, entre os dias 26 de maio e 23 de junho de 2015.

  

A CORDA E O CORDÃO



A montanha ao fundo muito longe, as casas rústicas muito perto. O mato, o cheiro de mato, molhado. O tempo era outro. O barro, pondo muito de sua cor nas coisas, na tez das coisas. Uma mulher com rosto de irlandesa. Uma menina triste de cabelos crespos, com meia dúzia de pequenos cachos. Os olhos negros, numa tristeza de dar dó. Um cenário que tinha tudo pra ser unicamente de mulher, tinha homem. O sol felizmente não perdia a graça, diante do que se apresentava. Simplesmente tinha o domínio. A cidade se houvesse seria muito longe. Distando dali horas de pensamento, de tão longe. Era como um sonho ir até lá. O vento inflamava-se de solidão. Um silêncio descalço ribeirando pelos cantos, ia tangido pelo balido das cabras. E tudo estaria imprestável não fosse dia. A luz do dia era tudo. Um poço, muito tinha pra dizer, mesmo permanecendo calado como estava. O que será que havia naquele lugar? Tudo ali cheirava a cansaço. Tudo parecia muito, muito cansado de ser o que era.

Outra montanha, muitos, muito pensar distante daquela. No meio da planície um orfanato. Construção rústica no meio do deserto. O que aquele orfanato foi fazer naquele fim de mundo? Por que não se dava pra ouvir o barulho das crianças? Onde fora parar a algazarra? Uma mulher de meia idade apareceu à porta, trazia um copo na mão. Havia água naquele copo. Água límpida, cristalina das mais desejadas pelo que tem sede. Dois braços abraçavam um corpo magro. A menina pretinha com o cabelo cheio de pequenos cachos, presos por fitas coloridas. Por que estava ali? De nada sabia, que outros, que jamais conhecera, tinham pensando um destino pra ela. Nada entendia do que acontecia. Entender era o que menos importava. Ter que ficar, redimensionar sofrimentos. Jamais imaginou outro mundo que não fosse o que sempre vivera. Brincar com os irmãos no cair da tarde. Depois de um dia corrido. Cheio  de panelas pra lavar, e água no poço pra ir buscar,  depois de varrido o terreiro de casa. Calunga de pano pra brincar no cairzinho da tarde. O que estava pra vir, fosse o que fosse, seria novo. Encararia qualquer realidade nascera pronta pra isso. Desde que não houvesse alguém igual o pai no caminho. E tudo já estaria valendo a pena. Não queria que lhe batesse e que agredisse tanto, várias vezes, muitas vezes durante o dia, tão desnecessariamente. Pensou nos outros irmãos, como estariam.

Se dependesse dela, ninguém jamais ficaria sabendo o que acontecera. Mas era tão forte que vinha. E vinha em forma de relampejos. Os batentes sujo de sangue. O facão ensanguentado na mão reluzindo. Os gritos, abafados pelo trovão. Os raios clareando os pingos que lavavam o rosto. A chuva aumentando, o terraço inundado. O corpo inerte do seu irmão sendo arrastado pelos braços, os calcanhares, as pernas cavando um sulco, fazendo um rastro de lama que seria apagado pela água da chuva. Lá no canto da cerca havia uma espécie de tablado que a mãe usava como batedor de roupas. O corpo franzino do menino foi arrastado até lá. Estendido sobre o lastro, os braços pendidos, as mãos balançando. O facão erguido furando o bucho da noite. O braço longo, longamente musculoso, negro. Donde estava só conseguia ver as costas do pai. As costas molhada desnuda, a pele escura luzidia. Um tiro ecoou. O projétil fez um furo próximo à pá das costas. Saiu no peito aspergindo sangue na relva. Viu tudo, pasmada viu quando o pai tombou sobre as próprias pernas, ficou de joelhos, pra depois despencar de bruços. O golpe mortal da folha de aço que seria pro menino só feriu o ar. A mãe na soleira da porta segurando a espingarda, o cano ainda fumegante. Só a coragem de mãe pra por fim ao pesadelo de uma noite macabra.

A foto da garota sorridente era foto de formatura. O traje negro entusiasmava ainda mais, à foto preto e branco. O capelo dando ar de superioridade. Os melhores anos da sua vida passara ali. Dentro da universidade. Se pudesse viveria tudo de novo. As colegas sabiam de sua história da infância sofrida. O cordão preto da beca cruzava o colo, e terminava num botão também preto preso a uma franja negra. Acariciar com os dedos aquele cordão a fez voltar no tempo. Lembrou de um novelo de cordão que o pai tinha guardado dentro de sua cesta de tralhas. Tinha o maior ciúme dele. Não tolerava que ela e seus irmãos brincassem com ele. O barbante de algodão era usado pra muitas coisas. Para construir o aprisco. O cordão serviu pra marcar o alinhamento do estaqueamento. Também  serviria de prumo, e pra medição. O cordão, segundo seu pai, era uma espécie de amuleto que só devia ser usado pra algo muito significativo. Inaceitável que fosse alvo de futilidades. E pro pai empinar pipa era algo muito inútil. Achava até que trazia maus agouros pra aldeia. O irmão transgredira sua regra e pagaria com a vida tamanha desobediência. Primeiro levou uma surra de cordas na frente dos demais irmãos. Aquela corda tinta do sangue meu e de meus irmãos, ficava pendurada na comieira da casa como um troféu. Éramos obrigados a assistir perfilados a barbarie. O pai descarregava toda sua ira covarde em pobres indefesos. Dizia que era para que servisse de exemplo. Foram tantas as pancadas que o menino acabou desmaiando. Como gostaria de ter o poder de apagar da mente aquelas lembranças. Esquecer todas as coisas ruins da infância, Mas elas sempre vinham. E uma das piores recordações, chegou junto com uma lágrima. Num vão único do piso de barro batido da casa, forrado com esteiras de palha, dormiam ela a mãe e os sete irmãos. Sendo ao todo quatro meninas e três meninos. Numa determinada madrugada acordou sendo bolinada pelo pai. Uma de suas mãos tapava-lhe a boca pra que não gritasse, e explorou seu sexo. Naquela noite foi brutalmente penetrada. A mãe nunca soubera disso. A depender dela jamais saberia. Sabia que se contasse correria o risco de morrer. Isso ele havia lhe prometido. 

Como uma espécie de prêmio de consolação, do pai ganhou um cordão vermelho, de muitas voltas, enfeitado com miçangas nas pontas e tinha um pequeno búzio preso. O pai lhe deu, pendurando ele mesmo ao pescoço, e era uma menina de dez anos apenas. Deu-lhe dizendo que era pra mantê-lo sempre. E que por nada devia o perder. Só depois disso percebeu que cada uma de suas irmãs também tinham cordões pendurados no pescoço, e que eram de cores diferente. Da irmã mais velha era verde, as demais eram amarelo e azul. Numa determinada noite acordou e fingiu que permanecia dormindo. De olhos serrados conseguiu ver o pai abusar da irmã mais velha. E foi assim nas outras noites. Descobriu que para cada cor de cordão, ele abusava de uma irmã, num determinado dia da semana.

Naquela noite na América sonhou um sonho atribulado. As lembranças acabariam influindo nos sonhos. E viu um homem negro que usava um cavanhaque igualmente negro. Ele entrou na aldeia de sua infância, e portava um belo rifle. Suas roupas tinham, a camisa e a bermuda, partes feita de couro de leopardo. A copa do chapéu era circundada por uma tira de couro de urso. No colar que trazia pendurado no peito havia dentes e pequenos ossos de animais, de várias espécies, e não duvidasse que dentre aqueles houvesse ossos humano. O homem não entrou na casa. Preferiu sentar-se num canto estratégico donde pudesse ver a entrada da aldeia. Talvez temesse ser surpreendido. Temia os muitos inimigos que tinha. E conversou muito com o pai. E fumaram cachimbos, abastecidos de ervas aromáticas. E davam aos pequenos para tragarem, e riam ao vê-los caírem grogues no chão batido da aldeia. O pai negociou com o homem ervas, e a moeda de troca era permitir ao estrangeiro fazer sexo com a mãe. Como podia ceder a própria mulher pra deitar-se com outro homem, em troca de plantas alucinógenas?

O homem quis saber se a água do poço da aldeia era de boa qualidade. O pai diria que não, mas diria que havia outro dentro da mata cuja água era pura, cristalina, saborosa. O estrangeiro quis conhecer. Uma mulher com cara de irlandesa, na verdade uma negra albina, passava o dia na borda do poço. Todos acreditavam que quem nascia com a pele clara na aldeia possuía o dom de afastar demônios. Por isso elas protegiam os mananciais d’água. Em troca de algum alimento emprestava baldes de ferro, carcomidos nas bordas pela ferrugem e cordas velhas, aos que quisessem tirar água. O estrangeiro por um pouco de farinha alugou aqueles apetrechos e com o pai adentrou a mata. O poço era profundo da borda em diante breu. Jogando uma pedra dava pra ouvir o eco do espelho d’água sendo importunado. O pai tinha um plano macabro. Assim que o estrangeiro debruçou-se pra ver se conseguia ver o fundo, foi empurrado. Seu corpo despencou dentro do poço sucumbindo num grito apavorante. O pai sorriu um riso diabólico, e tomou posse do objeto de sua cobiça, o rifle do estrangeiro. 

O pai foi enterrado num lugar perto do aprisco. Talvez fosse ali mesmo que quisesse um dia ser enterrado. Onde tantas vezes amanhecera embriagado. Ouviria sempre o chocalho das cabras a cada manhã. Sua cova foi circundada com uma corda vermelha sanguínea. Sangue do seu sangue, por ele próprio derramado. Dois gravetos, tomaram a forma de cruz. Unidos transversalmente por um longo cordão de algodão, a não sobrar um pedaço que fosse. Sobreposta linha sobre linha, tantas vezes a formar como se um coração. Findado num nó de ódio e desgosto. 

Fabio Campos 19 de Agosto de 2016.  

*P.S. A Gravura que ilustra este Conto, é uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, que está na Igreja da Mesma, em Paulo Afonso - Bahia.  

JEREMIAS, ONDE ANDARÁ?





Olhando assim, talvez não desse muito pra saber se era dia ou noite. Isso acontecia porque era inverno, e aquele, vinha da alma. Jamais se acostumara com aquelas mudanças. Tudo a dar-lhe imensamente nos nervos. As nuvens fuliginosas, descendo ameaçadoras. Diluindo-se em tons grafite, trazendo gosto de papel carbono. E o frio se apossando de cada uma das vértebras. Escalando a espinha dorsal, petrificando os sentidos, desbotando as vontades. A rua, inexplicavelmente longa indo até o infinito. Para o além, dava pra ver o brilho do sol. Mas a quentura, impossível sentir. Os prédios se agigantavam tanto que chegava a se curvarem, alucinadamente, como se quisessem sufocar o céu. Portas e janelas, olhos monstruosos a observarem para além da mente, do homem que passava. Incólume avançava. Os demais seres que em sentido contrário seguiam eram como máquinas. E deslizavam na calçada, como se debaixo dos pés tivessem rolimãs, ou andassem sobre esteiras rolantes. Todas as crianças, como em transe haviam partido. Quem sabe para um país muito distante marcharam. Muito provável se chamasse “Mundo dos meninos”.

O homem parou, não parecia nenhum pouco cansado. Talvez precisasse refletir. Sentou-se ao meio-fio. Pouco se importando com o que os outros pensavam, a seu respeito.  A calça escura, os sapatos pretos, o blusão também de couro.  Fumante, tudo nele cheirava a nicotina. As unhas, os dedos, os cabelos, as narinas, e mesmo a respiração. Tirou um frasco de dentro de um bolso interno do blusão, parecia de perfume. Era uísque. Sorveu um trago. Acendeu um cigarro, não sem antes praticar o quase involuntário gesto de bater com a ponta na caixa de fósforos. A fumaça azulada desprendida lhe envolveu como numa aura mágica, soberana. Os olhos vermelhos a dizerem que a noite passada ocorrera em claro. Precisava fazer a barba. Tomar um bom banho, uma ducha quente, revigorante. Enxugar-se com uma toalha felpuda, cheirando a coisa limpa. Precisava repetir todo um ritual de banheiro. Achava que aquilo ajudaria a devolver-lhe, ainda que ilusória, a sensação de paz. E de rearranjo do caos que se instalara dentro de si. E que parecia não haver prazo pra acabar. Pelo menos hora e meia ficaria sentado na privada, sem vontade de fazer nada, nenhuma necessidade fisiológica. Simplesmente porque gostava de perder tempo sentado ali, evacuando pensamentos. Vasculharia os bolsos da calça, encontraria um folder, desses que se nos são entregues nas portas das lojas de eletrodomésticos. Passando a vista por cima, sem se ligar no preço das ofertas, pois era o que menos interessava. Admiraria o trabalho. As cores, a arte gráfica. Quantos profissionais teriam se envolvido naquele trabalho?

Lembrou de Lucas um amigo de infância e pré-adolescência. O que estariam fazendo naquele momento? Talvez não mais vivesse, nem nunca mais se veriam. Também Zé Maria. E Samuel? Outros amigos de infância, e de início de juventude dos quais lembrava agora. E Rosinaldo? E Heleno? Onde andaria Tereza sua primeira paixão da terceira série? Jamais seria sua namoradinha. Observava-os como numa espécie de túnel do tempo. Revia-os como em vídeos e fotos que nunca, jamais tivera feito, mas que estavam lá. Perpetuados dentro de sua mente. Quantos dos seus amigos de infância se havia tornado militar? Ainda outros Lucas, outros Samuéis no mar da vida cruzariam seu caminho. Cada um porém com suas particularidades, muito diferente uns dos outros. Alguns poucos como ele se tornara artista, cantor, e intérprete. Soube até de um que virou escritor. Considerado, por parte de alguns familiares, bichos estranhos.  E eram mesmo,  mudavam de humor com a inconstância dos ventos. De muitas vezes não aceitarem nem a si mesmo.

Nunca entendera de quando estivera casado com Marlene, todas as vezes que estava a pia, lavando as louças da janta as mesmas lembranças vinham. Sempre das mesmas pessoas. O amigo Fausto, um policial, uma amizade tardia, da fase adulta, com que havia se encontrado muitos anos depois. Encontrou-o casado com Viviane, ou talvez se chamasse Mirian sua esposa? Lembrava sempre da queda de bicicleta que Fausto levou e quebrou um dos incisivos. E desde então seu sorriso foi outro. Ficou com cara de menino levado. Os cabelos e os olhos espichados como de oriental. No flagrante das suas lembranças ele estava sempre sorrindo e mostrava os dentes desarrumados.

Naquele instante se perguntou. Se alguém já não teria se dado ao trabalho de querer saber que imagem os amigos do passado teriam guardado de si mesmo? Einstein, o grande físico. Será que teria gostado da quão excêntrica e irreverente imagem, estirando a língua pra humanidade, com a qual ficaria eternizado? Lampião, o rei do cangaço, apesar de não ser tão culto quanto o cientista austríaco. Preocupou-se em deixar pra posteridade uma imagem bem mais sóbria. Contratando inclusive um fotógrafo para tal finalidade. O que esperava que lembrassem dele pelo jeito irreverente, boêmio, amante da paz? Não fosse aquele o momento certo pra se fazer uma retrospectiva da própria vida. Ao menos achou por bem fazer uma auto avaliação.  Se dando conta àquela altura da vida, que não era mais o rapaz que tanto insistia em permanecer dentro dele. Ainda compunha belas músicas. Tinha que admitir o corpo, no entanto, já não era o mesmo. A cabeça funcionava a mil. O cabelo, a barba tornado grisalhos. A visão já não correspondia como antes. A frequência com que fazia sexo a cada ano silenciosamente diminuindo. Os problemas de saúde pouco a pouco aparecendo. Quase que por necessidade leu artigos sobre a próstata, a diabetes, a pressão arterial. Nesse ínterim os shows foram escasseando, a fama de outrora assustadoramente se esvaindo. Antes que a depressão com seu ataque mortal se instalasse, como um golpe de mestre investiu além do álcool. Passou a usar anfetaminas, uma droga leve. Até certo ponto aceitável, fazia parte. Afinal tão comum no meio artístico. Servia de estímulo, até mesmo pra manter a euforia que o glamour do palco exigia.

Sentia muita saudade de alguns anos tão legais do passado. Tão intensamente vividos, e que agora não passavam de cinzas como aquelas do cigarro apagado na sarjeta. A velha calça jeans, desbotada. O orgulho de viver num país tropical, de ter tido um fusca e um violão. Sol e praia o ano inteiro. Do desapego a bens materiais. Achava bacana a filosofia de vida: “Viva a paz e o amor e deixe viver”;  “Faça Amor não faça Guerra”; “Go do Back to Bahia”; Art Pop; Woodstock; tatuagem do símbolo hippie no delta, surfar em Saquarema, curtir Búzios ao menos uma vez por ano. Como doía ver que de tudo isso, sobrara somente as ruas? Voltar pra clínica de recuperação jamais... Preferia a morte. Não se achava uma pessoa ruim, não se considerava do mal. Os filhos não o entendiam. As ex-mulheres também não, o deixaram. Se sentia só, injustiçadamente só. Sempre se achou um cara do bem, amante da paz, da natureza, do amor livre.
Sem saber direito porque veio a lembrança de Jeremias “O Bom”, personagem do chargista Ziraldo que ilustrava a sessão de humor da Revista “O Cruzeiro”. Isso na década de setenta! Num misto entre perplexo e feliz dos seus lábios saltou uma quase resignada constatação: “Poxa! Como estou ficando velho. Afinal sou do tempo do Pasquim!” Das charges de Jaguar, Ziraldo, Fausto Wolff, Henfil com sua “graúna” o “Fradim” Paulo Francis e seus textos satirizando o governo do regime militar no poder, Millôr Fernandes. Tropicalismo, “Garota de Ipanema”.  Viu nascer o regime militar, crescer e tomar conta do país, mas também veria cair. 

Só agora entendia por que Jeremias era chamado de “O Bom” Mas pra onde tinha ido aquele jovem idealista? Aquele que por tanto tempo morou dentro dele? Aquele que um dia foi pras ruas, enfrentou tropas de choque, jato de gás lacrimogênio nos olhos, quase ficou surdo com as bombas de efeito moral. Levantou a bandeira da Une na porta da universidade. Considerado que era um subversivo. Porradas de cassetete de polícia da cavalaria. Cabelo grande, bolsa tiracolo cheia de panfletos contra o governo, a fugir pelas avenidas e becos escuros. Pra ser considerado subversivo naquela época bastava ser leitor do “Pasquim”. Logo era chamado de maconheiro, vagabundo, visto com maus olhos. E ser vinte quatro horas por dia investigado pela polícia. Quais filmes via, peças de teatro que assistia e livros que lia? E pronto seria preso. Ter os dedos todos borrados, deitar digitais nas fichas de prontuário do Deic. A famosa foto 3x4 de lado, frontal segurando a plaquinha preta com a data da prisão.

Num cartão amarelado guardado em armário de ferro, de enormes gavetões que deslizavam sobre trilhos. Quando eram fechados emitiam o som característico como grades se fechando. Um breve texto escrito à esferográfica descrevia o perfil, as tendências aos crimes e os delitos em que o prisioneiro se enquadrara. De certo uma frase mais estaria faltando naquele prontuário: “Este deliquente matou um homem. Ele mesmo. Daqui a uns 40 anos pelo menos.”

Fabio Campos, 02 de Agosto de 2016.

*P. S. A Gravura que ilustra este Conto é de NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO e se encontra na belíssima capela de São Francisco de Assis em Paulo Afonso- Bahia, construída em meados de 1965 pela C.H.E.S.F.