UMA ALMA NO ESCURO (9º Episódio da saga T.F.)



Ninguém entendia o que estava acontecendo. Talvez não precisasse. Quando se está em determinadas situações, algumas coisas se fazem necessário desconsiderar, se quisermos ficar em paz com a consciência. Marcos perguntara certa vez a seu avô, se lá em cima, havia a divisão do dia, entre claro e escuro, como havia aqui. Respondeu que dependia de alguns eventos, e tentou, embora não convenceu muito, explicar da melhor forma. Tinha medo que o menino ficasse fissurado em ciência. A sala onde estava acontecendo à reunião, disse: Não dava pra ouvir nem barulho. Nem mesmo das falas que lhes saiam das bocas. Todos usavam fones de ouvido, pois era só como conseguiam entender os idiomas de cada planeta. 

A frieza do branco gelo da sala foi quebrada com a entrada dum gato. De onde apareceu aquele gato de rabo e focinho queimados? Ninguém sabia. Sabiam, porém, que era um intruso. Não reivindicou um lugar pra sentar, simplesmente ficou andando pelos cantos. E era sobre as quatro patas que andava. Sondava o ambiente como se já estivesse estado ali outras vezes. E agora, apenas conferia se tudo estava como antes. O príncipe Crawell do Planeta Vermelho, o anfitrião. O que presidia a reunião, ao dar fé da presença do inconveniente felino, ordenou aos guardiões que o retirasse de lá.

Uma menina muito estranha, metida num tubinho de plástico, cor de rosa, ocupava a cadeira logo ao lado da do príncipe. Tinha um chapéu muito grande também rosa que cobria parte do rosto. A aba possuía dois furos na frente por onde ela conseguia olhar. De seu rostinho afilado só dava pra ver, o queixo, um pouco das suas bochechas róseas, a boca vermelha que era muito pequena e os cabelos feito macarrão parafuso, tocavam seus espirais no ombro. Ao perceber o gato sendo arrastado por dois gorilas enfardados, pelo salão, de piso encerado e limpo, justo aquela boca fez: “Oh!” O brilhoso piso, refletia fielmente o cinzento do pelo do bichano, que a menor resistência oferecia aos brutamontes. O príncipe entendeu a expressão de Charlote, era esse o nome da pequena. Levantou a mão direita formando um éle com o braço e antebraço. Imediatamente os guardas interromperam o traslado do folgado. E ouviu-se a ordem para que o estrangeiro se apresentasse. E dissesse, para que e porque estava ali, se não fora convidado.
  
O pintor mais perfeito do mundo, naquela tarde estava ainda mais inspirado, com seu cavalete de mármore escalou até aonde os pássaros suavemente bailavam. Arriscou preludiais pinceladas ao ocaso, emagrecido, definhado no horizonte, ia a luz pra acabar desmaiando, bem lá no cantinho doido do fim do mundo. E as águas do riacho deliraram debaixo dos coqueirais, o capim elefante preguiçosamente empurrara com os ombros as fadigas das manhãs, com uns restos de estrelas que ficaram se balançando nos varais de ciranda. Pra voltarem depois loucas cheias de lua. Enfadadas de tanto namorar os lobos, as ninfas, e odaliscas bêbadas de sono queriam tanto dormir. O terceiro menino viu quando o míssil FASHALL explodiu. Foi fantástica hecatombe. O mundo zumbiu assumindo suas ruínas. O deslocamento do ar fez as paredes do livro sacudirem as folhas, algumas foram arrancadas com a violência do estrondo. Chamuscara de fogo a beirada de algumas páginas. O menino jurou de pés juntos que viu Tagor se desintegrando. O tecido epitelial se soltando do corpo, ficando na carne viva. Em milésimos de segundos se decompondo. Os dentes expostos num sorriso macabro, o crânio descarnado, os cabelos se desprendendo do couro cabeludo, o globo ocular caindo da caixa craniana. Cada fibra muscular, cada osso do seu corpo, virando pó. Tagor era o retrato da morte. 

A máquina era simplesmente perfeita. Uma montanha de aço inoxidável e ligas metálicas, painéis de luzes coloridas a contrastar com a pedra da gruta. Combinava, no entanto, com as vestes prateadas dos alienígenas. Assim como uma meia dúzia de explicações técnicas não era suficiente pra qualquer humano entender do que ela era capaz de fazer. Na verdade ninguém nem sabia quem a tinha inventado. Ainda mais complexo seria tentar determinar com exatidão sua função. Com ela se podia ir a qualquer lugar, em qualquer época. Tanto já ocorrida ou mesmo por vir ainda. Podia também transformar grunhidos ininteligíveis, de qualquer alienígena em uma fala entendível. Capaz ainda, de desintegrar um rinoceronte, miniaturizar um dinossauro, agigantar um ácaro. Sem qualquer uso de substâncias externa ao ser. Apenas rearranjando as próprias moléculas. Nada tinha de exotérico, nada de ocultismo, nada a ver com mandala, tudo se tratava de ciência pura. Os cientistas do mundo inteiro jamais descobriram como isso fora possível de realizar. Tantos anos de estudos realizados por muitos. Milênios de conhecimentos acumulados. Indícios da sua existência vinham desde os faraós, dos antigos egípcios. Até alguém ter tido contato com seres de outros planetas. E chegou-se aquele monstro indecifrável chamado de: M.M.T.T. Machine Magnifique Teletransportions of Time. 

Tagor tinha uma irmã chamada Fani. Os coqueirais admiravam-se da perspicácia, da altivez de Fani. As veredas se abriam perante sua passagem. Os crisântemos, as begônias, roxas de inveja rangiam os dentes. Convenientemente bela. Inefável Fani, radiante feito o sol de Marte, Fani parecia uma tia de tanto carinho. E Fani se fez manhã, era flagrada a confidenciar segredos a tarde, arteira a se amasiar com a noite. Uma Fani, das que adorava jogar com a ternura como quem joga amarelinha. O céu ficava olhando pra ela, sem dizer a verdade, porque ainda não era hora. Os índios da Terra do Fogo se projetaram na lente dos seus óculos. Os nativos que o cão de Vanuatu arremessara pra quinta dimensão estavam lá, aprisionados no livro de Fani. Já muito bem ambientados no novo lugar que agora ocupavam. O cenário era simplesmente, puro esplendor. Os montes apalaches num céu dum azul tão amplamente trabalhado. Índigo, caprichosamente elegante, blue. Nenhuma melodia no mundo seria capaz de tirar aquela certeza. 

Enquanto isso, um camponês, indiferente ao que acontecia, ia. Lá dentro a assembleia dos extraterrestres ocorria. O carro de boi passava, flutuando no espaço. O cachorro, seu fiel escudeiro, com certa dificuldade, mas sem nenhum constrangimento, nadava cachorrinho para alcançar a pareia de bois. E o rastro que iam deixando pra trás, era de poeira de meteoritos pisoteados pelos bois. Tacos de asteroides que o sarnento pegara pra brincar iam ficando pra trás. O negro firmamento feito espinho de juazeiro espetava sem dó nem piedade o peito da madrugada. E só sabia que era porque daquela hora avante, sequer se ouvia o piado da coruja, mãe da lua. O gato fubazento fora julgado. Por nove votos a favor, e três contras, fora sentenciado, à pena máxima. Seria atirado ao mar tendo uma pedra de moinho amarrada ao pescoço. O crime invadir sem permissão a sala de reunião. Acontece que ele tinha uma coisa  pra contar que podia ser de interesse de todos, inclusive dele. 

Antonieta nunca na vida se sentira tão mal como naquele instante. Não se reconhecia naquela pessoa refletida no espelho. Sua própria imagem era o que via. Como podia ter agido com tanta vilania. Sozinha no quarto rememorava os últimos acontecimentos. Deitada na cama, os olhos fechados, travou uma batalha com ela mesma. Via a própria alma. No dia do sepultamento de Tagor F. conseguiu penetrar-lhe o interior do sepulcro. E o mundo a plena luz do dia escureceu. Tudo naquela hora virou trevas a sua volta. E tudo tornou-se um lamaçal que a aprisionava. Vieram as lembranças desde a infância. Sua tia ensinado o catecismo, as obrigações diárias, a escola, os colegas. A certeza de estar fazendo algo errado, o corpo lutando contra. A lascívia vencendo suas forças. E tudo se repetira no dia que encontrara o tesouro encerrado numa imensa arca. Sabia que o correto era dividir a fortuna, também pertencida aos demais familiares. Mas a vontade de possuir tudo falava mais alto. A sedução do poder tinha domínio sobre seu ser. 

Os olhos de soberba injetados de sangue, não eram os mesmos refletidos no espelho. A alma, é que tinha horrível aparência. Por fora uma bela moça adormecida. Seus lindos olhos cerrados ao se abrirem seriam como diamantes. A pele de colo alvo ornado de colar de esmeraldas. Todo aquele fulgor escondia uma outra face. Lá, bem dentro dela, padecia uma alma no escuro.
 

Fabio Campos, 24 de setembro de 2016.  

P.S. A Gravura que ilustra este episódio é do Riacho Camoxinga na ponte que dá acesso a Escola Mileno Ferreira.  

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