Topázio (12º Episódio T.F.) Rafael e o Cárcere



Mestre Lucindo, ainda se recuperava do trauma de ter descido as portas do inferno. Por mais dias de vida que vivesse, jamais esqueceria aquelas cenas. O mundo debaixo de um céu de lama que se contorcia, viscoso, asqueroso. Como um coração dilacerado dum peito aberto. O cheiro não era dos melhores. Aquele aroma só sentira uma vez, quando fora visitar o filho que estava na cadeia. Acusado de conspirar contra o rei, ganhou a clausura. Por não aceitar a exorbitância de tributos, que ele e os demais camponeses das searas de Chevalier sofriam.


Houve realmente uma rebelião. Na semana da colheita do trigo, um bando de homens e mulheres se revoltou, ao saber que daquele dia em diante as refeições seriam descontadas dos parcos vencimentos do final de cada jornada. Já não bastava tanta desgraça. A família topázio, e seu mundo inexoravelmente amarelo. Onde tudo parecia improvavelmente real. Uma casa solitária no meio do trigal. Os meninos de cabelos de ouro. As roupas amarelas, o sol a atravessar-lhe literalmente os corpos. Sem que os tornassem, no entanto, translúcido. O vento passava e tangia os cabelos que açoitava o ar. A assoviar um silvo duma nota longa,  cortantemente  indecifrável.
  

Os meninos amarelos, os pais amarelos, da casa amarela. Solitariamente triste. E a mãe de amarelo e preto. Lucas e sua bicicleta sonhavam sonhos que falava de dias melhores. Não importando se fossem amarelos, desde que fosse melhores. Ninguém sabia que parte do mundo era aquela. O gigante de Avor sabia. As horas, nunca, jamais passavam. O sol estatelado no meio da planície ficava olhando pra eles, intrigado. Visivelmente incomodado com a indiferença. Surpreso da capacidade daqueles, de ficarem ali, naquele oco mundão. Sem coragem pra outra coisa. A não ser, viver de amarelo, unicamente.


O pai disse bem assim: ‘Meu filho não é nenhum criminoso, não merecia estar preso.’ Imaginava como era estar preso, sem poder beber aquela abundância de dourado. Temia que acabasse definhando, que adoecesse. Se isso acontecesse, fatalmente morreria, de carência de luz no organismo. Os pensamentos lodosos lhes iram consumir as carnes. No começo, fazia exercícios, rezava três vezes ao dia. Estabeleceu mentalmente a que horas achava que era bem cedo, que hora sentia que era meio dia, e que horas o sol se punha. Não ficaria louco se exercitasse sempre, a mente, os músculos. Era perfeitamente normal, imaginar protuberâncias de amarelo, mesmo no escuro. Conseguia projetar de sua mente, um raiar do dia. A cada manhã na parede lateral da sela, um sol surgindo de mansinho, e seu calor invadindo e clareando tudo. As quatro paredes, e o teto viravam paisagens. Cada uma daqueles quadrantes davam-lhes magníficos cenários de visão. O mar, lá ao fundo, a areia fria, a ressaca, o cheiro de sal, de frutos do mar. Gaivotas voando, andorinhas, pelicanos, mergulhões mergulhando. Ondas quebrando, pássaros piando. Um avião passando lá no alto, silencioso, deixando pra trás flato de calda. Imenso flato de fumaça branquinha. Como estivesse se inventando de laçar o mundo, com um cordão de algodão doce, sem ser doce. Dali a pouco jamais existira. Diluiria como perfume que o ar maldosamente estrangularia. Um navio da marinha mercante, riscando bravamente o horizonte, um nada longe assim. Numa mistura de preto, ferrugem e vapor. Uma ‘maria fumaça’ metida a sereia. Levando no ventre água de coco envasada, doce de leite e goiabada em potes. E umas caixas com uns tubos brancos com o formato cilíndrico que lembrava o pênis humano, mas que não tinha a menor ideia pra que servia. Talvez fossem porta-escovas, ou outra coisa qualquer. Lá ia a nau, com seus homúnculos. Escrevendo com seus diamantes derretidos incrivelmente piscantes, sobre o espelho fluído. Encantando e desencantando peixes, polvos gigantes, que povoaram sonhos de criança.


A barba crescera, tornando ele mesmo noutro. Os cabelos desceram as escápulas. As sobrancelhas arquearam-se acinzentadas. As mãos perguntavam ao rosto: ‘Quem é você?’ 'Não lhe conheço’ ‘Pra onde foi você Rafael?’ Lembrou uma tarde quente na casa de tio John. Ele estava de pé. Na pose que gostava de ficar. Como se fosse tirar um retrato. E Tagor no coração guardava aquela lembrança, a mão esquerda com o dedo polegar pra dentro da calça, os dedos daquela mão encostado no cinto. Fumava. O cigarro entre os dedos da destra, na frente do rosto, aguardando enquanto falava.  O rosto virado pro lado, um meio sorriso no rosto, porque era uma tarde dourada. Uma alegre tarde de sábado. Os cavalos ia trotando sobre o paralelepípedo. Rafael sentara com o encosto da cadeira para frente, numa posição que lembrava um cavaleiro em sua montaria. Os braços cruzados no respaldo. O cabelo até que estava alinhado pra quem sempre negligenciava esse detalhe. Émile esperava que ninguém tocasse, no assunto intocável. Mas como sempre, as forças do universo conspiravam contra desejos escusos. Lucas buscou os olhos de Derick, todo esparramado no sofá, e disse: O rei mandou prender Rafa pra manter-nos ocupados com esse assunto, enquanto maquina sobre como decifrar o mapa do tesouro.


Estava mesmo era no tempo de lembrar que outro problema havia, era verão. Toda manhã lá vinha ele. Inescrupuloso, inditoso, implacavelmente destruidor. O círculo de fogo que devorava tudo que via pela frente. Seria questão de dias, pra que houvesse escassez de alimento. O inferno estava instalado. Com a crise da falta d’água, e alimento, o que seria de todos? Ir pro futuro? Talvez fosse uma boa ideia. Levasse em consideração que a máquina teletransportadora tinha suas limitações. Imagine levar a, um milênio adiante, uma seara de trigal com uma casa amarela, uma montanha de três mil jardas de altura, mais de duas mil cabeças de gado. Sem falar na casa de farinha, as mulas, os cavalos. Ninguém sabia qual seria a reação do gato, do cachorro, dos passarinhos, ao chegar à nova morada, para onde pretendiam ir. Podiam até morrer. Ir pra um lugar que ninguém se arriscava imaginar sequer, onde era.


Aquele lugar Tagor só tinha visto mesmo em filme. Uma película que passara nos fundos do armazém de Seu Cícero. Os meninos todos sentavam no chão batido, úmido. Os fundilhos das calças ganhavam uma mancha de barro de louça. Os adultos sentavam em tamboretes. E os idosos em preguiçosas. O fim do mundo seria daquele jeito? Perguntou-se. O céu jamais merecia tal nome, de tão terrível aspecto. Fumaça neblinando a terra. Chegava a faltar ar nos pulmões só de ver. Uma só plantinha não mais existia. Pra onde olhasse metal pesado, e prédios sujos, pichados com sangue. Como se uma guerra acabasse de ter ocorrido. Cenário de destruição. Lixo por toda parte. E as pessoas caminhavam nas ruas como entorpecidos. Sem saber ao certo o que buscavam. Não cabia poesia ali. Mesmo assim veio-lhe, Manoel Bandeira. Numa aula de português, a professora recitou-o um dia: “Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio/ catando comida entre os detritos/ quando achava alguma coisa/ Não examinava nem cheirava/ Engolia com voracidade/ O bicho não era um cão/ Não era um gato/ Não era um rato/ O bicho, meu Deus, era um homem.”


Se alguém se cansava de viver, tinha direito a morrer dignamente. Pelos corredores dum hospital, a uma sala era conduzido. Era vestido num pijama. Seria aquela as vestes pra morrer. Era deitado numa cama. Uma injeção letal aplicada nas veias. E enquanto à droga fazia efeito, a sala toda se transformava num mundo maravilhoso, limpo, jardim floridos, água corrente em rios límpidos. Céu azul. Música clássica de fundo, cada vez mais alta. E era o fim, de mestre Lucindo. Enquanto isso, Rafael Bertrand, permanecia no ventre da baleia de aço. Bem sabia, da solidão, do escuro, das trevas onde se achava. No calabouço de sua alma, uma  certeza tinha, que sozinho não estava. Quanto tempo mais iria permanecer ali? Não sabia. Tempo suficiente, pra reviver, tudo o que de errado, até então, fizera na vida. Rafa o melhor amigo de Lucas, assim como o Jonas da Bíblia. experimentava o amargo gosto de entrar na escuridão de si mesmo.


Fabio Campos, 28 de outubro de 2016.

P.S. A gravura que ilustra este episódio é da praia de Porto de Pedras (Fevereiro de 2007)


      

A Família Azul (11° Episódio T.F.) Salmo 127


Era preciso descrever primeiro a casa. Ficava assim tão acanhada. Perdida no meio dos arranha-céus. Casinha tímida com suas duas caídas d’águas. Um alpendre torto, de velho. Calado, mas muitas histórias tinha pra contar. Histórias de malassombro, de bicho papão e de  fogo corredor. Presepadas de meninos arteiros, de peteca, de bornal e passarinho. E uma cobra gigante que atormentava as noites no escuro. A mãe chegou bem assim, na folha da porta. Na metade que ficava sempre fechada, apoiou o bração gordo. E seus olhos tristes se alegraram quando viram Tagor. Havia tanto tempo que não o via. Menino levado, sumia, e tempos depois aparecia. Agora era tempo de aparecer. O pai se pronunciou, com seu rosto de pedra. Por trás da mãe, olhou. As rugas não saiu uma se quer do lugar. Mas olhando atentamente dava pra ver que os olhos marejaram. E, calado estava, calado ficou.

Estavam todos doentes. A mãe tivera trombose, erisipela, diabetes, pressão alta. Além do que duns tempos pra cá dera de aparecer uma dor que começava no começo da espinha dorsal, de baixo pra arriba. e respondia cá, nas pás das costas. Sem falar numa tosse seca que lhe acometia, isso toda boquinha da noite. Antes de deitar, outras vezes, depois do jantar. Agora fosse dizer a ela que era por causa do cigarro, ficava valente. Ora! Que cigarro que nada, tantos anos fazia que tinha deixado de fumar.  Marcou até a data, foi exatamente no trágico dia do ocorrido com doutor Getúlio. Isso mesmo no dia que Getúlio Vargas suicidou-se. Chorou tanto, e teve uns acessos de tosse que quase morre, vomitou e teve febre. Prometeu daquele dia em diante não mais fumar e não fumou. Júlio tirou o chapéu do cabide, e ficou com ele nas mãos só pra ter o que mexer com as mãos. Mãos que rodavam um chapéu. E mais uma vez olhou pra Tagor. Tinha vontade de abraça-lo, dizer da saudade que sentira, mas faltava coragem. O orgulho ferido falava mais alto. Saber não sabia, qual reação seria a sua. Talvez aceitasse, só por respeito, o abraço. E seus braços lhe envolvendo, com suas mãozonas espalmadas afagando as costas. Longos braços, largas mãos de um filho, e de um pai. Ambos, sem vontade de falar, nada.

O Primeiro irmão estava lá na moldura do retrato. De repente entrou na sala, como um fantasma que voltava do passado. E chamou Tagor pelo carinhoso apelido que lhe dera: “Vamos ‘Ray’! Vamos pescar!” Aquele sorriso, os dentes brancos, molhados de saliva. A boca aberta. O rosto, as pupilas dos olhos refletindo a luz que entrava pela porta, numa manhã tão parecida com aquela. O irmão mais novo. Pisoteado morrera por um tropel de cavalos. O fogo na mata crepitando, o calor daqueles dias quentes. ‘Nunca mais’ eram palavras muito fortes. Nunca mais, as caçadas pela caatinga. Nunca mais, ir catar tanajura no cair da tarde pelas veredas que levavam a serra dos macacos. O jumento com os caçuás no alto da ribanceira balançando o rabo do mesmo jeito. Escoiceando as mutucas. Emprestando as mesmas recordações, as mesmas lembranças, do tempo de criança. 

O cortejo seguiu pela estrada de terra com uma ruma de meninos e meninas, vestidos em suas melhores roupas pra acompanhar Jaime a seu jazigo eterno, no cemitério do capão pelado. Ficava lá longe. Tá vendo aquele ponto branco na croa da planura? É lá o cemitério. Tudo em volta era azul. Os pés de craibeiras emprestando sua beleza de florescência pra o irmão de Tagor se enterrar com muita dignidade. E ficava o menino em cima do muro do cemitério se equilibrando, brincando de trapezista. Ainda bem que o pai não via, porque se visse lhe daria o maior carão. E a reprimenda era por que aquela travessura estragaria os sapatos comprados exclusivamente pro seu funeral. 

Ana Clara, quando era obrigada a ficar quieta tinha mania de ficar fazendo qualquer coisa com os dedos das mãos. Ainda hoje, não sei que mania era aquela. Todos sentados no banco da capela. E Clara ficava tentando dar nó nos dedos. E os outros irmãos apenas a observava, curiosos talvez. A menina azul, dos olhos azuis, dos lábios azuis, tão finos. A franja derramada na testa. Não sei como não sentia agonia, aqueles cabelos quase entrando nos olhos, brincando de pega com os cílios cujas pálpebras moviam a intervalos frequentes. Na gaiola tinha um guirrinho, azul. Na tarde azul passou um vento. E o guirrinho morreu. Seu Irineu disse que foi o mau vento que matou o passarinho. Às três da tarde João, Lucas e Pedro parara o joguinho de futebol pra ir tomar suco de beterraba com sequilhos, de dona Faustina. Ficavam todos com bigodes vermelhos, e sorriam com dentes de vampiros. E era o sol azul, as nuvens azuis. Os dedos azuis, as unhas azuis, os lábios azuis, do meninos defunto.

E ia o mundo do anel do gigante de Avor vivendo seus dias. Alberta a outra irmã de Tagor queria ser cantora lírica, chegou a trabalhar na boate ‘Danúbio Azul’. Nunca quis casar, caiu nas graças dum empresário rico do setor têxtil. Conheceu Paris, Londres, Amsterdã. Trouxe lembranças de cada país que visitou. Nunca tinha deixado Poço da Areia, na vida azul que vivia. E passeou meio mundo ao lado do coronel Valadão. Dono de meio mundo de terra, em Cuba, Nicarágua, e em Pedra Azul, Minas Gerais, no Brasil. Só bebia vinho português, só fumava charutos colombianos. Na década de sessenta viajou por toda a América do Sul e Central apoiando os movimentos revolucionários a Une as Farcs. Desde a década de 20 vivia essa realidade. Conheceu Luiz Carlos Prestes, esteve na marcha da coluna Prestes, tudo fachada, revolucionário de araque. Só pra esconder seus ideais de anarquia, de enriquecimento ilícito.  Vivia sempre metido num terno chinfrim cáqui, calça boca de sino, sapatos cavalos de aço. Gostava de ouvir Bee Gees, o grupo ABBA, às vezes Elvis Presley e Rolings Stones, The Beatles. Usava o cabelo ensebado de brilhantina, bem aparado, um bigode fino desenhando a boca. E um eterno óculos escuro cobrindo-lhe os olhos, não importando a que hora ou ambiente se encontrasse. Recebia mulheres do mundo inteiro em suas mansões, para festas espetaculares. Uma vez que o setor algodoeiro, com o advento do nylon, entrou em decadência. O narcotráfico passou a ser sua atividade principal. Considerou que Valadão era um nome agressivo, fundou uma religião e passou a se chamar Pastor James. Fundou a igreja Adventure de Maria Madalena e os Santos Panos.

Os santos panos, também eram um código, para esconder o tráfico de drogas da América Latina pra Europa, e Califórnia americana. Onde entra a família azul nessa história? Rafaela a terceira irmã de Tagor de tanto sofrer no semi árido americano, resolveu mudar de vida. E numa das viagens que os adeptos de sua religião fazia de intercâmbio espiritual conheceu o pastor James que se engraçou da bela moça sertaneja. Os dois passaram a se comunicar por telefone, do modo fixo, que era o único meio de comunicação popular, existente na época. E desse relacionamento dariam a iniciarem um novo meio rentável, o tráfico de bebês. As mães pobres da vila Poço da Areia não tendo com criar seus filhos, entregavam a ‘irmã’ Rafaela que os levariam para serem adotados por famílias europeias. Assim era dito, a realidade podia ser bem outra, a retirada de órgãos vitais para transplante. 

A família azul era doente. Irmãos cheios de traumas, de ressentimentos, uns com os outros. Não se entendiam. Sequer se aceitavam prisioneiros do gigante de Avor. Mantidos enclausurados dentro da pedra de um anel. Vivendo suas medíocres vidas azuis. Tinham tudo pra ser felizes, mas não eram. Embora pensassem que eram. Sem jamais conseguir se libertar. Os cavalos de Avor desembestados desceram a montanha de Mallbor. Desunião, maldade uns contra os outros, inveja, era o que mais marcava a vida da família azul. A casa permanecia sem alcançar o progresso que a maioria da vila alcançava. Presa a um destino perverso. Perdida na maldição do azul. Doenças a cada um dos seus membros. Ajuntavam em vão. Quem sabe um dia se dessem conta do verso bíblico no salmo 127: “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela".

Fabio Campos, 19 de outubro de 2016.  

P.S. A gravura que ilustra este episódio o 11° de T. Fashall é uma foto da imagem de São Vicente.       

O ENCONTRO DOS DEUSES (10° Episódio)



Os guerreiros de Andrômeda resolveram reunir-se no cemitério de Delphinus. Eram onze ao todo: Lacerta, Cignus, Vulpecula, Equuleus também chamado de Pegasus, Aquarius, Pisces, Alpha, Beta, Gama e Ômega. E claro, a anfitriã Andrômeda de Delphus. O céu ficou pequeno pra tantos deuses. Um a um foram chegando, causando alvoroço entre os humanos. Desciam das nuvens em meio a fogo e raios pavorosos, a dar nos nervos dos pobres mortais. Lacerta chegou montada num dragão que vomitava línguas de fogo. Na hora de aterrissar, a calda chocou-se com as catacumbas destruindo as cadeias que prendiam os mil demônios de Arminius. Assim que se viram libertos danaram-se a espalhar terror nos arredores das cavernas de Avor. O gigante de Avor acordou-se, muito irritado.  Isso era mais do que suficiente pra todos ficarem ainda mais preocupados. Na mão direita exibia três anéis. Cada um, uma pedra preciosa, turmalina, topázio e rubi. A turmalina encerrava o destino da família azul. Os irmãos azuis, presos a seu mundo azul, no dedo médio do gigante de Avor. A casa era modesta nos seus cômodos todos azuis. Tudo, dentro e fora, era azul. Viviam sob a maldição do azul.

João, o terceiro menino das bicicletas, deu-se ao trabalho de explicar aos membros da assembleia que Tagor continuava vivo. Simplesmente porque não era ele que estava lá, no dia da grande explosão. E num imenso telão projetado na parede da capela do cemitério foi exibido aos presentes um vídeo, feito naquele dia. Tinha como intenção dirimir as dúvidas. Os abutres se espantaram assim que a projetação na parede repetiu a explosão. As imagens se sucederam. Era um filme caseiro, amador. Primeiro a filmagem foi passada rapidamente de trás pra frente. O míssil explodido, implodindo em segundos. Como um fumante que engole todo o fumo duma só tragada. A nuvem de fumaça, poeira e destroço se consumindo para em seguida deslocar o ar. Fracionar toda matéria a sua volta. A imagem onde estava Tagor foi aproximada, e um homem com trajes árabes se ampliou na tela improvisada. A barba negra, o turbante, envolvendo os cabelos, o brinco brilhando douradamente debaixo do sol. O nariz anduco, a pele bronzeada de oleosidade debaixo do céu azul, e sol de verão daquela tarde oriental.



Uma mulher muito linda seminua. De pé sobre uma tumba que tinha no alto uma estátua de netuno toda de bronze, cujo tridente enlaçado por uma imensa serpente escamada com a boca aberta exibia a língua fendida laureada de duas presas ameaçadoras. A moça despiu-se totalmente. E admirava sua própria imagem refletida na lápide da tumba. Aquela pele alva, debaixo do sol. Sem pudores, sem medo de ser provocante. O cabelo incrivelmente não esvoaçante. Por que, um só fio não se movia ao vento? Seria real aquela criatura? Talvez não passasse duma estátua, uma deusa, de Vênus, uma Afrodite. Fruto da imaginação de muitas noites insones. De mente perturbada, doentiamente, febril. De frio e calafrios. Os seios afrontavam o vento. Desafiavam todas as bocas dos zumbis a pronunciarem um único “ai!”. Aqueles cabelos inquietavam. Não dava pra entender porque não esvoaçavam ao vento. Os lábios levemente abertos, como se fossem sussurrar algo incompreensível aos céus. De certo seria mais um desafio. Outro enigma. Alguém seria capaz de encontrar tão rara beleza noutro ser? Aquele ventre de mármore. Transpirava e movia-se tão sutilmente que somente se percebia se se estivesse atento. Como podiam conter tão ousados caminhos, de pelos? E o cheiro desprendido dali, mas que alucinava, quem se aproximasse se apaixonaria. Desavisadamente, fatalmente morreria por asfixia. Do lado que Tagor estava a visão que tinha era as costas, as belas nádegas, as pernas esculturais. Refletida via-se as espáduas, o ventre o púbis, as coxas bem torneadas. Do jeito que estava estática, Andrômeda foi arrebatada por Equuleus. O cavalo pretendia fazer amor com a deusa. E eram ambos do mais puro desejo sexual. As flores das catacumbas desmaiadas sem cheiro, nada tinham de orgânico. As cores desgastadas por conta de muitos dias de sol. Os batentes de granito polido, guarnecidos de lágrimas de parafina, branca, endurecida, das velas votivas, amplamente queimadas. O reinante nauseabundo cheiro de defunto.


A mulher nua, montou o cavalo. Desaparecera das vistas dos presentes a galope rumo ao sol, se equilibrando na linha do horizonte. Os raios encrenqueiros permaneceram deslizantes suavemente sobre os fios dos postes. E os bulbos das lâmpadas retiveram buquês de rosas roxamente cintilante. Um cheiro de amor invadira o ar. E os relinchos voavam abraçando o infinito, ardentemente abrasadores, ecoando por toda constelação de Andrômeda. Era preciso saber quais decisões haviam sido tomadas. O grande livro de atas ainda não tinha sido fechado. Nada até o presente momento, dera sinal de que se chegara ao final da reunião da grande cúpula. A espada de pedra de Lacerta estremeceu os pilares, dando a iniciar tremendo terremoto. E o gume mudava o tipo de material de acordo com o estado de seu humor. Ferro se ficava séria, bronze se zangada, inflamada de chamas, se rancorosa. Era como estava naquele exato momento, cheia de ciúme de Equuleus. O dragão ficara totalmente vermelho, naqueles momentos de puro ódio. Avançou em ataque sobre o cavalo. A espada atravessou-lhe o peito ferindo mortalmente. O sangue puro ouro, em estado líquido. Ao respingar no altar de Delphinus cada gota se transformava num esqualidus que nascia inteiro, completamente pronto pra luta. Os seus olhos escureceram na parte branca. Todos os lírios do cemitério alvos de medo. Os patos e os cisnes do lago escureceram as plumagens. Todas as crianças tiveram medo daquela cena. A água antes límpida e translúcida tornou-se vermelha como sangue. E um maremoto se formou atingindo mais de mil metros de altura. A força da água arrebentou a muralha do castelo de Delphinus. 


Foi grande a destruição. Os meninos puseram a brincar com os corpos dos guerreiros mortos, petrificados. Um que parecia um samurai tinha uma espada erguida à cima da cabeça. Apesar da calva, possuía longo rabo de cavalo. A armadura cobria todo o peito, e os apetrechos de guerra trazia todos, aderidos ao corpo. Um punhal com cabo de madrepérola e pedras preciosas encravadas na empunhadura.   A barragem feita com areia lavada. As pedras sobrepostamente quadradas. As mãos dos meninos engrelhadas de tanto mexerem com água. Os brinquedos todos molhados. Teriam que ficar o dia todo ao sol, antes de serem guardados. O forte de pedras com o impacto da água veio a baixo. A roupa de banho com as listras azuis e brancas. O desenho da boia com a âncora, e a corda bordada ao peito. O boneco inflável eternamente sorriso pregado no rosto. Sem nunca conseguir ficar triste, mesmo que ficasse sozinho. 


A morte de Tagor fora esclarecida. Na verdade não houvera morte, não dele. Um árabe muito parecido com ele morrera na explosão do míssil. Houve uma grande tempestade depois daquele dia. Se tudo desse certo, em breve seria outono. Um grande abraço de paz abraçava o mundo. Aconchegante e morno como a parte interna das mãos e dos braços, e doce feito gineceus de lírios, e musical como o amanhecer de inverno.  O clima de azul, de flores e perfume da seiva aromática do tronco de ipê, monstruosamente alto. As janelas com suas cortinas leves balançando suavemente ao vento. E entrava sacudindo e abraçando as poltronas vermelhas da sala tristemente solitária. A saudade de tantos momentos bons passados juntos. Tagor e Antonieta eram puro amor, cavalo e deusa. Pedra e aço, ferro e bronze. 


Os meninos passeavam na praça onde nasceram e se criaram. O parque infantil tinha cores alegres, os cavalinhos, os carrinhos, o carrossel. Os meninos gostavam de aventura subiam nos pés de fícus como João escalara o pé de feijão. E sumiam por entre as folhas. Esperavam encontrar um céu onde tivesse um gnomo sentado numa mesa imensa que possuísse móveis enormes. Não era, no entanto, hora pra conto de fábulas porque Tagor tinha um crime nas costas. Aliás, um não dois. O roubo do mapa do tesouro, isso quando era pequeno. O outro crime esse sequer lembrava. Esperava que Deus tivesse atirado nas profundezas do mar.


Depois de fazer amor, os amantes exaustos, ficaram caídos na praia. Ao recuperar alguma força o cavalo pôs-se a pastar a relva verde ao cair da tarde. Enquanto as ondas quebravam na areia produzindo a mais bela das canções para os ouvidos enamorados. A deusa, o corpo nu estendido sobre a areia, o cabelo molhado. Sonhava com tudo que uma alma satisfeita é capaz de sonhar. Cansada não tinha força para qualquer tipo de reação. Se o cavalo fizesse nova investida, condições nenhuma de reagir. Simplesmente se entregaria.


Fabio Campos, 10 de outubro de 2016.

P.S. A gravura de ilustração deste Conto é de minha querida mãe Dineusa Bezerra a altura dos seus 90 anos. Num dia qualquer do mês de setembro, logo no início da primavera deste ano de 2016.