Sinais (16º Episódio de T.F.)

Senhora Júlia se encontrava sentada sobre uma pedra imensa. A pedra era parte de um lajedo, que se estendia galgando altura, as suas costas. Ainda trajava as mesmas veste com as quais havia sido assassinada. As manchas de sangue, no entanto, não mais havia. Os braços mantinham-nos apoiados sobre as coxas, o tronco se insinuando sinuoso, esbelto, ereto. Serena e contemplativa tinha a face voltada pro horizonte, a sua frente. Um imenso deserto de areia fina donde podia se vislumbrar muito longe, onde a vista não conseguia alcançar. Um mar de águas calmas, feito de um azul profundo que cintilava, sob um céu lilás, sem nuvens, sem estrelas, sem nada. Vento de nenhuma direção soprava. 

De modo que seus belos cabelos praticamente não se moviam. Dando-lhe aparência de uma gravura, uma fotografia antiga. Como o cartaz de um filme, da década de quarenta. Sem brilho, quase sem cor, estática, emblemática, taciturna, porém pragmática. Num clima de mistério, envolta. E o que mais parecia era não haver ali, qualquer outro tipo de vida, além daqueles dois: Júlia e senhor Edgard. No entorno e talvez a milhares de quilômetros e por uma eternidade inteira ninguém além deles. Dava perfeitamente para perceber a falta de alguma coisa, que talvez nenhum deles soubesse explicar direito o que. Talvez houvesse naquele lugar ausência de saudade, de tristeza, de melancolia. Outros sentimentos físicos intrínsecos a vida humana não houvesse. Dava pra perceber ali, não havia calor, ou frio. Percebia-se a ausência de insetos, do pipilar de pássaros. O soprar da brisa, o vento, a poeira da areia do deserto. Que lugar era aquele, meu Deus?

Senhor Edgard estava como que ocupado com um livrinho vermelho, um pouco maior que um maço de cigarros. Com uma caneta, nele fazia anotações. E só agora dava pra perceber que havia uma lua que era a fonte de luz que iluminava todo o cenário. Senhora Júlia com uma pergunta desconcertante quebrou o silêncio: -Posso saber porque o senhor matou-me? Segurando o aro dos óculos com a mesma mão que segurava a caneta, o homem de terno impecável e chapéu Prada, com a calma que lhe era peculiar respondeu: -Dona Clarice, a senhora não está morta. Senhora Júlia entendeu menos ainda. Isso mesmo, seu verdadeiro nome é Clarice, já eu chamo-me na verdade, John, mas isso não explicarei agora. Vamos aos fatos. Naquele instante o ambiente se transformou numa espécie de sala de projeção. Os dois agora estavam comodamente sentados em cadeiras de encosto almofadado, e repouso pros braços. Lado a lado posicionados sobre um tablado como um palco de teatro. E na tela apareceu a cena do crime. Lá estavam os dois revivendo os momentos que ocorrera o suposto assassinato da senhora Clarice. E senhor John disse: -Observe quando eu saco a pistola, você não vê, mas logo de detrás da cortina um homem, senhor Willians, dispara um dardo que atinge seu pescoço. Esse dardo contém um tranquilizante que fez com que você entrasse em transe. Tudo o mais que você viu. Os tiros, o sangue na roupa, eu lhe amparando até você dar o último suspiro, tudo não passou de ficção. Tudo encenação que induziu a sua mente a crer que aconteceu de verdade.  

Senhor John continuou: Como havia combinado de participarmos de um jogo aonde tentaremos confirmar uma hipótese que lançamos, de que os fatos se sucedem de modo a repetir-se. Isso incluirá uma volta através do túnel do tempo. Sou arqueólogo, durante uma expedição na Cisjordânia em 1972 minha equipe e eu numas escavações no delta do rio Jordão uns escritos que devidamente traduzidos levou-nos a uma descoberta incrível.    
A casa dos meus avós, onde eu sempre passava as férias. Assim como todas as casas do mundo. Todas carregam uma fonte de energia que vai sendo transmitida de geração a geração. E todos os acontecimentos do passado tendem a se repetir no futuro. De uma forma ou de outra elas tornam a acontecer. Vamos reconstituir o caso da morte dos meus avós: Jairo e Letícia. O casal de velhinhos encontrados mortos no quarto, deitados na cama, supostamente degolados. E que a polícia dera por encerrada o caso, como duplo suicídio. 

Vamos voltar lá dentro da casa. Não nos dias atuais, mas em 25 de março de 1945, o dia fatídico para meus avós. Descobri que o casal de velhinhos encontrados deitados na cama mortos, não eram meus avós. Apenas fisicamente pareciam com eles, mas sei como tudo ocorreu. E onde meus avós se encontram neste momento. O casal encontrado mortos na cama se chamava Heloísa e Pinheiro. Naquele dia também foram eles pro lago pescar, era uma manhã ensolarada. Meu avô fez uma fogueira na areia a beira d’água. Acamparam naquela noite, a beira do lago. A barraca de lona existe até hoje. E ficaram até altas horas olhando as estrelas, e conversaram muitas coisas, sobre os anos de casado, sobre os filhos, as conquistas, as dificuldades que enfrentaram até chegar ali. Não era um casal tão velho assim, vô Jairo, também Pinheiro contavam com 57 anos, vó Letícia, assim como Heloisa 48. Dali uma semana fariam aniversário de casamento. Haviam programado uma reunião de família pra comemorar os 30 anos de casados. Nada levava a crer que quisessem morrer.  Nenhum um nem outro casal, vontade ou motivo teriam pra cometer suicídio. Nada na vida deles levava a isto. Um surto psicótico, um histórico de esquizofrenia, talvez vindo dos ancestrais, nada. Aquilo era um desafio pro mais experiente perito criminal, ou estudioso da psique humana.  

Senhor John tentava explicar pra senhora Clarice o mistério, a descoberta feita nas escavações do deserto, lá no oriente médio. Quase que acidentalmente descobrira o que estava para revelar. Utilizando um raio de luz infravermelho dentro da câmara onde havia um sarcófago, encontrou o que supunha ser a chave para o enigma de tantos casos de fatídicos, fatos ocorridos sob estranha circunstância. Em especial os que aconteciam dentro das casas, no meio das famílias. Começou a juntar o quebra-cabeça a partir de uma foto de sua avó, ainda jovem, trajando um vestido vaporoso que deixava a mostra boa parte das espáduas e colo. Chamou-lhe atenção a incidência de três sinais de nascença. Pintas pretas destacadas na pele alva. Mas o que teriam mesmo 3 pequenos sinais a ver com os assassinatos? 

O fato de que nas gerações anteriores dos avós de senhor John, uma sobrinha, Cíntia Flores, também apresentava os sinais sobre a pele, com a mesma simetria, só que no abdômen e ventre. Um tio de sua mãe Tião Dionísio, possuíra os mesmos sinais, sendo que na coxa ventre e virilha sempre estabelecendo semelhança na simetria. Ao ligar os sinais entre si, indo de um ponto ao outro, traçando linhas retas tinha-se a formação de um desenho que parecia uma taça, uma tulipa talvez. Senhor Pinheiro e Heloísa, nenhum dos dois possuíam os sinais. O mais interessante senhor John deixou pro final, levou Clarice até a sala de sua casa, não fisicamente, mas em transe. Seu corpo se encontrava mesmo, deitado numa cama de um laboratório de ciências, em algum lugar de Oklahoma. Apagou as luzes e ligou um feixe de luz que deixou o ambiente numa penumbra azulada. Acionou um dispositivo que encheu a sala duma fumaça, que se tornou igualmente azul, imediatamente no centro da sala, pairando no ar três pontos vermelho intensamente brilhantes. Os mesmos sinais que apareciam sob a pele, dos corpos dos antepassados do senhor John, estavam lá. No meio da sala, em três dimensões pairando no ar.



Fabio Campos, 26 de novembro de 2016.

P.S. A gravura que ilustra este episódio é de Santa Beatriz da Silva e Menezes. Comemorada em 01 de setembro.

*PALO SECO (15º Episódio de T.F.)












Uma mosca varejeira, incômoda esvoaçava sobre as costas da mão. Descarnada, ossuda, de veias grossas do velho homem. Donde se desenhava rios subterrâneos, em alto relevo, formando mapa hidrográfico, que levavam sangue verde, pra dar vida aos dedos. Impaciente vinha a outra mão, violentamente bater sobre a primeira. Vã tentativa de por fim a vida alada do inseto. O segundo menino da bicicleta olhava o infinito a sua volta. Observava a luta das mãos do velho pai, contra a mosca. Os dois de cócoras. Aguardavam chegar a vez de pegar água no açude. Eram os últimos da fila. Em silêncio o menino pensava. Em que pensava?

No dia que cometera o maior delito, de sua outra vida. No tempo que morava na cidade. E ia sempre a casa do menino da rua de trás. Um crime cometera. Um roubo cometera. Enquanto o amigo tomava banho. Sob a blusa, escondeu figurinhas do álbum de jogadores das seleções de futebol, de todo o mundo. Saiu às pressas, sem esperar que o amigo retornasse. Pareceu que, ele jamais percebera, ou se percebeu, nunca tocou no assunto. Durante toda a infância cometeria outros pequenos delitos. No pomar da casa das sete mulheres roubo de tamarindo. No quintal do promotor de justiça furtara cágados. Do jardim do doutor esculápio, figos surrupiados. Das árvores do paço municipal, amêndoas. Mas nada fora tão grave quanto as figurinhas do álbum do amigo, da rua de trás. Até porque para os outros crimes houvera álibis perfeitos, cumplicidade dos demais, pequenos delinquentes. Achava que aquilo não passava de um sonho. E que aquele menino nunca, jamais fora ele.

E viria a semana santa daquele ano, e haveria a necessidade de se confessar, de contar pro padre, os pecados. E sempre escondia as faltas cometidas sozinho. Contava somente os pecados na companhia de outros. Pecados em grupo, dava pra dividir a culpa. E o sol sabia de tudo. Aonde fosse ele estava lá, como que dizendo “Eu vi tudo”. O sol era como Deus. Talvez fosse o próprio. Dando vida, e tirando, na hora que achava necessidade, de uma, e de outra coisa. Definitivamente não contaria aquele pecado. Afinal não fora ele que cometera.

“Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos lhe direi
Amigo, eu me desesperava”

Em 1973 Tagor estava no Chile. Morava lá. O rigoroso inverno chileno, nada comparável ao governo de Augusto Pinochet que acabava de subir ao poder. Lembrava agora mesmo de como era desesperador perder a sensibilidade dos dedos. O gelo invadindo lentamente o corpo. O frio como que dizendo: “Vou te matar, mas não tenho pressa. Farei isso bem devagar, para que saibas o que é morrer de frio”. Era onze de setembro daquele ano. O golpe militar, as ruas, as casas, as mentes tudo sendo invadido abruptamente. Assim como o frio sem o menor remorso, sem dó, sem culpa. Desbotando a coragem ou qualquer tipo de entusiasmo de quem quer que fosse. Salvador Allende caindo, vertiginosamente caindo. Despencando dos púlpitos das praças, dos brasões incendiados. Nos retratos das repartições rasgados. Já não mais a olhar sereno pro futuro. Não havia mais futuro. Debaixo das patas dos cavalos, o socialismo sufocado, pela flâmula, pelas armas tripudia do soldado infame. Os ideais de igualdade esmurrados, tudo e todos terrivelmente feridos de morte. E o som de uma gaita silenciaria, e não mais acalentaria uma fogueira, que agora queimava, ardendo em frias chamas, os corações dos pobres gigantes. E as submetralhadoras a vomitar projeteis varando incólumes os peitos varonis. Enquanto os olhos vendados da justiça, apenas ouvia, nada via. Não via o derramamento de sangue, os paredões dos fundos dos prédios públicos lavados de heroísmo, lavados de sangue de mártires. Lá do alto a águia com suas asas abertas. De ódio, puro ódio abria o bico.

“Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 73
Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente eu grito em português”

O outro menino da bicicleta, morava no Brasil. Era o que as moscas perturbavam a ele e ao velho pai. Morava no vale do Cariri, no Ceará. Estava agora sozinho, de frente a sua casa, de taipa. A mãe e o pai entraram, a buscar água cor de barro trazida do poço da cacimba. O jumentinho acinzentado e seu sinal, uma bola preta, na parte interna da pata direita. E estremecia o couro naquele ponto, toda vez que uma mosca pousa lá. De repente, do nada, surgiu-lhe a sua frente um menino. Pelos trajes devia ser um indiano. Mas o menino do sertão não sabia disso. Sem dizer palavra, apenas o observava. E sem que saísse nada de sua boca perguntou seu nome. Entendeu que estava tendo uma visão, e que o menino estranho, de roupas coloridas e turbante, falava sua língua penetrando-lhe o pensamento. Ouvia sua voz, dentro da sua cabeça. Pensou em correr, fugir dali. Mas pra onde iria? O menino da visagem repetiu: “-Meu nome é Tagor. E o seu?”

“Tenho 25 anos de sonho e de sangue
E de América do Sul
Por força deste destino
O tango argentino me vai bem melhor que o blues”

Mas, e como eram as bicicletas naquele tempo. A “Monareta” tinha uma espécie de torneira no meio do quadro. Nunca soube exatamente pra servia aquela torneira. O menino do sertão queria tanto ter uma bicicleta. Mas tinha que ser daquelas de adulto, uma “Monark”. Não queria uma “Caloi” da propaganda de natal. No sapato o bilhete: “Papai não esqueça da minha Caloi!”. Uma daquelas nunca lhe enchera as vistas. Bicicleta de almofadinha. Precisava de uma que aguentasse o trampo, a lida pesada da vida no campo. Tagor nada prometeu, muito menos dar-lhe uma bicicleta. Não entendia de onde o menino tirara aquela ideia que ele talvez fosse uma espécie de gênio da lâmpada. Não, não estava ali pra realizar desejos de ninguém. Sua missão era bem mais complexa. Uma coisa era certa, não tinha pressa. Precisava acompanhar o menino na sua lida diária. Precisava conhecê-lo melhor. E descobrir se nele encerrava os pré-requisitos para a missão a qual deveria empreender, juntos. Tempo era o que mais tinha no momento.

“Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 73
Eu quero que esse canto torto
Feito faca corte a carne de vocês”

O homem de terno, disse a mulher ruiva. Eu vim até sua casa com uma missão, digamos assim, bastante desconsertante. Mas infelizmente terei que fazê-lo. E qual seria essa missão? Quis saber. Simples: matá-la. E sacando uma pistola automática, provida de silenciador, efetuou três disparos. E o som era como um pedaço de pau seco quebrando. Os projeteis penetraram o tecido vaporoso das vestes da mulher. Imediatamente viraram três rosas de sangue: uma no colo, outras duas, no peito e abdômen. Antes que caísse foi amparada, e cuidadosamente depositada no chão, por seu próprio assassino.

Fabio Campos, 18 de Novembro de 2016. 

*P.S. Este Episódio está entremeado da música de Belchior "Palo Seco"; do espanhol, quer dizer 'pau seco'. A gravura é do próprio autor, com sua aluna Carla Dantas, no dia do 'halloween' deste ano.   



O Jogo (14° Episódio de T.F.)

O homem de terno sóbrio, e chapéu, apertou a campainha, e ficou esperando. Posicionou-se de modo a ficar de frente pro olho mágico. Para que pudesse ser visto, porém não reconhecido, pelos que moravam na casa. Aproveitou para olhar em derredor. A morada era uma construção alegre, arejada, a tonalidade dominante de paredes, janelas e cortinas era a cor branca. Tinha sacada, varanda, jardim, tudo muito amplo e bem cuidado. Plantas ornamentais esmeradamente cuidadas. O telhado americano, de conchinhas avermelhadas, contrastava com o céu azul, pontilhado de flocos de nuvens branquinhas. A vizinhança de casas identicamente serenas. Pareciam dormir.

O homem pousou a maleta no chão. Tirou o chapéu, tentou abanar-se com ele. O cabelo bem cuidado dava indícios de que logo teria o dobro de fios brancos nas têmporas que tinha agora. O rosto másculo, porém suave, barba bem feita. Aparência de um pastor evangélico, branco, inglês, da década de trinta. Tentou adivinhar que horas seriam. Pensou em 13 horas. Consultou o relógio de pulso, errou por 35 minutos. Dispôs-se apertar, mais uma vez a campainha, e de lá dentro, ouviria o insistente e sonoro ‘din-don’ como que dizendo: ‘por favor. Alguém atenda à porta!’. E eis que se abriu. O indicador ficou suspenso no ar. Inquisitivo apontava pro nada. Talvez pra aquela que abrira a porta.

A moça surgida a sua frente, era uma ruiva muito bonita. Nos lábios um batom vermelho vivo. Os olhos claros, os cílios arqueados, as sobrancelhas sinuosas como que diziam: ‘Quem é você?’. O corpo escultural, amplamente favorecido dentro duma blusa vaporosa e saia elegantemente rodada, tão em voga nos anos 40. A segurar ainda a maçanenta os cumprimentos. O inevitável, mais por educação, convite a entrar. O homem apresentou-se com sendo Edgard Piazzentini, professor. Ela disse chamar-se Julia Maldonado, esposa de Robert Maldonado. O homem queria saber pra início de conversa, à quanto tempo aquela família habitava a casa. A moça ainda mais curiosa esclareceu que desde que se casara, fazia dois anos. Edgard tinha uma história interessante pra contar.

Menphis Thophelis a macerar com as mãos uma bola invisível enquanto pronunciava palavras ininteligíveis. Em torno de si, uma densa nuvem multicolor girando, alucinadamente girando a tomar forma, mais e mais. E uma micro galáxia de pequenos planetas, de milhares de minúsculas estrelas, asteroides e meteoros no sentido horário a girar intensamente em torno do seu corpo. Finalmente a bola incandescente se materializou. Permaneceu flutuante a sua frente. E Menphis somente com a força do pensamento arremessou-a contra Tagor. O globo em fogo ardente voou furiosamente. A esfera de larva incandescente foi chocar-se no escudo de Tagor, voou brasa pra tudo quanto foi lado. De muito longe deu pra se ouvir o estrondo. Foram muitos os que temeram tal combate. A reação foi imediata Tagor atirou sua lança que varou o olho direito de Menphis. O demônio quase não se abalou, com suas próprias mãos arrancou o dardo cravado em uma de suas vistas. Isso serviu apenas para irritá-lo ainda mais. De dentro de um bornal que trazia a tiracolo, retirou umas estrelas prateadas de lâminas afiadíssimas. Arremessou à primeira, que partiu o escudo de Tagor em dois pedaços. A segunda vinha no ar e foi interceptada por um tiro da espingarda de Tagor. Três lâminas mais haviam pra atirar. Menphis o fez de uma só vez. A primeira e a segunda, encontrou o infinito como alvo. A terceira no entanto decepou o  braço direito que Tagor empunhava uma espada. O braço apartado do corpo tinha fios e circuitos que começaram a soltar faíscas. E Menphis entendeu que estava lutando com um cyborg. A máquina em forma de nosso herói se virou num transformer. O rosto perdeu a pele e adquiriu a textura metálica. Perdeu o cabelo e no lugar surgiu crânio de aço. Olhos, nariz e boca de ferro. O tronco era todo um tanque de guerra e de seu braço intacto lançou um torpedo contra o diabo, explodindo em milhões de pedaços.

João um dos meninos da bicicleta, estava no meio do mato. Havia parado pra descansar, Era seis da manhã esperaria Lucas. Eis que não demoraria  se encontrar, e iam conversando. O sol esquentando altas copas das árvores. O orvalho das folhas de mato rasteiro molhando as canelas finas. As mutucas exercitando a arte de sugar sangue logo cedo. Os meninos, no dia anterior, a quatro mãos, haviam construído uma caverna na base da montanha. Tinham   armado umas arapucas pra captura de preás. E agora iam ver se havia logrado êxito, quem sabe pego algum herbívoro roedor. O tio Feliciano satisfeito ficaria, pois os roedores estavam estragando a plantação de palma. De repente do meio do mato surgiu Marcos. Todos estranharam o encontro inesperado pois não haviam combinado, de encontrar-se com ele ali. Ainda mais aquela hora. Sequer sabia ele da jornada matinal que os outros dois tinham inventado. O estranhamento foi geral. Marcos, por sua vez não conseguia disfarçar que não previa encontrar ali os amigos. Afinal o que estaria mesmo acontecendo?

Senhor Edgard, sentado no sofá da sala, com a canhota segurava com delicadeza o pires, com a destra a asa da xícara de café. Agora de óculos de grau, o que dava um ar de quem inspirava um pouco mais de confiança. Iniciara-se a contar sua história, dizia que naquela casa morara seus antepassados por parte de pai. Seus avós paternos, senhor Jairo e dona Letícia. Na época a casa não tinha vizinhança ficava isolada, praticamente um pomar. Viviam do que colhiam na roça, de frutas, hortaliças, granjeiros e da aposentadoria por velhice de ambos. E a forma com os dois foram mortos é que intrigava. Foram encontrados ambos degolados, deitados na cama. Não apresentavam nenhum distúrbio psíquico, na família. Pra polícia o caso foi arquivado como um duplo suicídio. Edgard, porém, jamais aceitou tal versão e pôs a investigar. Cinco décadas já haviam se passado de tão trágico acontecimento. Lembrou que não muito longe dali havia um lago. Onde seu avô costumava leva-lo quando vinha passar as férias com eles. E no lado oposto ao lago uma gruta no sopé da montanha. Mostrou uma foto dele e seu avô na beira do lago. Olhando com uma lupa Edgard fez uma descoberta incrível. Lá na entrada da gruta. Sob a luz do sol: Um brilho metálico, e tinha forma humana. Alguém trajado em uma roupa reluzente, como de extraterrestre.

Marcos resolveu contar a verdade. Disse a Lucas e João que naquela noite recebera a visita de alienígenas. Por volta da meia noite bateram na janela de seu quarto. Precisavam de ajuda para localizar um ponto exato no meio do mato, onde a nave espacial de um deles caíra. Um deles estaria perdido no meio do mato. Em vão tentaram localizá-lo, porém os equipamentos deles sofria interferência dos satélites que transmitiam canais de tevê aqui da terra. Talvez se a rede elétrica fosse desligada por alguns momentos quem sabe conseguiriam localizar. E lembraram que exatamente as duas da madrugada faltara energia elétrica em toda região. Esse fato foi confirmado pelo locutor do rádio pela manhã. adentraram a mata. O alien perdido abrigou-se numa gruta muito próximo duma casa sobre as árvores que os meninos tinham construído. Marcos amanhecera na mata e agora inesperadamente encontrava com os amigos. Os aliens não haviam partido agora estudavam o local e precisavam consertar os estragos na nave. Bem como os tripulantes que sofreram ferimentos leves estavam se recuperando. Agora eram três os que se dirigiam pra caverna onde eles se encontravam.

Edgard perguntou a Júlia se ela acreditava, na seguinte teoria: que, pra cada ação de um membro da nossa família, por mais distante que se encontrasse, uma ação equivalente acontecia com outro parente. Não sabia explicar direito mas ia tentar. Se alguém da família cometesse um delito, tipo matar, roubar e mesmo suicidar-se que não deixava de ser um crime, outro membro da mesma família se angustiaria, sofreria, se abalaria e entraria em desespero no exato momento do delito. Tentaria explicar o que nem mesmo entendia por completo. E propôs que estaria na hora de provar essa sua teoria. Pra isso Júlia teria que aceitar participar das regras do jogo.
  
Fabio Campos, 11 de novembro de 2016.

A Gravura que ilustra este Episódio é foto tirada por mim mesmo (autor e blogueiro) de Aika minha neta de 4 anos.

RUBIS DE SANGUE (13ª Parte de T.F.) Família Vermelho












Daria pra imaginar um mundo vermelho? No frio deserto siberiano, talvez. O gigante de Avor mansamente estalava os dedos, polegar e médio. Como se aquilo, pudesse trazer de volta, um tempo de muito lá trás. E olhava pro indefinido horizonte, com tristeza olhava. O vento gelado tocando-lhe o rosto. E tudo voltava, como num velho sonho. Uma fileira de carruagens puxadas por esplendorosos cavalos. Com suas crinas longas, assemelhadas a cabelos de mulher, dama, da taverna de Chavallier. Avançava planície de gelo à dentro. Apesar da tempestade, cavalgavam com tanta pompa e desenvoltura, como de soldados indo pra mais importante batalha de suas vidas. Dava perfeitamente pra se ouvir o flop, flop dos cascos enterrando e desenterrando-se dentro do tapete geladamente alvo.

De um amontoado de peles de búfalo brotou um rosto de homem. O cabelo escorrido e ralo de fios galegos descia por detrás das orelhas. A boca era uma fenda finíssima, como que cortada à faca. Adornada dum bigode escasso, como o cabelo da cabeça. Sobre os olhos duas pregas quase impedia de ver o quase azul da íris dos seus olhos. A pele de tanto frio amareladamente desbotara. Da barba só havia vestígio por debaixo do queixo. As mãos eram como as de Tagor. Grandes, de dedos nodosos, talhada de cicatrizes, e contavam histórias. Morgana Cibeli não saía nunca de sua cabeça. Ainda mais quando ia pelo vale da morte. Lugar dos espíritos maus. Sabia exatamente em que momento eles atacariam. Espreitavam e esperavam o melhor momento.

Um menino sentado à mesa. Os braços apoiados sobre o tablado, os olhos pousados sobre um papel iluminando seu rosto. A luz tênue vinha dum candeeiro agarrado numa forquilha brotada do tapume de barro. A casa era rústica, de taipa. As telhas velhas, agora, cheiravam a barro molhado, depois da chuva da tarde. Trovoadas exercia um poder enorme sobre os seres.  Assanhavam-se as formigas pretas fedorentas a bosta, os imbuás saiam dos seus casulos, as caranguejeiras, também as cobras. Vitorino tinha jantado cedo, à boquinha da noite. Comera cuscuz com uns pedaços de galinha frita. Uma bela duma xícara de café cuja fumaça subia esquentando o bico da venta. Depois acendeu seu cigarro. Deitado olhava pro breu das telhas, de repente sentiu uma coisa fria subindo pelo braço. Pois não era uma cobra? Dum salto estava fora da rede.  Jamais imaginou que contando com mais de sessenta anos ainda tivesse tanta flexibilidade no corpo alquebrado. À olho de machado, num só golpe, matou a danada. Nem bem deitou na rede novamente, e outra víbora, passou por suas alpercatas de couro de boi, e teve a mesma sorte da primeira. Desta vez um golpe certeiro apartou a cabeça do corpo. Nunca mais, Tagor esqueceu aquele dia da sua infância. Da noite tenebrosa de trovoada e cobras, jamais conseguiria reconciliar o sono.

Dona Minerva subia à pé, pra vila dos Bezerros, cinco vezes por semana. As sextas-feiras era dia do sacrifício aos mortos. A porta do santuário se enchia de gente para os holocaustos. O sacerdote ficava debaixo duma tenda coberto com um manto escarlate, as pernas cruzadas as mãos espalmadas rente ao rosto, os olhos fechados. Enquanto gemia, o sol tremia. As nuvens cansadas de tanto esperarem boas aragens. Acabavam desistindo, e pediam ao vento que as levassem para bem longe dali. Desenganadas da vida iam pra outras paragens, desenhar outros céus, levara esperança pra outros povos. Onde meninos brincariam com elas. Os eunucos com enormes abanos. As sacerdotisas punha incenso na pira, recitavam rezas emitindo sons guturais. Os homens cobertos de cinza, totalmente nus, mergulhavam seus corpos untados de óleo, numa espécie de tonel cheio de sangue de carneiro. E deitavam-se por terra com as costas e cabeça no solo, a cabeça raspada. De dentro de uma tenda, surgia um, que só podia ser o feiticeiro. O cocar sobre a cabeça era feito com um falcão empanado, cujo bico ficava apontado pra frente. Seus olhos tinham sombras negras e o brilho daqueles olhos era de alguém em transe, sob efeito de erva alucinógena.

De repente uma nuvem de gafanhotos surgiu, no horizonte. O homem do casaco de pele de búfalo, deteve o comboio. Posicionou-se a frente da primeira carruagem com uma tocha acesa e um punhal, cortou uma mecha de cabelo da crina do primeiro cavalo e tacou fogo. O fio negro de fumaça subiu ao céu e a nuvem de gafanhotos começou a dividir-se em duas colunas, passando de largo pela caravana. Eis que esta fora a primeira investida dos espíritos maus, do vale da morte contra Tagor. Não andariam nem duas léguas e o segundo ataque, uma saraivada de pedras de gelo caiu repentinamente, pegando todos de surpresa. Alguns cavalos, devido aos ferimentos, tiveram que ser sacrificados. E o cortejo seguiu viajem. Eis que do nada, apareceu uma mulher. Vinda da retaguarda, belamente vestida de vermelho, imensamente formosa. Carmem Deolande o seu nome. Perguntou se podia seguir junto à caravana. Disse que descera das montanhas, e que matara um homem, com quem vivia, e que tentara lhe estuprar, arrancara seu coração fora. Trazia consigo a prova de sua marginal façanha. Dentro duma bolsa de couro cheia de gelo o órgão da vida, do amor, sem vida. Sua pele sedosa, o perfume exalado do seu belo corpo. A fogueira crepitando, a escuridão do mundo chegando rapidamente. Corujas rasgando a noite com seus chiados lancinantes, indo à busca da presa. A lua se projetou no céu e sua palidez prenunciava dias muito frios, e noites de tempestades pela frente. Debaixo da neve ainda havia capim, verdinho. Os homens tinha que cavar muito pra tirar o alimento dos cavalos. Descansar, somente alta madrugada.

Miguel Caravajo nascera naquela casa. Lembrava de muitas coisas da infância. Aquela inquietação, e veio-lhe o dia da matança dos porcos. Eis que contraíram doença séria,  febre suína. Toda a vara teve que ser sacrificada. Foi uma noite de horror. Não conseguiu dormir por várias noites. Os grunhidos dos bichos. Por muitos dias ficou ecoando dentro de sua cabeça. O sofrimento antes de serem mortos. Rubis de sangue, na neve. A carne tinha que ser queimada. O cheiro de sangue e carne queimada atraiu os lobos selvagens, e vieram dispostos a atacar. A fome, a chama que clama pela sobrevivência, instintivamente. Aquela foi sim, uma noite que jamais esqueceria. A mãe aos prantos, toda suja de sangue. Tagor e os irmãos, cheios de temores. O pai, com o rifle atirando  nos cães da montanha.

E eis que vinha o dia da colheita de milho, e tudo parecia se acalmar. Os horrores do inverno se dissipavam com a chegada do verão. As nuvens, cabreiras, voltavam por cima dos telhados espalhando sorrisos de muitas cores. O vermelho na blusa de tia Cecília. As tranças de cabelo vermelho, as sardas no rosto sapeca da irmã de Monica. O pneu suspenso pela corda na goiabeira ficou balançando solitário, no quintal. A boneca ficou abandonada sobre o banco. Entrou em casa e estranhou o silêncio. Percebeu umas pegadas, de alguém que entrara pela porta da cozinha e ia pro quarto. As cortina languidamente esvoaçava, cúmplices dum crime. A faca em cima do balcão da pia, suja de sangue de galinha. A mãe estava preparando o almoço. O rádio ligado, o locutor falava de um terrível acontecimento que não dava bem pra entender o que era. Sobre o ataque dum monstro que matara várias pessoas de uma só vez, uma vila inteira. A menina viu um homem negro sentado no sofá. E tinha uma arma sobre as pernas. Brincava com um talo de capim na boca. Com ternura olhou pra garotinha. Chamou-a. A menina se recusou obedecê-lo ele levantou-se furioso. A menina correu.

Alexandre jogava xadrez com o pai, que se distraia falando sobre como estava de saúde. Enquanto tomava uma cerveja. O filho estudava na universidade de Boston, só aparecia nas férias. Lembrou do tempo que Alexandre era pequeno, que gostavam de brincar de esconde-esconde e quando se escondia debaixo da cama acabava fazendo xixi. Alexandre disse que isso acontecia porque um dia, entrou no quarto alguém com os pés sujos de lama. Ele só conseguia ver os pés. De repente começou a pingar sangue no chão. E ele ficou com medo, muito medo. Sabia que aquele não era o pai. Se urinou. E acabou desmaiando, quando acordou não havia mais nada lá. Oliver, seu outro irmão, tinha mania de dormir e sonhar sentado no sofá. Tinha pesadelos a noite. Ele era sonambulo. Teve um dia que saiu de casa arrastou o lençol até o fundo da casa e foi até a cisterna. O pai chegou a tempo de salvá-lo, pois estava prestes a pular do batente dentro da cisterna. No dia seguinte ele falou que fora uma menina, vestida de branco, que o chamara pra irem tomar banho na piscina. No passado aquela cisterna fora uma piscina. Acabou descobrindo que sua prima Suzanne morrera lá, afogada por um negro psicopata fugitivo do manicômio judicial.

O homem da cavalaria pegou o rifle chegara a hora de enfrentar um de seus mais terrível pesadelo. O diabo de Menphis Topheles, resolvera que era chegada a hora. Tagor Fashall estava preparado, coberto com sua pele de búfalo. Lucifer surgiu na estrada, trajava um enorme casaco negro que arrastava pelo chão. A gola fofa, tinha espinhos de aço que furavam a nuca e pescoço, donde escorria sangue, feito cristais de rubi, a lavar o peito, os cabelos do peito colavam escarlate no abdômen e ventre. Os pés de casco bipartido lembrava Pan. Seus cornos dobravam-se da testa indo até as orelhas. Os olhos duas brasas de fogo. Seu sorriso sínico, de dentes pontudos dizia, a hora de Tagor era chegada. Tagor estava preparado retesou a lança, bateu-a contra o escudo donde saíram faíscas de fogo. Ouviu-se um estrondo ensurdecedor. A mais feroz das batalhas estava pra começar.


Fabio Campos 05 de novembro de 2016.

P.S. A Gravura que ilustra este episódio, é um afresco (medindo: 4x2m) feito pelo próprio autor, usando tinta plástica em parede de alvenaria. Réplica dos morros Corcovado e Pão de Açúcar no Rio de Janeiro.