SÍTIO CABEÇA DE MENINO (21º Episódio de T. Fashall) Mateus 18,7-9

A nona hora do dia, lá estava Tagor, no meio do deserto, da caatinga. A vegetação inexistia aos olhos, mas lá estava. Era só buscar. O que mais havia pó da terra. E seres estranhos camuflados nele. Como na terra da lua. Um sol desproporcionalmente pretencioso. A esturricar os couros, por fora e por dentro dos ossos, dos viventes atormentados. Um esqueleto de cachorro estendido ao lado da estrada sorria. E era sorriso de derrotado, e vencedor. Desobrigado de viver, debochava de si mesmo. Os abutres, já a festa tinham feito com sua carne. 

Magnólia haveria de fazer o que tinha que ser feito. Agradecida por estar viva, e amanhecer serena. Uma lata de querosene, com uma haste de pau improvisada, atravessada na boca. Usava pra carregar água do barreiro. O pano da rodilha no ombro, o chapéu de palha na cabeça. Amarrotado, desavermelhado de tão gasto. Cansado da lida desumana.  Silvia, a filha de Magnólia pretendia fugir. Tagor ficou sabendo, ele viu tudo. No tempo do ramadã, na peregrinação anual ao Taj Mahal. No reflexo do espelho d’água da fonte, viu tudo. A menina tinha somente quatorze anos. Botou na cabeça que iria embora dali. A sua outra na Índia naquela idade já era mãe do primeiro filho do príncipe. Todos os dias ter que acordar às seis da manhã, ir pra roça, estrovengar uns pés de mandioca. No lombo do jumento uma touceira da carne de Mani, levaria até a casa de farinha. 

O caititu aguardava-os, calado. Doido pra roncar. Depois de descascado e limpo, os braços branquinhos de Mani eram triturados na máquina. Virava um polvilho alvo. Massa cheirosa igual corpo de cabocla. E logo era levada pra mesa do forno. Com um rodo de madeira tinha que espalhar com veemência, pra não queimar nem embolar. O que ficava pelos cantos fatalmente viraria beiju. A farinha era o principal produto, a vedete das suas parcas refeições do meio dia. Juntava-se a um feijão fervido dentro duma panela de barro, cheia de água de barreiro e um punhado de sal. Nas manhãs, o astro rei que brilhava na mesa era o milho, e deleite de cuscuz. Olhando pro terreiro, ficava se lembrando dos dias frívolos, dias felizes de invernadas. No oitão da casa as hortaliças simplesmente nasciam, cresciam frutificavam. Tomateiro, hortelã, limoeiro, carambola, melão. O umbuzeiro cuja carga vingava somente as vésperas de semana santa. Arriscava desde já. Lá no alto olho servir uns maturis.

O barro marrom, quase vestido de preto estava morto. Amuado numa dureza, embalsamadora. O Can-cão e o Anum, as únicas aves que ainda dava pra ver nos galhos quase sem folha do juazeiro. O carcará e o Urubu-rei sumido dum jeito que parecia não mais existirem na face da terra. Mas era só morrer uma criatura, e do nada, eles apareciam. O mandacaru com seus olhos vermelhos chorava. A espetar o céu com raiva, como se quisesse com suas cruentas espinhas furar as nuvens. Quem sabe assim derramariam as águas que talvez encerrassem nas entranhas. Nuvens brancas, secas, sem água. Feitos limões inchados. Inúteis que só tinham tamanho. Porém, vistosas e bonitas, isso eram. Mas por dentro só gomos secos. Lúcia e Carmem foram pagar suas promessas. Levaram velas para acenderem nas capelinhas de fiéis defuntos. Largados na beira da estrada esperando almas penosas, de gente penante, penitente. 

Era tempo da novena, da vila do Brejo Seco. E tinha como santo padroeiro São Sebastião. Um cortejo seguiu pela estrada desigual. As roupas brancas dos tocadores, as fitas azuis contrastante com as vermelhas. O som dos pífanos brigando com a zabumba, o estridente som dos pratos, esganando a placidez da tarde. Os bacamarteiros estrondando seus rojões, enchendo de fumaça branca a napa azulina das cortinas da casa de Deus. Aquilo tudo não demoraria e viraria o avesso. E as cores, mortas de cansadas iam dormir. Os olhos agora dependeriam dos bicos de luz. As gambiarras cirandando o oitão, da porta da igrejinha de São Sebastiãozinho, imagem tão pequenina. Num altar de flores de pano e caixa de papelão recoberta com lenços rendado de filó. Dom Adalberto e seu terno branco, devido ao sentar, ficava amarrotado nas bordas.  Segurava com uma das mãos o chapéu branco, e com a outra um copo de vinho do padre. O pároco alertou que não embebedava, mas se tomasse um copo somente. Nos anos magros, a mesa de prendas ficava escassa, raquítica, feia. Um bolo de cuscuz, uma panela de carne de galinha guizada. Olhem só, esse ano tinha uns preás desviscerado, tratado com sal, só esperando fogo. 

Abelardo de Elúzia, também pensava em ir-se embora, sozinho. Não dormia de noite, pensando no que ia fazer. Abandonar mulher e filhos naquela lapa do mundo. Mundo de meu Deus, onde aprendera a ser gente. Elúzia sabia que ele ia mesmo era pro sul, pro corte da cana. Arriscar a vida no inferno verde. Mas os planos eram outros. Juntaria dinheiro, economizaria tostão por tostão. Intensão de voltar, porém, não tinha. De lá, pra mais longe ira. Fugiria daquele mundo doido, mundo de testar paciência do povo. Mundo de viver o povo a olhar o céu. Mundo de esperar Deus querer. Mundo desumanamente humano. Os três meninos teriam que aprender a viver a vida sem pai. Saber desde cedo que a vida cobraria de cada um deles, coragem por dentro do medo. De ter que abrir um poço de muitos metros de profundidade, cavando com raiva, com determinação, ora metendo a picareta, ora as próprias mãos. Enfiando no barro como quem busca ouro, até sangrar os dedos. Porque água era ouro naquele lugar.

Seu Antônio de comadre Estelita era um varapau de homem. Branco, parecia um norueguês, sofria naquele tempo de muito sol. O rosto, feito pimenta, ficava vermelho. Parecia que ia enfartar. O sangue latejava nas têmporas de vastas costeletas. E pra completar, antes das refeições tinha que tomar uma dose de cachaça. Dizia que era pra espalhar o sangue. Em dia de feira a casa ficava cheia de familiares vindo de longe, do Pedrão, do Gavião, do Caititu, do pé da serra. As mulas carregadas de panelas e potes de barro pra vender na feira. Os caçuás eram forrados com folhas de catingueira, pra amenizar os solavancos da cavalgada, e não acabasse quebrando as peças de argilas. Uma boca de difusora arribada no poste da pracinha central anunciava a missa. O padre na sua batina preta enxugava o suor que ia descendo pelo pescoço, empapando o colarinho branco. A fila das confissões encostada na parede, cheia de culpa, de piedade, de murmurações. O rosário Apressado, entremeado de lembranças aflitas, de obrigações esquecidas, que tentariam fazer antes de voltar pra casa. O jogo de baralho no cassino chinfrim de Seu Lira. A rameira angariando um freguês na tolda de fumo de rolo. A piada safada, oportuna. A gargalhada desprendida. O cigarro acendido, com as mãos em concha. A cusparada. Um asqueroso fio de baba na barba, despontada, por fazer. A saia espetaculosa da rapariga, dando nos nervos dos homens cínicos, dos meninos afoitos, e mais ainda das mulheres sérias. Mães de família angariando satisfações. A briga inevitável na porta do mercado. O furto oportuno, aproveitando a distração dos curiosos. 
   
O irmão de Abelardo teve, por ele mesmo, os cabelos arrancados, um a um. O desespero, a angústia. Pior era saber que pra aquilo não havia futuro, nem cura, não havia saída. Ele ouvia vozes, dizendo pra fazer. Odiava aquele alguém que falava dentro de sua cabeça. Azucrinando o juízo. O bruxismo enervante, os lábios ficavam como que cortados à faca peixeira. A bola dos olhos, furados com agulha de costura. Raiados de sangue. Os pulsos cortaria, com gilete cega. O sangue vermelho tingiria a pele alva, respingando na calça jeans, desbotada. E depois que secava, o vermelho vivo, ficava vermelho morto, escurecido. O aperto no coração, a palavra ríspida, o ódio. Tagor se sentia impotente diante daquilo tudo. Sentia-se como um peixe fora d’água. Aquelas lembranças angustiante dando-lhe nos nervos. Não sabia. Aliás, lembranças não tinha que tivesse parentes no sertão. Era sufocante, os ares da caatinga. Exaustivo, causticante sertão. O sobrinho vinha pedir a benção. Achava estranho aquele costume, mesmo assim abençoava-o. Não queria se demorar ali. Tudo ali dava-lhe nos nervos. Sufocante verão, de não ter lugar bom pra por os olhos. De não ter os olhos onde descansar. Igor seu sobrinho e afilhado, disse: tio o senhor está tão esquisito... Talvez fosse a barba por fazer, o cabelo, as unhas por cortar. Era como uma ressaca que não sendo do mar, nem do álcool assediava-lhe moralmente. Os brios, o ego empedernido.

Havia uma tradição, de quando se estava com raiva, os mais velhos diziam: “Respeite-me! Ou eu arranco-lhe a cabeça fora!” Porque tinham como premissa seguir as Sagradas Escrituras. E segui-la ao pé da letra, sem pestanejar: “E, se o teu olho te escandalizar, arranca-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida com um só olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno. E repetia: "Está em Mateus 18-9” O que estava dito, era pra ser seguido. E, se devia arrancar um braço, um pé, ou um olho, pra eles as sábias palavras, valia também pra cabeça.

A luz intensa, a fotofobia. Sons de zumbidos nos ouvidos, náuseas. A sede, a falta de ar. Os pulmões como se tivessem cheios d’água, mas sem água. A serra pedia socorro, os céus, porém, mantinha-se calado. Os homens, mesmo nos seus silêncios, também pediam a Deus, socorro. As pedras, as únicas que não pediam nada a Deus. O tempo todo quarando, se bronzeavam caladas. Não reclamavam, nada exigiam. Apenas existiam, e isso era suficiente pros que são agradecidos. Tinham consciência que era paisagem. E as carroças esperariam os dias bons pra voltarem, e serem felizes novamente. E os livros falariam delas com muito amor, humor e graciosidade. E encheriam os dias de poesias, de alegria boa, feito água de enxurrada. O entendente precavendo-se mandaria fazer um muro de arrimo na jusante da ponte das águas do rio. Pra quando viesse a cheia, a enchente fosse contida e não ameaçasse as casas. O braço d’água acotovelando-se nas casinhas de contar, uma, duas, três cores.

Tagor criava coragem pra dizer do que viu. Um monstro de lodo saindo de dentro de um homem que não sabia que abrigava tal criatura dentro de si. Os sete homens ficaram estupefatos diante da façanha, três meninos também viram, e comentaram entre si o acontecido. Ao entrar na sala Seu Felisberto estava com raiva, raiva daquelas de esmurrar paredes, e quebrar copos de café, de desejar uma dose de uísque pra aliviar a cólera. Mas não havia motivos pra raiva só não gostava era porque os meninos perderam o respeito aos mais velhos. Uma espécie de inversão dos valores na hierarquia palaciana. Príncipe virava vassalo, e era encarcerado nas masmorras. E as prostitutas valiam mais que donzelas. E as quem saiam com a maior quantidade de homens eram as mais valorizadas. Igor, olhando pro crânio do boi no alto da estaca, lembrou de uma história contada por seu avô, sobre a tradição de se pendurar a cabeça dum boi na entrada da fazenda. Contava seu avô que um velho fazendeiro criava uma raça de gado manso, bom de lida. Mas apareceu no meio do rebanho um garrote valente que num momento de fúria imprensou seu dono contra a cerca. O fazendeiro não contou conversa dum só golpe de machado arrancou-lhe a cabeça fora. E mandou pendurar na entrada para que o rebanho todo visse. E temendo acontecer-lhe o mesmo o respeitasse.

Tagor pediu pra ficar só mais uma semana ali. Tempo suficiente para conhecer melhor o afilhado. Os sobrinhos, a filha que tivera na adolescência com Leonor. Se dependesse dele, pirataria, nunca mais. No entanto como era bom lembrar do passado. Dos tempos de corsários e ataques aos castelos de nobres. E os cangaceiros reconheceriam neles tudo o que mais lhes inspiraram. O chefe deles seguiu o cangaço, depois de ouvir umas histórias contadas por Tagor. Naquela mesma noite os legendários atacariam o Rancho do velho Felisberto. Donde, arribada numa estaca, a cabeça de um menino agora mesmo gotejava sangue.   

Fabio Campos, 20 de janeiro de 2017.


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