A PONTE DE MONTOULIEU (27º Episódio de T.F.)


Sol em abundância debaixo do céu. Havia também, muito azul de céu, e muita luz, pra compensar. E tudo, era muito real. Cada pedra pisada, cada grão de areia debaixo dos pés calcado, fazia sentido. Respirar ar quente era tão real, quanto sufocar. A rua, tão distante estava, mas se sabia que estava lá. Em algum lugar que não se sabia precisar ao certo. As pessoas, por ilusão imprimida aos olhos tremiam debaixo do sol. E mesmo sem saber se haveria amanhã todas as coisas eram absurdamente reais. Nada do que estava ali, tinha a menor importância de ser fato escrito, de estar nos livros. Até porque, por mais que tentasse, não haveria no mundo escritor, capaz de descrever com total realismo, a verdade que estava ali. Ainda se alguém contasse, infelizmente ia parecer mentira. Bem ali na nossa frente, havia uma muralha. Hirta, na mais completa acepção da palavra. Muralha gigante. Feita de pedra e turfa, estendida por quilômetros de extensão. Alucinava-se, danada de doida, e arrogância. Vertiginava-se pelos vales e campinas. A perder-se de vista, a deixar só o rabo debruçado por cima da cadeia de montanhas.  A primeira coisa que vinha a mente de quem a observava era: quem teria tido espetaculosa e absurda ideia de construí-la? Que mente megalomaníaca teria concebido tal empreendimento? Quantas vidas se enfiaram por dentro dela, quantas se perderam, até que fosse edificada? 

Esmeraldina gostava de gatos e de flores. Não sabia ao certo, se mais de gatos ou de flores. Sua mãe dona Deolinda, dizia: “-Não gosto de alguém que chega aqui, e diz: Dê-me um desses gatinhos pra eu criar! Tempos depois encontramos os pobres largados, nas ruas. Arriscando levar pedrada dos meninos. Roubando comida nas cozinhas alheias.” Dona Deolinda, tinha razão, outro dia, ao ir ao barreiro buscar um pote d’água, encontrou um dos gatinhos que a filha tinha dado a uma amiga. Estava perdido, tremia de medo, magrinho! Morrendo de fome! Era só pele e osso. Tanto miava que já rouco estava. Soltava um miado fino, insistente. Pra não decepcionar a filha, levou-o para a casa de Amara sua irmã. A tia de Esmeraldina teria dado ao gatinho o nome de Bola de Gude, por causa da cor dos seus olhos. Um dia, a menina iria descobrir tudo, mas já seriam outros tempos. A casa da mãe de Esmeraldina tinha tanta planta e gatos. Era casa singela, de gente pobre, mas honrada. Erguida de vara entrançada preenchida com massapê. Era casa simples, mas tão bem cuidada. As plantas eram tantas, e tanto colorido emprestava a construção rústica, dando-lhe outro aspecto. Tornada pela simplicidade agradável a alma. Trepadeiras se contorciam, escalando os caibros de apoio do alpendre. A casa tinha cheiro de flores, que lutava, quase sem lograr êxito, encobrir o cheiro dos gatos.

Tagor e Parantrophus ainda estavam na taberna, bebendo. O candeeiro pendia, atado a um pedaço de couro negro, enquanto liberava um fio de fumo, que ia subindo, e logo sumia. A misturar-se com o ar, impregnando de outros odores. As essências, cada uma tinha o compromisso de trazer determinadas lembranças. Retalhos de momentos que retornavam bem nítidos, de coisas ocorridas. E que ficaram eternamente marcadas, pelo apurado sentido do olfato. O cheiro de óleo de coco, do sabão de pedra, se enfiando pelos buracos das ventas dos aventureiros. Trazendo as lavadeiras de roupas lá do cais do porto. Vinham  vagantes pelas retinas telúricas de suas visões. Mulheres, volumosas, com as roupas molhadas coladas aos corpos. Corpos nutridos de muita proteína, e oleosidade, se acumulando debaixo da epiderme bronzeada. Os seios enormes e flácidos balançando frenéticos no puxa, repuxa dos panos, quase se expondo a apreciação pública. 

A chegada das embarcações. Os gritos dos marinheiros assanhados, impudicos. Acendendo-se neles o desejo sexual ao verem mulheres, depois de tanto tempo, de enfadar-se de só ver os mares. O cheiro de bacalhau se insinuando pelos engradados de madeira, trazendo o esvoaçar das gaivotas, dos albatrozes, dos pelicanos, à cata duma sardinha descuidada, nadando na flor da água, ou surpreendendo algum dos pescadores na despesca das redes. Tantos tragos de rum, Tagor já havia ingerido, que insensível o paladar já nem mais reagia a adstringência do álcool. Ao acre doce sabor de carvalho, do barril onde envelhecera o destilado. As palavras do amigo agora, ressoavam como num sonho, ecoando longe, muito longe. Sua voz chegava-lhe como peixes voadores, lentamente, que atônitos fugiam, da boca de um tubarão horrivelmente asqueroso. E tentariam escapar buscando dentro dos seus olhos abrigo e salvação. Um deles veio-lhe com olhos tristes, como os de Antonieta.

No encaixe da moldura da pintura do bule com flores e da xícara com números com a frase: “Cafés des Fleurs – Jardin des Luiz XV”  Chouchoulina a bailarina do cabaré do subúrbio de Paris encontrou um envelope que continha uma folha de papel com uns escritos a pena e tinta da China. Era como uma carta, ou poema, um manuscrito em francês, encimado de uma ilustração que aparecia um gato negro, um castelo, uma ponte, um nobre, e um diabo com chifres e tudo. Chiclete o seu gato de estimação, dum salto subiu na mesa. Assim que ela começou a ler, o bichano se fez todo ouvidos. Parecia estar entendendo, cada palavra que a moça pronunciava.

“Perto da formidável fortaleza de Foix, na região de Languedoc, em França. Não longe da fronteira com a Espanha, há uma ponte. É a ponte de Montoulieu, que existe até hoje. Pois dela se conta a seguinte história: Numa manhã, Raymond Roger, conde de Foix, acordou de péssimo humor. Desse jeito fez selar seu cavalo favorito e partiu ao galopo rumo às montanhas. Atravessou o burgo de Foix, entrou pelo caminho ao longo do rio Ariège. Ia cavalgando no sentido contrário da correnteza. Ao chegar a região de Ferrières e Prayols  mandou o cavalo cruzar o córrego. Porém o cavalo não quis passar. O conde ficou furioso, deu meia volta e voltou pro castelo. Mandou vir a sua presença o barão de Saint-Paul e encolerizado lhe disse: Eu te ordeno construir na região de Ferrières e Prayols uma ponte sobre o rio. Se em um mês não vejo a ponte. Tua vida vai pender de um fio. Acontecia que o barão era um poeta, um gastador, um tostão não tinha para o empreendimento. E lamentando disse: -Ah! Um pacto com o diabo eu faria para sair desta enrascada! Imediatamente o chifrudo apareceu-lhe a frente dizendo: -Tua ponte estará pronta no dia combinado! Entretanto, o que tens para dar-me em troca? O barão respondeu: -Eu te juro pela minha honra, que a alma do primeiro que passar pela ponte será tua! E cada um foi pro seu lado.

A partir daquela data o barão não foi mais o mesmo, estava cada dia mais triste. Um pacto com o diabo, tinha feito. Cheio de remorso foi até a igreja do mosteiro de São Volusien. Ali, envergonhado se prosternou no chão, chorando. O reverendíssimo abade reconheceu no homem prostrado, se tratar do barão de Saint-Paul. Este então lhe confessou seu pecado. O reverendo abade lhes disse; -Amanhã vos farei uma solução! No raiar da aurora apareceu bem construída a ponte sobre o perigoso curso d’água.  Belzebu instalou-se sobre o murinho da ponte, aguardando o primeiro passante para levá-lo ao inferno.  Eis que envolto numa capa preta apareceu o barão de Saint-Paul. O diabo dele zombou, dizendo: -Ah! Então será tu o primeiro a passar a ponte? Abrindo uma sacola ocultada sob a capa, o barão puxou um enorme gato negro, que tinha uma panela presa à calda. E disse: -O primeiro a passar, é este aqui!  O gato saiu disparado cruzando a ponte, fazendo grande escarcel. Soltando vapores pelas orelhas o diabo partiu no encalço do barão, que desde já descia a estrada, correndo morro a baixo. Eis que na encosta do morro surgiu a procissão dos monges de São Volusien. Eles vinham cantando a Ladainha de todos os Santos, com a cruz na frente. Levantando o hissope o abade aspergiu a ponte com água benta. Imediatamente o diabo dissipou-se em fumaça negra afundando sob a terra. E, por muitos e muitos anos, ninguém se aventurou, nem dia de dia, nem de noite, atravessar a ponte de Montoulieu.”

Esmeraldina se tornaria namorada do capitão Aquino de Lucena. Mas somente quando completou dezoito anos. Bola de Gude o gato, o caçula da família, dentre os irmão de Derick, vivia com ela. Era o preferido, foi presente de sua tia Amara. Não sabia ela, que sua mãe o encontrara no barreiro abandonado. Milu, a gata mãe de Derick, não sabia dessa história. Não, até o dia que Tagor a visitou no Asilo para idosos São Vicente de Paula. O problema era que gatos urinavam nas caqueiras das plantas. Faziam isso para marcar território. Para que os gatos da vizinhança não viessem invadir seus espaços. 

O capitão Aquino, ao botar os olhos na menina, a desejou para si. Imediatamente a quis para sua namorada. Mas eram tempos muito difíceis. Muito lá trás. Tempo em que se namorava por carta. Ele buscou informações sobre a moça. Descobrindo a respeito de sua vida que a mesma tinha aulas com o padre e também dava aulas a meninos pobres em sua própria residência. A vila caçoava do capitão, pelas costas, por que não gostava de andar a cavalo, preferia ir a pé. Pra pequenos percursos, como andar pelos arredores, preferia ir a pé. Sobre isso os aldeões diziam: “-Anda a pé, que nem comprador de porco!” Ora, se não era pela necessidade de levar seu produto adquirido (que além de pesado e vivo, era barulhento!) que o comprador de porco tinha que andar a pé! Além do que amarrava o bicho, por uma das patas traseiras. O capitão não gostava de montar, pra não ferir seus bagos muito sensíveis. Isso poucos sabiam. No entanto ele sabia, que Esmeraldina gostava de flores e gatos. Isso era um trunfo. E tornava tudo muito mais fácil.

Fabio Campos, 27 de Março de 2017.


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