Havia um fogo que queimava, e não
consumia. A cidade inteira em chamas. As matas, e tudo em derredor. Os campos,
as montanhas, em fogo ardente. O rio, como larva fervente, em baixo da ponte, passando
vagarosamente. As pessoas ainda que em chamas. Porem, agindo assustadoramente
normal. Tudo, em fogo vivo, porém, na completa paz. Tagor percebeu imediatamente,
que não mais se encontrava na terra. Tudo se transformara num mar de sol
incandescente.
Não conseguia entender como, aquele fogo ardia sem devorar as coisas. A matéria,
as substâncias, tudo permanecia inexplicavelmente intacto, apesar das chamas. A
rua, amplamente frequentada. Homens, mulheres, crianças ricamente vestidos de
fogo. Homens com trajes de lordes ingleses, mulheres com vestidos longos de
madames flamejantes. As carruagens, os cavalos tudo em estado de combustão, desfilava
pelo paço, em tons alaranjado. Transitavam, com a normalidade de um dia de
verão. Crianças na praça brincavam de pular corda. No pinga-fogo faíscas largava
do chão. Sobejando pinos de fogo, feito ferro no esmeril. Meninas saltavam
amarelinha, vermelho alaranjado, de tão quente. Meninos rolavam aros de ferro
em pura brasa, girando no calçamento de paralelepípedos em puro fogo. Um
cavalheiro se aproximou montado em seu cavalo. Num aceno de mão, chamou Tagor, encolhendo
os dedos.
Lucas, o terceiro menino da
bicicleta se encontrava em casa. Nove anos de idade tinha ele. E era agora, nos dias atuais, exatamente hoje que se encontrava. Havia chegado da escola, fazia muito calor. Por ter que ter acordado
cedo estava muito cansado. Deitou-se na cama sem sequer tirar a farda, nem os
sapatos. A mochila largou ao pé da cama. Tinha fome, e sede, mas faltava
coragem, vencido pelo cansaço adormeceu. E teve um sonho com Tagor.
“E estando ele nos
tormentos do inferno, levantou os olhos e viu, ao longe Abraão e Lázaro no seu
seio. Gritou então: -Pai Abraão compadece-te de mim e manda Lázaro que molhe em
água a ponta do seu dedo, a fim de mim refrescar a língua, pois sou cruelmente
atormentado por estas chamas. Abraão porém replicou. Além de tudo há entre nós
e vós um grande abismo, de maneira que os que querem passar daqui pra vós não o podem, nem os de lá
para cá. Evangelho de Jesus Cristo segundo São Lucas, Cap. 16 Vs. 23-26”
O homem da montaria, que chamou
Tagor, apeou. Desceram lado a lado, pela rua principal. O cavalo, o homem e
Tagor. O cavaleiro trajava um sobretudo negro. Na cabeça uma cartola de feltro
bastante surrada, enegrecida de grude, fubazenta, cheia de bolor, de tão velha. Vastas
sobrancelhas na testa larga. Na lapela, um broche de prata na forma de um
dragão. Tirou um charuto do bolso, cortou a ponta com um cortador de prata. Acendeu-o
com um isqueiro engraçado, cujo design remetia a um morcego, também prateado. O
homem do cavalo convidou Tagor a entrar numa taberna. Uma moça de cabelos de
fogo veio os atender. Seus olhos, para um bom observador, eram tristes. Sua
boca, porém, muito sensual adornada de um baton vermelho vivo. Olhou para os
dois, colocando doçura e beleza na disposição de servi-los. O homem da cartola
pediu uma garrafa de conhaque, Tagor preferia vinho. O homem da cartola disse
que naquele país, vinho era bebida proibida. Tagor aceitou um rum. Só então o
homem apresentou-se: “-Senhor Tagor, eu me chamo Parantrophus, sou um dos guardiões
do templo de Armagedon do príncipe Menphis Estofelis, trouxe-o aqui, pois tenho
uma proposta para lhe fazer.”
Antonieta naquele instante se
encontrava no ateliê de costura de dona Antonia dos Reis. Estava ali pra provar
o seu vestido de noiva. Muito em breve aconteceria seu casamento. Era um belo
vestido, um imenso véu cobria a fronte deixando seu rosto diáfano. A grinalda
cobria seu cabelo, e descia até arrastar-se no chão. Belíssimas luvas de cetim
cobria parte dos dedos mimosos de suas mãos magras. Delineava suas curvas o
belo vestido, todo pinçado de pérolas. Contas de pérolas por toda a borda do
busto. Sobre uma cadeira um buquê de flores, rosas vermelhas, perfeitamente
compostas. O espelho refletia toda a candura de uma noiva feliz, porém
apreensiva. Dona Antonia, fazia de tudo para tirar os vincos, não apenas das
vestes, mas de preocupação desenhada no semblante da moça, mas não estava nada
fácil conseguir. O pensamento viajava pelos quatro cantos da futura cerimônia. Não
conseguia apartar-se das preocupações pelo que estava por vir. Revivia
mentalmente cada instante. Os convivas, os quitutes, as bebidas, o bolo
magnificamente manufaturado. Os solenes juramentos, as alianças. O brinde, o beijo nupcial, os cumprimentos
dos padrinhos. Os músicos, a marcha nupcial, tudo pronto para aquele que seria
o dia mais incrível de sua vida. Não entendia porque o noivo, a poucas horas de
irem pro altar, simplesmente evaporara.
Alguém disse tê-lo visto na taberna, tomando vinho com um estrangeiro,
foi o que ouvira dizer. Não havia padre na vila, ele viria exclusivamente pra
cerimonia, especialmente requisitado para a ocasião solene. Chegaria com o
dobro do mau humor que tinha. A viagem longa, cansativa contribuía pra isso. Os
paramentos colado ao corpo. O calor dando-lhe nos nervos. Antonieta não tinha a
menor ideia de onde Tagor estava. Mas tinha certeza pronto para a cerimônia não
estava. Naquele exato momento se encontrava na taberna bebendo com um
estrangeiro num pais tão distante e quente que o estrangeiro chamava de “Hell”.
De certo que não iria casar trajado como um pirata que era como estava naquele
exato momento.
Marcos o segundo menino da
bicicleta. O que tinha sete anos. Teve pesadelos naquela noite. Sonhou que
resolvera matar todos os gatos da sua rua. Nada tinha contra os bichanos. A
raiva era porque dona Margarida, a professora, possuía um gato que lhe arranhara
no rosto num dia que foi ter aulas de reforço em sua casa. Ele mesmo começou a
encrencar o bichano, acabou ganhando um belo dum arranhão na cara, que deixou-lhe com uma cicatriz muito feia. Prometeu vingar-se. Tinha porem, um problema, se somente o gato de seu ódio aparecesse morto, levantaria suspeita. Daria pra desconfiar
que fora ele. Era preciso matar todos os gatos daquela rua, quiçá todos da Vila!
Para que não gerasse desconfiança. Para isso era
preciso bolar um plano perfeito. Um crime perfeito. Precisaria da ajuda do
melhor amigo, Tagor.
Tagor, enquanto conversava não
tirava o olho duma pintura na parede da taberna. Era uma natureza morta. Tinha
flores, um bule, uma xícara de porcelana. E os dizeres: “Cafés des Fleurs –
Jardin de Luiz XV” A xícara da pintura tinha números, em algarismos arábicos e
romanos, nas bordas. O que era algo, no mínimo interessante. Chouchoulina a bailarina
do cabaré francês herdara a pintura de seu pai, que era dono de um circo.
Lembrava muito bem quando ele morreu, no seu leito de morte chamou a filha e
despediu-se dizendo que guardasse aquele quadro, para o resto da vida. E que
ele encerrava um segredo que não conseguiu revelar pois não deu tempo, a morte
chegou primeiro, morreu sem dizer do que se tratava. Uma vez que ela era a
última herdeira da família, falou que jamais deixasse alguém ficar com ele. Soube
de sua vó que toda a sorte da família estava naquele quadro, caso ela se visse
em situação muito desesperadora, somente num caso extremo abrisse o encaixe da
moldura pois lá existia um segredo. Mas somente em caso extremo e ela obedeceu,
até o pai cair no leito de morte. Ponderou que a hora era chegada, iria abrir o
encaixe do quadro. A consciência não ia doer tanto, afinal o pai estava morto
agora. Estaria realmente?
João, o primeiro menino da
bicicleta estava em 2056, mesmo assim não crescera, e tinha ainda seus cinco
anos de idade. Encontrava-se num longínquo país africano ao norte da Tanzânia
tinha uma história pra contar a Tagor. Descobrira que os aliens não passavam de
parentes dos insetos eles eram artrópodes evoluídos. As duas patas a mais que
possuíam logo abaixo dos braços. Braços quase humanos que tinham. Só que resolveram
esconder dentro das roupas de metal, o par de braços extras, para ficarem mais
parecidos com os humanos. Conversou longamente com um monge hindu, descobriu que dali de
onde se encontrava distava exatos mil quilômetros da margem direita do rio
Eufrates. Estava portanto a um milhão de metros do Monte Megido. O local ficara
conhecido como Armagedon. Lugar onde, segundo os Livros Sagrados, se travaria a
batalha final de Deus contra as sociedades humanas iníquas. Monte Megido ou “Har
Megido” em hebraico. No livro do Apocalipse e também do profeta Jeremias.
“Chegou
o dia do Senhor Javé dos exércitos, dia da vingança em que arruinará seus
inimigos. Devorará a espada até fartar-se, abeberando-se de sangue. É a
imolação ao Senhor Javé dos exércitos, ao norte, às margens do Eufrates. Jeremias
(46,10).”
Ali, todos os exércitos da terra se reunirão para a batalha final na
colina de Megido. O local era assustador mesmo em plena luz do dia. Havia uma
montanha que possuía uma imensa caverna chamada de “Garganta de Olduvai” que
segundo os nativos abrigava um demônio chamado de Parantrophus que estaria
dormindo dentro da garganta há dois milhões de anos. Eis que a terra começou a
tremer. João não tinha a menor dúvida a fera havia despertado.
Fabio Campos, 16 de março de
2017.
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