TAGOR! TAGOR! (25º Episódio)

Os gritos ecoavam dentro dos ouvidos. Mas ele, apenas Tagor conseguia ouvir. Antonieta sendo atormentada em sonho. Era cruel ver aquele pobre homem sofrendo no escuro, sem que nada pudesse fazer. A noite inteira andaria pelas ruas. Quando era pequena, um dia sua vó, lhes dissera que quando a gente dorme, a alma saía do corpo. E que ficava a vagar pela cidade até raiar o novo dia. Encontrou uma árvore de tronco negro plantada bem no meio da longa calçada, da rua mal iluminada. Os galhos assemelhavam trombas de elefantes empedernidas. As folhas gigantes abrigavam seres estranhos. Uma jia amarela pintada de bolinhas verdes como que sorria, de olhos abertos dormia. O papo enchia e desenchia, de modo a entender que mascava chiclete, fazendo bolas dentro da própria boca. Enquanto umas borboletas nasciam dos galhos, dos ramos das árvores, saiam voando feito vagalume. Subiam e subiam, até sumirem na imensidão do cosmo.

Tagor sentia fortes dores nas articulações dos joelhos, estava muito cansado. A caverna cada vez mais ia ficando menor, mais apertada. Forçando a ficar cada vez mais abaixado. O que acabava forçando as articulações das pernas, não sabia aonde ia dar. Não tinha a menor ideia pra onde estava indo, nem ele nem o pai de Antonieta. O oxigênio ficando cada vez mais escasso. A respiração ofegante. E os gritos da amada não paravam. Instintivamente, começou a cavar com um pedaço de pau que encontrou atirado ao chão. Depois com as próprias mãos e de repente, um buraco no teto deixou aparecer um raio de luz azulada, que era como uma bola de céu. Na verdade um buraco azul de céu. E chegaram a superfície de algum lugar muito bonito. Era deserto e o que mais havia era areia. Tão amarela que mais parecia ouro em pó. E andaram a esmo procurando sem saber direito o que. Ao escalar uma daquelas dunas eis que viram uma casa plantada no meio do lugar inóspito, aridez de alma. Era uma casa de campo. Uma choupana.

A casa tinha telhado baixo, paredes caiadas. Janelas com vidraças e cortinas. Os chanfros eram vermelhos muito vivo. Bem como os umbrais das portas. A porta dos fundos batia e batia açoitada pelo vento. A cozinha certamente estaria cheia de areia do deserto. Tagor do meio do deserto viu o interior da casa. Havia um tapete de pele de urso, uma lareira acesa. Quadros na parede, retratos de família. Um quadro chamou-lhe atenção. Era de uma xícara de porcelana uma pintura diferente: na borda 12 letras do alfabeto, em latim. Na base de um a 30, em números arábicos, e na borda do pires números que iam de um a mil em algarismos romanos. Uma menina, com vestes de dormir subia uma escada de madeira de lei com dois lances que dava num primeiro andar. Não dava pra ver o rosto da menina, só dava pra ver-lhe as costas. Ela tinha um longo cabelo que descia até sua cintura. Cabelo liso, solto. A menina segurava um brinquedo, muito provável estivesse indo pro seu quarto dormir. Mas alguém muito mau que estava na penumbra a espreitava. Era um homem, e dava pra ver apenas a silhueta. Ele tinha mãos enormes, de pessoa que talvez tivesse problemas mentais.  

Da janela do quarto da menina dava pra ver o mar. O mar estava bravio, as ondas quebravam na praia, com força quebravam, com raiva. Estrondavam com volúpia. O homem da penumbra agora estava sentado na praia, e olhava o mar cheio de melancolia e tristeza. O vento movia pra trás a aba do seu chapéu, ameaçando tirá-lo da cabeça. O homem fumava um cigarro, que era muito mais consumido pelo vento, da tempestade. O rosto de sal, de areia e lágrimas que jamais teve vontade de chorar. O vento arrancava-as furiosamente dos olhos de chumbo. E as lágrimas ao invés de descerem pelo rosto, iam pra trás juntar-se ao cabelo negro, revolto. Era possível sentir sua respiração, de alguém ansioso, raivoso. Desses que acham que o mundo, muito mal havia feito para si. E que odiar, destruir, achava isso muito natural. Visto que não via outra coisa a ser feita que não fosse o que sempre fizera, odiar. Jamais admitiria remorso ou arrependimento, o que havia feito, estava feito, e pronto. 

A tarde parecia noite, as nuvens acabariam ficando com cara de ódio. O homem conseguiu contaminar tudo com seu azedume. O céu não aprovava, mas isso era o que menos importava. Viver era muito mais cruel. A praia não concordava, e tudo parecia estar muito triste por conta dessa desarmonia. O barco balançava a proa como se dissesse: “Eu te odeio!” “Eu vou, eu quero te afundar.” Também os peixes e todos os monstros marinhos deviam estar a par de tudo, e também detestavam aquele tipo de situação. A vara de pescar, o metálico molinete, frio e molhado, apenas olhava. Fincada na areia molhada, tão fria acabava enrugando a barriga dos dedos.  Tempo perdido, pescaria perdida, vida perdida. O peixe que o homem não conseguira pescar, jamais tivera o olhar fixo no céu ,enublado, pra onde jamais iria. E suas guelras subindo e descendo, a boca abrindo e fechando lentamente. Se debatendo mais uma vez, sujando de areia as escamas brilhosas de lantejoulas. Nada daquilo fazia o menor sentido, significado algum tivesse. Nem precisava ter. As almas dos marinheiros que morreram no mar, em momentos como aquele resolvia voltar do fundo, do profundo oceano e ficavam andando na praia. Passavam uns pelos outros, calados. E quão trágico era. Os navios e barcos naufragados, pouco a pouco, vindo aportarem na areia. E de seus cascos arrombados, lodosos, carcomidos dava pra ver arcas, arcaicas. Entupidas de moedas de ouro, joias, dobrões, espadas de puro ouro. Tudo irremediavelmente perdido.

Antonieta entendeu que a árvore estava se abrindo, se rachando ao meio. Deixando escapar uma intensa luz verde de seu interior. A luz apontava pro céu negro, e ao chegar lá, ia se perdendo no infinito. Pensou que aquilo pudesse ser um farol, um tipo de comunicação dos aliens lá no cosmos com os aliens que estavam aqui na terra. O barulho de um pelotão de soldados em marcha fê-la voltar o olhar pra rua. De fato um grupamento de policiais vinha em marcha acelerada no leito da rua. Vestia fardamento verde fechado, seus coturnos pretos produziam o barulho característico ao chocar-se com o calçamento. Pararam de frente uma edificação magnífica. Uma espécie de quartel muito semelhante a um castelo, de fachada azul claro e frisos brancos. O jardim era bem cuidado, a grama bem aparada. Não fosse pelo arame farpado, as cercas elétricas, os holofotes e câmaras de circuito interno ninguém diria que tratava-se dum campo de concentração. Um tipo que parecia ser o comandante da corporação deu ordens para se posicionarem em pelotão de fuzilamento. Mas quem seria executado?

Milu continuava com os olhos arregalados pra o visitante. Tagor tentou passar a mão na cabeça da gata, mas ela arreganhou a boca mostrando os dentes, e dando aquele soprado de ar ameaçador que todo gato faz quando sente o perigo. Ao tempo que esticava a coluna vertebral pra parecer maior ao seu opositor. Tagor só queria tomar umas informações novas com a anciã. Sua fala foi reconhecida por aqueles quase centenários ouvidos. Dona Gumercinda entendeu porque ele estava ali. Inclusive tinha um presente para lhe dar, um broche que ganhara no dia do seu casamento. O marido era mascate comprou aquela joia a um vendedor ambulante que garantiu, pertencera a uma noiva de um mágico de circo. O mágico no seu show fazia o perigoso espetáculo das facas. A namorada presa a um tablado circular enquanto ele arremessava facas incendiárias. Com o picadeiro totalmente às escuras. Eis que num dia trágico, o casal brigou. Na hora da apresentação ele arremessou uma faca que veio perfurar um pulmão da moça, que viria morrer em consequência disso.

A cobra que engoliu o cangaceiro, não conseguiu ir muito longe. Pois como disse o padre, esses répteis gigantes quando engolem uma presa muito grande, não conseguem movimentar-se muito rápido. De modo que a volante dos soldados de polícia mais a guarnição do coronel Rodrigues de Miranda conseguiu matá-la. Mas já era tarde demais para salvar a vida do cangaceiro Cascavel. O corpo do desafortunado bandido foi trasladado para Sergipe, mais precisamente para Porto da Folha, sua terra natal onde foi enterrado. Já a cobra de vinte metros foi empalhada e ficou exposta ao povo. Onde se encontra até hoje, no museu das relíquias do padre Segismundo, em Juazeiro do Norte.

Milu a gata, queria saber o paradeiro de Bola de Gude e Chiclete. Tagor e Antonieta sabiam pois tinham visto Chiclete em companhia de uma amiga chamada Chouchoulina uma bailarina francesa, que morava no subúrbio de Paris. Já Bola de Gude momentos difíceis dentre suas sete vidas viveria ainda. Foi adotado por um vendedor de carne de porco que gostava de bichanos, tinha pra mais de quinze. Na hora do almoço era aquela farra. Os gatos tudo miando por uma porção de carne. Romenito “Jo-Jo” o açougueiro, alimentava-os com carinho, escolhia um dentre eles, punha no colo e deixava até comerem sobre a mesa, no seu próprio prato. Sua esposa dona Diolinda odiava aquilo, tinha raiva, porém nada dizia. Apenas sonhava um dia, livrar-se de todos eles. Matar todos aqueles gatos! Prazer indizível. Tagor, sentiu calafrios. Pertubou-se na alma. Lembrou de quando era jovem. Temeu seus próprio pensamentos. Dona Diolinda não suportava ter que aguentar os caprichos do marido, com tanto zelo e dedicação aquele monte de peludos nojentos. Chiclete vivia com Esmeraldina a namorada do capitão Aquino de Lucena. Agora, como o capitão encontrou Chiclete, aí é outra história.

Fabio Campos, 07 de Março de 2017.         

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