SERRASALMUS KINGDOM Capítulo 1: Madrigais



 O dia de ontem ainda estava lá. Ficaria eternamente pregado, nas pedras que subiam o muro de arrimo. Em cima, a sacada, a praça, as luminárias centenárias. Os bancos de tiras de madeira e ferro desenhado, o jardim. O vento açoitou as árvores. Acabaram coitadas, perdendo as unhas, os dedos magros pelados. E iam pelo chão fazendo barulho de chuva, pelas sarjetas. Chuva sem água. As sobrinhas coloridas dos vendedores de quitutes espraiaram tons azuis, vermelho e branco na palheta alaranjada, do pintor de quadros. As vitrinas de salgados e doces, aguçavam sentidos, de muita variedade. O vendilhão de aguardente oferecia degustação, aca de qualidade. Àquela hora do dia o álcool tinha fluidez de perfume. O boné branco, o avental estufado, o volume da barriga que insistia em roçar a mesa de madeira. Luzia olhou pro alto da ladeira. Olhou pra Deus, quase inconscientemente, pediu que lhes desse coragem, pra mais  uma escalada. Os sapatos, diziam do quanto de sua vida fora consumida, em tantas subidas e descidas. Muitas, vidas vividas, naquelas ladeiras. Ladeira da aflição, ladeira da oração, ladeira da reflexão. Ladeira da preguiça. Ladeira da coragem, e disposição pra descida. Cosmo e Damião, os irmãos gêmeos, em carrinhos de rolimã, disputavam quem chegaria primeiro lá embaixo. 


O rio, deitado calmamente, estava lá, quase seco. Agonizante.  Com uma nesga de céu, forrava o sopé da montanha. Aquela casa, do outro lado do rio, tantos desejaram morar lá. Talvez ninguém tivesse ideia da tristeza que lá, fazia morada. Um velho, que todos conheciam por vô Antonio, seus últimos dias, vivia em cima duma cama. Devagar as horas iam, em silêncio de quartos, na penumbra. Remédios com hora certa pra tomar, esperando no criado mudo. Seu Antonio nem lembrava mais, da valentia, dos anos de seu vigor. Do tempo de conduzir as boiadas pros pastos mais próximos da montanha. E ia caçar onça, na mata do Engenho novo. Um dia Marilusa, a dona do bordel mais famoso da cidade teve o atrevimento de ir cobrar-lhe  uma conta de coito com raparigas e bebidas. O velho Antonio deu uma surra de chicote na rameira, na porta de casa. Velho Antonio de nunca levar desaforo pra casa. Antonio de quando o querido Teodorense F. C. quando tinha que ir jogar fora, sempre o acompanhava. A deixar dona Gertrudes preocupada porque se o time perdesse, as brigas eram inevitáveis. Dona Gertrudes dizia que, se não morresse primeiro, cuidaria dele até a morte, assim disse, assim cumpria. E até aquela data cuidava. Os pombos e pardais saíam em revoltada, se os homens disparavam seus bacamartes debaixo do trapiazeiro, no cair da tarde. A preta velha Filomena, empregada doméstica, desde aqueles tempos, dizia que não tinha mais saúde pra tratar os frutos das caças, de quando Seu Antonio voltava da mata. Sempre traziam um bicho graúdo, porco do mato, veado, sariema. No tempo de galinha d’água, nambu e rolinha fogo apagou, traziam os embornais cheios. E tinha a época do tatus-pebas, dos cágados d’água. E quando lembravam que peba comia defunto, retrucavam: “Então compadre vamos comê-lo, antes que nos coma.” E riam das próprias piadas. Mocó, preá, cassáco, e calango sardão, esses bichos Seu Antonio não gostava de matar, dizia que aquilo não era caça de homem.


Os saguis toda manhã vinham saltar pelos pés de manga, goiabeiras e siriguelas, do pomar de dona Lourdes. Vinham encrencar os passarinhos de Seu Expedito. Doa Lourdes punha bananas descascadas na sacada e vinham pegar. Seu Expedito ficava brabo, por ele matava todos, aqueles malditos macacos, mataria tudinho, não deixaria um só. Artur Bernardo, neto do velho Artur da Mata Fonseca Alves, a segunda família mais influente da região. Levou um tiro de espingarda que pegou de raspão no pescoço o que o deixou paraplégico. Morava numa casa avarandada, na margem esquerda do rio. De onde ficava o dia todo. Dava pra ver a casa do velho Antonio, do outro lado.  Dário irmão de Artur, tardes inteiras passava deitado na rede, no alpendre, do lado oeste do casarão, o que dava-lhes bela visão da alameda dos Ipês.  Naquela época do ano, florido, enchia o paço de viço e cor. Os galhos da imburana entranharam os fios do telégrafo e produzia um zumbido. O gato de Seu Irineu indiferente a tudo tomava banho de sol, na calha de zinco. Inocência viria ao cair da tarde trazendo seus livros apertando-os ao colo. O corpo esguio, o cabelo castanho, longo, enfeitando suas espáduas alvas, debaixo do vaporoso tecido de cetim. Rosto de menina, corpo de mulher. O moço, por instantes eternos, pararia de ler o romance, e seus olhos saiam voando, lentos, de encontro a gazela, que flutuava na calçada. E os dois, feito pássaro e caçador se encantavam de se ver. E de ser um para o outro, fonte de inspiração, de ver, e de viver. Não sabia se um dia pedir-lhe-ia em casamento, como o casal do romance que lia. E se negasse o pedido? Diferente do romance. Preferia vê-la morta, a vê-la nos braços de outro. 


A cidade com seus mistérios. De todo dia acordar cedo, e mesmo assim parecia dormir. A torre da igreja prestando reverência a Deus e toda sua criação. O sino de cabeça baixa, calado. Talvez, vivesse lembranças do passado. De quando alegre, chamava o povo pra missa de domingo. Ou pontualíssimo a dizer que hora era do dia. Outras vezes cerimonioso e triste, anunciava compassadamente que um féretro estaria sendo conduzido ao cemitério. A calçada alta, a escadaria íngreme, de causar náusea a dona Minuca. Na hora de descer os degraus, sempre pedia ajuda, ao vendedor de pão, ao gari, ao pipoqueiro. Ou a quem pudesse ajudar. O calçamento irregular, de pedras escuras.


A linha do trem enferrujara, a muito não via comboio. A velha estação ferroviária o dia inteiro olhando pra o fim da curva. Não perdera ainda a esperança de ver a Maria fumaça de volta, chegando, fazendo zoada, bufando, estremecendo o ar, intrépida, trazendo alegria à urbe. O telhado de duas caídas d’água da estação lembrava um relógio cuco. Naquele quase tarde, de pardais zoadentos. Entre os passageiros, descera Séba, um rapaz, quase menino ainda. Talvez o único Sebastião cuja parte inicial do nome era o apelido, geralmente era a parte final, que virava. Menino negro, pobre, vinha do engenho, do corte da cana. Fora ganhar algum dinheiro pra ajudar nas despesas de casa. De muitos irmãos pra comer. Seis meses longe de casa. Os pais eram moradores da fazenda de dr. Nicolau Cansanção Feitosa. Patriarca da família mais importante do Engenho Novo. Dono de metade das terras daquele lugar. 


Aldo, Almir e Benedito, eram amigos, pareciam irmãos. Aldo trabalhava na gráfica Fruto de Palma. Almir era auxiliar de tipografia. Benedito, professor de história. Sempre se encontravam ao cair da tarde, e iam pro bar de dona Graça, no bairro dos pescadores, zona portuária. Lugar de encontro da boemia, das prostitutas e estivadores. Ficavam horas sentados a mesa, na calçada, jogando conversa fora. Olhando a vida passar. O disco na vitrola tocava uma música, de um cabeludo, de barba negra, que os rapazes pediam sempre para repetir. A faixa acabou arranhando, após os versos que dizia:


“Eu conheço bem a fonte

Que desce daquele monte

Ainda que seja de noite”



 Os versos seguintes: “Nessa fonte tá escondida/ O segredo dessa vida” Mas como estava arranhado ficava só repetindo: “Nessa fonte tá escondida/ tá escondida/ tá escondida...” E os rapazes cantavam remedando o arranhão, e riam muito. Aldo era casado com Marilda, Benedito com Olga. Almir solteiro. Marilda, não era muito de reclamar, porque o marido gostava de ficar horas com os amigos. Olga, no entanto era exatamente o contrário. A ponto de Benedito muitas vezes, entre os amigos declarar: “Um dia ainda mato a mulher.” Todos riam do desabafo do colega. Era mesa de bar. Em mesa de bar, vale tudo. Até contar um crime que prometera cometer, que talvez jamais se concretizasse.


Na rua onde a professora Maria da Graça morava, havia uma biblioteca, um artesanato, e a casa de um poeta, que o governo municipal transformara em museu. Neste de cá, ela sempre parava, e entrava. Ficava horas, vendo os objetos, que um dia pertencera ao vate. Tinha extrema admiração pelos poemas que escrevera. E era como se tivesse escrito exclusivamente pra ela. Mesmo não tendo vivido até sua época. Um tempão, na sala de música, ficava encarando um óleo. uma pintura enorme que retratava o poeta, sentado serenamente, de paletó com seus óculos de aros redondos olhava. Era como se estivesse vivo, só que numa outra dimensão. E via e sentia, tudo que se passava do lado de cá. Senhorita Graça, sentada na cadeira de vime, justamente aquela onde o poeta sentara pra fazer a tela. Onde tantas vezes  sentaram. Graça por instante, teve a sensação, de ouvir o poeta declamando um dos poemas dele, dos mais conhecidos, e que ela muito apreciava:


“Os dias, feito pássaros

As horas, como folhas secas

O vento da tarde, a secar meus olhos

Um dia, todas as canções, um dia

Vão abraçar teus olhos,

Ai meus ossos, minha boca

Se encherão de Graça

A te chamar

E minha mãe, já velha,

Me tomará ao colo

Me embalará cantando

Cantiga de ninar

Como criança velha, um dia

Pro céu me levará

E o rio, pobres rio

Haveria de chorar, eternamente.



Beatriz, irmã de Maria da Graça, fora a capital, visitar no presídio, o namorado, Miqueias Apolinário. Fora o que atirara em Artur, o rapaz que ficou paraplégico, trabalhara no banco. Tudo aconteceu durante uma tentativa de assalto, ao banco Mercantil & CO., da pacata vila do Engenho Novo. A noite caiu, e a montanha com sua escadaria de luzes, atraiu um objeto voador não identificável que passava, e acabou pousando, no cume. Uma portinhola se abriu, e homens, com corpos humanos e cabeça de piranha desceram, e ficaram olhando os arredores. Pareciam admirados com o que viam. Admiravam a edificação mais elevada, a torre da igreja. Naquela tarde o sino tocou, tocou fúnebre. Enquanto um féretro ia, conduzido ao cemitério.



Fabio Campos, 26 de janeiro de 2018.
        

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