ATRAVÉS DA VIDRAÇA




























Era uma vez uma janela. A moça. E dois homens. 
A janela ficava na casa velha, de esquina. Os homens estavam sentados na praça. Sobre a moça, falaremos depois. O dia mal começara, e já estava olhando pro lado do por do sol, torcendo pra noite chegar logo. E fez o que pode, deu de se encolher debaixo de nuvens carregadas. Ensaiou uma chuvinha, que fez os panos sumirem do varal. O cachorro, meio contravontade deixaria a calçada da igreja. Tudo conspirava, tentativa vã, pra antecipar o anoitecer. 

A moça, da cor de quase Rapunzel, dos olhos de Nossa Senhora de Guadalupe. Olhos de menina, sonolenta. Estava bem ali, à janela. Era sempre assim, em tudo quanto era história, aparecia pra dar graça e beleza. Lembrou do pai, com seu jeito chucro, de camponês. De cócoras encostado num canto de parede. Uma das mãos em concha, com a outra macerava um pouco de fumo picado. No canto do lábio um retângulo de papel seda, aderido ao lábio inferior, que de forma alguma o impedia de falar. E falava de uma parelha de bois pra amansar. Ô bichos bestas só é boi. O dia todo, pra lá e pra cá, puxando um toco de pau, pra fazer gosto ao homem. Se ao menos fosse agosto. Teria motivo pra dizer que fazia frio. A instante cheia de imagens de santo. No alto, ficava a do santo de cada mês. Como era julho, senhora santa Ana, lá no alto. Destronou Antonio Pedro e João. O rádio ligado. Em tom solene o locutor falava da fundação da usina hidrelétrica de Paulo Afonso, a obra do século! E era mesmo. O jipe da polícia passou em direção da estrada que leva aos sítios. Seguiam em perseguição a bandidos que assaltaram ao banco. Estrada de barro, poeira não levantou porque havia chovido de madrugada. O homem do telégrafo, de casaca e pára-sol, saiu pra entregar as correspondências. As cartas ficaram na mesa junto à xícara de café. Na beira do fogão calor, na soleira da porta, frio. Vô calor e frio é calafrio? Quase isso. Faltou água no chuveiro, a moça foi tomar banho com a mangueira no quintal. O menino do alto da goiabeira deliciava-se com a visagem. A moça sorria. A água fria intumescia o bico dos seios, os pelos da púbere púbis. Os meninos voltavam da escola, o que chutava uma lata foi repreendido pelo vizinho. O que jogou cascas de banana em cima da marquise foi repreendido pelo comerciante. O que chutou a bola na fachada da casa, a perdeu, o vizinho a rasgaria de faca. Como se nada tivesse acontecido avançaram, com destino ao campinho. Fariam uma bola de meias. Os velhos contos de Christian repousavam tristes nos livretos da instante. Enquanto passavam barulhentos desenhos animados na tevê. E traziam estranhas idéias pra cabeça do inventor de sonhos. Os assaltantes fugiram pela estrada vicinal. A moça jamais ficaria velha, de tanto olhar pela vidraça. Um dia seria matrona, e o banho, continuava sendo no quintal. E os meninos que nunca envelheciam espiavam pela brecha do portão. Os dois homens conversavam e diziam assim: Estamos ficando velhos. O que fizemos de nossas miseráveis vidas? O tempo passou. A vida passou. Escorreu feito areia entre os dedos. Nada pudemos fazer, em nosso próprio benefício. A vida segue. Já sei! Disse o primeiro: Vamos assaltar o banco! Teremos dinheiro para curtir um pouco da vida que nos restas. Ajuntou o segundo. E novamente o primeiro: Vou a casa pegar o carro. E o segundo: Eu pego as armas, a dinamite. 

Para minha mãe, todas as mulheres chamavam-se Maria. Ou pelo menos deveriam chamar-se Maria. Todas eram como cópias, ainda que esmaecidas, de Nossa Senhora. Maria que lavava a roupa. Maria que preparava a comida. Maria que cantava pra dormir. Maria que ia pra feira, namorar. Quando se aproximava a festa, o espírito da festa chegava bem antes. Assim como as roupas, os relógios, e os carros se modernizavam. Os prédios vestiam-se de tintas novas, e se alegravam com sorrisos em suas janelas. A igreja ganhou pintura nova, carreiras de luzes na torre. Na vidraça a menina. Olhava a rua. Toda vestida de rosa, o cabelo penteado o colo perfumado. A mãe falou não abra a janela. Achava perigoso. A menina pediu: Vô conta uma história. História que tenha coisas deliciosas, nada de tristeza. Coisas que acordem os pássaros, que encha de luz dentro da gente. De era uma vez, vô! Qualquer coisa assim. De casas onde tudo dê vontade de comer. Não a casa de João e Maria. Essa eu já sei muito bem como termina. Queria que contasse sobre coisas onde homens conversem com plantas e animais, conversassem e se entendessem. Onde soldados e polícias, não nos metessem medo, mas mantivessem a ordem. E caso alguém fizesse algo errado fosse punido com justiça. Sinos badalassem com alegria, a anunciassem festa. Festa dos jovens, e também dos idosos. A cidade ficaria alegre com a juventude, em vigor desfilando pelas ruas. Alguns dias depois reverencias seriam pros idosos, os avós. Festa dos ancestrais, os avós de Cristo. O novo sino era imenso, guardado, encerrado no salão paroquial. Esperando que o tombassem pra torre. Se estivesse lá no alto, privilegiada visão teria do assalto. 

Através da vidraça a moça via o mundo, aparecia-lhe como apareceria na tevê, em play back, horas depois. Naquele instante a moça via, em tempo real, o futuro. O futuro que dali a pouco viraria notícia. Dois homens desceram do carro na porta do banco. Nem bem o dia acordara. Os que se divertiram na festa por certo ainda dormiam o sono dos justos, dos ressacados. Bandeiras e cores tremiam nos cordões estirados no ar, inchado de sol. Tontas e cansadas acenavam pros passantes. O moço que vendia leite porta a porta, no ritual de chocalho. O pãozeiro com o balaio na cabeça apregoava o que seu aromático produto chegava bem antes sem dizer palavra. O pai da moça estava com problemas de saúde. O homem que sabia domar cavalos, que amansava parelha de bois, que amansava a terra, que fazia um carinho nela. E seus afagos faziam-na dar flor. E o faria dançar de alegria, quando parissem rebentos, de cabelos dourados e dentes de leite amarelinhos, que tinha outros irmãos morenos. Agora, força pra terra, não tinha mais, nem pro domo dos bichos brabos. Vô espiga de milho é menina? O feijão é menino? O milho e o feijão são menino e menina. O milho, no alto tem seu pedúnculo, que é seu lado macho, no encontro da folha com o caule, a gema, sua parte menina. O feijão dá a flor, a flor é, a um só tempo, menino e menina. O pai da moça, no inverno se amancebava com a terra. Amanhecia e dormia com ela. Até ajuntar a safra, um namoro só. No verão se amigava com as éguas, vacas e cavalos. Quão belos seus rebentos. 

O primeiro homem entrou no banco portando a dinamite. O segundo ficou na porta. Um rapaz pintava a fachada da casa, vizinha. O segundo homem, falou bem assim: Cara! Se eu fosse você, saía daí. Vai ter maior estouro, por aqui! O pintor entendeu o recado, largou escada, pincel e tinta. A explosão afugentou os pardais, sacudiu as folhas do pé de amêndoa, reverberou na vidraça, balançou as cores. A moça permaneceu impassível. Apenas expectadora, do crime que via, ao vivo, a cores. Enquanto o dinheiro era recolhido o vigilante tentou reagir. Engalfinharam-se, o segundo homem e o vigilante. Novamente rendido o segurança levou umas coronhadas. O homem exaltado perguntou-lhe: Quer morrer é?! Isso é dinheiro do governo! Vai morrer defendendo dinheiro do governo? Otário? Olhe para nós. Temos cara de bandidos? Temos idade pra ser seu pai. Você tem todo um futuro pela frente. Tente enxergar além. 

Lá fora. O que você vê agora? A vidraça, a dinamite estourou, talvez ela, estivesse tapando seus olhos. Um céu anuviado que promete chuva. A chuva meu caro, dá vida, faz nascer a semente, mas mata pinto também. Tudo tem um lado bom e um lado ruim. Decidimos roubar o banco isso terá consequências. Adeus, caro jovem, admiro sua coragem. O carro preto em disparada saiu em direção ao sítio. Foi ficando, cada vez mais, pequeno, até sumir na estrada. Deixando pra trás, uma cidade, que voltava à rotina. A monotonia, da moça na vidraça. A chuvinha ameaçadora, faria os panos sumirem do varal. E o cachorro, meio contravontade  deixou a calçada da igreja.


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