BENJAMIN (The Armchair)






































Estava chegando os dias de ficar sentado na poltrona. Dia de ficar olhando a montanha. E ver de novo os meninos escalando-a, há muito tempo atrás. Tempo da estrada cheia, de gado. Tempo da safra de umbu no inverno, e de caju no verão . O carro lentamente avançando. Devagar, esperando os bovinos permitir passagem. Um magnífico Aero Willys veio vindo, guiado por um... anão?! Um imenso chapéu de caubói. A cabeça, como a de um homem mediano, como se implantada no corpo de uma criança. Os trajos era de vaqueiro. Parou, junto ao rapaz, Ao rapaz parado a porteira, ofereceu carona. O moço aceitou. Achou bem interessante, a adaptação que o homúnculo fizera para alcançar os pedais do freio, acelerador e embreagem. O rancho da namorada, ficando pra trás. Ainda o seu perfume retivera nas mãos. O anão puxou conversa, falou do circo armado no povoado. Do show country do qual fazia parte. Do quão difícil fase estava passando, sua namorada fora embora com outro. Ligou o som do carro, e encheu o automóvel com música de dor de cotovelo. Os detalhes do painel, recoberto com couro de búfalo, também os bancos. No retrovisor interno, um penduricalho com vários amuletos, pés de cabra, coelho, uma figa, uma pequena imagem de Nossa Senhora Aparecida, e uma ferradura enorme. O barranco que um dia o rapaz esteve sentado com a amada passou, bem devagar. Ali, um dos muitos beijos furtados. A boca, acabaria descobrindo, ficava morna quando ela estava perto de menstruar. 

Vô pode levar-me pro parque hoje? Lembrou da mãe da neta. Seria a segunda ou terceira geração que levava pro parque? Sempre nas festas da padroeira. Sobrinhos, filhos, agora a neta. Lembrou quando a criança de levar ao parque, era ele mesmo. Os brinquedos tão mais simples. Uns laças-laças, uma pescaria onde os peixinhos ficavam enfiados numa bacia cheia de areia, ao serem fisgados uma plaquinha indicava o prêmio: uma bola “Dente de Leite” de plástico; um boneca nua, assexuada; uma vareta. Objetos que valiam menos que o próprio bilhete pago. Mesmo assim encantador era ganhar, fosse o que fosse. O carrossel, as patinhas, os barcos. As barracas de quitutes e o cheiro forte de cebola e defumados. A moça foi à cidade, e eram os dias daquela festa. O rapaz estava sozinho em casa. Dias antes haviam brigado, à dias sem se verem. A menina foi andar de bicicleta, estava com raiva dele. Caiu, quebrou o braço. Falou pra irmã que se abusara dele. Por quê? Por estar sempre com o mesmo visual. Sempre com aquelas camisetas preta. No início achava maneiro. Tinha só quinze anos. Depois a irmã aconselharia o cunhado a mudar de vez em quando, a cor das camisetas. O relógio “Champion” de muitas pulseiras, o primeiro presente de aniversário. 

Ao abrir a porta, lá estava de pé. O braço engessado. Cara de menina travessa, meio sorriso nos lábios, uma das pernas balançava, de nervosa. Ele, calado. Abriu-lhe a porta. Entrou. Ficaram um tempão olhando um pro outro, sem dizer palavra. A tarde toda, ela deitada no sofá, ele sentado na poltrona. Velha poltrona que fora do pai, que herdou do avô. A tevê, não se animavam ligar. Ela agarrou no sono. O mês era convidativo para um café com chocolate. O rádio ligado, o locutor a dizer que era a hora do “rei’. Referia-se a Roberto Carlos e o moço de Itapemirim, veio embalar velhos pensares: “Da janela o horizonte/ A liberdade de uma estrada eu posso ver/ O meu pensamento voa livre em sonhos/ Pra longe de onde estou.” 

Lembrou do dia que o amigo perdeu o carro de volta pro sitio. E teve que dormir em sua casa, era véspera de feira. À noite foram andar nas toldas que vendiam comida, comeram cuscuz com carne de bode, regado a cachaça. Ficaram bêbados. De volta a casa, na cozinha, beberam mais ainda. E riam de bêbados. Acabaria, um dormindo no chão e o outro no balcão da pia. De manhã os dois estavam no chão. O circo ficaria só mais aquele final de semana. E iria pra outra cidade. A praça de repente virou um aglomerado de gente. Todos queriam ver um homem, um romeiro, penitente, fizera uma promessa, iria levar uma cruz, em tamanho e peso semelhante à de Cristo, até a cidade de Juazeiro do Norte no Ceará. Até o horto na estátua de padre Cícero. Tempos depois, estaria a pensar no homem e sua promessa, que loucura, se não fosse pela fé, seria absurdo. O percurso era de mais de quinhentos quilômetros. Era um homem atarracado, mas bastante forte tinha feições de índio. Agora a casa era um mirante, donde se via a rua, palco de muitos shows que a vida proporcionava, diariamente. Outro julho, num dia frio, bom para tomar café com chocolate, e se cobrir debaixo dos lençóis, na poltrona. Outro dia, minha mãe recebia a visita da comadre, assim que saiu imediatamente o irmão pequeno se aninhou na poltrona. aquecida pelo corpo da ex-ocupante. A mãe o ralhou, dizendo que aquilo não era legal. O menino queria saber por que. Dizer apenas que fazia mal não era resposta convincente. Que mal haveria deitar sobre uma poltrona quentinha? Ainda que aquecida pelo corpo de outrem? Benjamim. Como poderia alguém colocar nome tão feio em alguém? Ah! Agora, é que vem dizer que meu nome é feio? Tantos anos depois? O amor é cego. Ah, então não há mais amor? Não era bem isso que queria dizer. Mas é o que parece. Nem tudo que parece, é. O pai, verdadeira paixão tinha por nomes de americanos ilustres, meus outros irmãos: Thomas Edson, Henri Ford, Roosevelt. A música de Roberto Carlos veio voando. Seria somente dentro de sua cabeça? 

O circo agora estava indo pra cidade vizinha. A ex-namorada do anão fora esfaqueada por outra mulher, por ocasião de uma briga no bordel. Socorrem-na. O parque de diversão, onde antes estivera o circo, foi armado. O som efusivo, os rojões estourando no negro céu, o carrossel girando estonteante, a algazarra das crianças. O menino que se fartava com algodão doce, depois de jovem passara à refrigerante e sanduíche. Uma vez adulto, cerveja e vodka, a embalar os sonhos. Da poltrona dava pra ver tudo. Dava pra rezar. O pai do pai morrera sentado naquela poltrona. É poético morrer sentado. Enquanto todos pensavam que ele ouvia música, morria. Gostava da música de Roberto Carlos: “Eu às vezes penso até onde essa estrada/ Pode levar alguém/ Tanta gente já se arrependeu e eu/ Eu vou pensar, vou pensar.”

Vô, daqui de casa, você é quem vai morrer primeiro. Não é? Sempre são os mais velhos que morrem primeiro, vô. Concordou. Nada mais coerente do que dizia a neta. Coerente e triste também. Talvez quem sabe, com um pouco de sorte, igual ao avô, morreria sentado naquela poltrona. Preferia Djavan a Roberto Carlos. A neta já acostumara. Quando iam pra praça, assim que entrava no carro. Vô põe Djavan. Posso baixar os vidros da janela? E o carro se enchia de “Lilás”. Baixinho punham-se a cantarolar, a letra já sabia de cor. De novo a menina do braço engessado. E tomaram banho no quintal junto ao lavador de roupas. Ela só de calcinha. Tendo o cuidado de levantar o braço pra não molhar o gesso. Benjamim. Não é o mesmo que colibri? Talvez um beija-flor. O eletricista que fazia reparos lá em casa chamava a tomada de eletricidade de benjamim. E ficava agora associando seu nome, ao pequeno pássaro, a tomada elétrica, quem sabe ao bolero: “Besame, besame mucho!” A noite os dois, tomariam café com leite, pão com manteiga. A luz de vela, não por ser romântico, mas por queda de energia frequentes naquela época. Dormiram juntos. A primeira noite de amor, dos dois. De manhã, estava decidido agora pertencia, um ao outro. Decidiriam mais tarde que iriam se casar. Mal sabiam o que os esperava. Mesmo assim traçavam planos pro futuro. Quando a mãe soubesse, talvez chorasse, talvez ficasse brava. melhor não saber. Não naquela ocasião. Algum dia saberia. Mas não agora. Não sabia com quem contar naquele momento. Nenhum dos dois tinha muito com quem contar. “Quantas vezes eu pensei sair de casa/ Mas eu desisti/ Pois eu sei lá fora eu não teria/ O que eu tenho agora aqui.” 

Tem Benjamins velhos também, o mais velho que conhecera naquela época era o almocreve que trazia água do rio, num burrico para encher a cisterna de casa. Mas tinha pessoas que abreviava, e chamavam o homem de “Seu Beija”. Um vocativo como a obrigar o pobre tangedor de burro a ser o maior beijador do mundo. “Meu pai me dá conselhos/ Minha mãe vive falando sem saber/ Que eu tenho meus problemas/ E que as vezes só eu posso resolver.” Benjamin lembrava também dum Benjamin dos livros da escola, um velhinho de boa cara, um tanto quanto sorridente a segurar uma pipa, que voava num dia nublado e chuvoso. Ah! Menino traquino... Não sabe que é perigoso soltar pipa em dia chuvoso? Talvez os Benjamins sejam todos assim. Sabem, as vezes, da iminência do perigo que correm mas se arriscam assim mesmo. Porque estar sentado na poltrona é tão prazeroso e perigoso quanto sair correndo na chuva. Assim, como nascer e morrer. São tudo conseqüências. “Coisas da vida/ Choque de opiniões/ Coisas da vida/ coisas da vida.” 

2 comentários:

  1. Parabéns professor, linda história e uma bela reflexão de vida....

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  2. Obrigado Deivid pelo cometário, fico feliz por vc. Sei algo sobre suas conquistas na vida profissional Deus o abençoe sempre.

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