Tempo, Tempo, Temporal.







































A chuva caía torrencial. Raios clareavam vez outra, à noite, a torrente d’água. Azulada, quando não negra. As copas das árvores, o matagal. A estrada, convertendo-se pouco a pouco num rio, sinuosamente ao sopé da montanha. No meio da tempestade, um vulto se projetava na estrada, toda vez que o risco de luz cortava o manto negro. Perempto avançava o vulto negro. Sob espessa malha d’água. Chapéu na cabeça. Um homem vinha vindo, molhado até a alma. A água escorria-lhe pela aba do chapéu, pelas costas, pela manga comprida da camisa, pelos braços. A mão direita segurava uma estrovenga. No fio da lâmina, sangue.

O sol, e sua incrível capacidade de animar as cores. Mesmo as mais preguiçosas. O azul do céu contrastando com o cabelo ruivo da menina. Amarelando à tarde, feito quadro de Van Gogh. O irmão entretido com cavalinho de madeira, no alpendre. Os pássaros, onde estavam? Denunciava-os seus cantares alegres. Os óculos, feitos pra pensar, pensavam sobre a mesa. Os chocalhos diziam longe a onde ia o gado, logo ali. Um homem que nunca tivera naquele fim de mundo de meu Deus, surgiu na cancela.

O quarto na penumbra. Uma vela acesa, vigiando as imagens dos santos, algumas sérias outras tristes, sobre a mesinha de madeira forrada com pano branco. Se dia ou noite, ali dentro tanto fazia. O homem estrangeiro chegando, as crianças brincando. Uma mulher, que não dava pra ver, se ocupava entre a cozinha e os fundos. De onde aparecera aquele cachorro? A casa. O alpendre. As crianças. O cão enorme. O vento soprando assobio vespertino. À tarde, no esplendor de beleza de quinze horas, de azul e branco no céu. A solidão passeando no oitão da casa. O silêncio quebrado pelo pipilar dos pássaros. Calmaria, grito de crianças, calmaria. Aquele cachorro de onde aparecera? O menino agora brincava com barro de louça. Fazia bolinhas. A menina agora na rede, no alpendre. O sol fazendo réstia até a metade do piso. O cimentado quente. A boneca de cabelos amarelos, olhos azuis fixo nas telhas. Uma mosca, e seu vôo inoportuno, do cabelo pra boca. De repente um estampido. Um tiro? Não, não pareceu um tiro.

Vô, conte uma história de malassombro. Não. Você sempre assusta de noite. E acaba sem querer dormir na sua cama. Vou não assustar. Vai sim. Está bem, vou contar aquela que comecei outro dia, e você me mandou parar. Do homem que... Sim, aquela realmente aconteceu comigo. De quando tive que fazer o reconhecimento de um percurso, que faria com meus alunos, e acabei me perdendo, lá na serra. Faz tempo viu? Duas crianças tentaram ajudar-me mas... Era uma vez uma montanha. Pra chegar até lá, tinha que passar na frente dum cemitério. E no sopé havia uma mata. No meio da floresta morava um velho. No vilarejo próximo, havia um menino que não gostava muito de estudar. Um dia, ao invés de ir pra escola, foi pra o campinho jogar bola. Só que não encontrou ninguém lá, estavam todos na aula. Daí, ficou olhando pra uma mata que ficava ao lado do campinho. Resolveu entrar na caatinga fechada. Não andou muito e já estava perdido. Desesperado, começou a correr e quanto mais corria mais se perdia. No meio da floresta encontrou uma casa. Havia inscrições e cruzes nas paredes. Crânios no chão, pingos de sangue, velas acesas.

O cachorro continuava lá. De pé sob as patas dianteiras emparelhadas o traseiro apoiado no chão. O rabo recolhido contra o próprio corpo e as orelhas apontadas pra cima, em guarda como premeditasse algo a acontecer. Um tiro. E o cão correu pra dentro de casa. As crianças, como se nada houvesse acontecido, continuaram brincando. O pai costumava atirar detrás de casa. Se fosse preciso abater uma galinha, certeiro atirava na cabeça. Vida no campo alternada de sucessivas tribulações e momentos de paz. E novamente a calmaria.

O velho, a casa da floresta, a bola de cristal. Dentro do quarto, na penumbra viu o menino se aproximando. O menino apanhou cerejas no jardim. Ia levá-las a boca mas foi interrompido. Não faça isso. Essas frutas, apesar de belas e vistosas, são venenosas. Uma mordida e daí a pouco, você estaria morto. Eu lhe vi chegando, sei por que está aqui. Não gosta de ir à escola? Não é? Venha tenho algo para lhe mostrar. Um pouco assustado. O menino cedeu.

O cachorro avançou sobre homem e o mordeu no pescoço, e boca. Ferido de morte por um tiro de garrucha. A mulher estava caída também ferida mortalmente. O homem havia desferido vários golpes de estrovenga. Na luta entre cão e homem, venceu o cão. De repente, o próprio cão virou um homem. E estava de pé, na cozinha olhando pros corpos inertes do homem e da mulher, ali no chão. Lá fora um casal de crianças brincava. Arrastou os corpos pros fundos. Cavou duas sepulturas atrás de casa e os enterrou. O menino continuava a brincar com os bois de barro, e as balas de peteca que havia feito. A menina e sua boneca na rede. Para onde teria ido aquele cachorro? O estrangeiro da cancela observava. Pensou em bater palmas, desistiu. Pensou em chamar as crianças, desistiu. Rodeou o oitão da casa e viu um homem cavando sepulturas para enterrar dois corpos. Trajava sobretudo preto e um chapéu também preto. 

Depois que enterrou o casal, o homem voltou para ver as crianças, mas já não estavam lá. O menino achava muito interessante, tudo que havia via. O velho o observava. Os animais empalhados. A bela cabeça de alce na parede, um lobo guará, uma corujão que parecia olhar fixo pra ele. O preto velho, disse que sabia de muita coisa. Das pessoas conseguia ver suas almas. E mesmo outras, que por ventura as acompanhassem. Fez uns gestos sobre a fronte do menino. Seus ancestrais, disse, vos acompanham, para onde vá, o protegendo. Foi até um antigo baú, abriu. Uma luz vermelha vermelhou o quarto. De lá dentro tirou uma pedra polida, parecida com um diamante, dela emanava a luz rubra. E disse. Está vendo esta pedra? É seu coração. Guarde-a. Todo dia perde um pouco de sua cor e brilho. Quando não estiver mais radiando essa luz, você estará morto.

O homem de preto, sozinho no alpendre, da casa. Em plena tarde. Num piscar de olhos, e voltou a ser um cão peludo. E de um único salto ganhou a mata. As crianças caminhavam, na companhia do estrangeiro, conversavam coisas corriqueiras. De que cada um mais gostava de fazer nas férias, caçar, tomar banho no rio, jogar bola. Conversavam pra disfarçar o medo, a sede, a fome. A menina, agarrada a sua boneca permanecia calada. Andaram muito, até encontrar numa clareira onde havia um belo chalé. Ali morava uma tia dos pequeninos, Contaram pra ela o que havia acontecido. A pobre senhora apenas ouvia calada. Serviu-lhes café com sequilhos. Perguntou-lhes quanto tempo havia que andavam na mata? A pelo menos duas horas, respondeu o homem. E disse baixinho, que só ela mesma pode ouvir. Exatamente em meia hora o cão estará aqui. 

O velho disse ao menino. Você é discípulo de Leviatã. Nasceu para cumprir uma missão. É sua missão na terra ouvir os lamentos dos que deixam a vida. Especialmente os que a deixam antes do tempo. Vai morar perto de um cemitério. Apacentador de espíritos sua função. Toda vez que um defunto passar pelo portão para ser sepultado. Se tiver deixado essa vida em paz, nada acontecerá. Porém, se tiver morrido tragicamente, ou partido antes da hora. Sua alma virá até você, vai lhe procurar para pedir algum tipo de favor. Algo que deixou de realizar.

Venha vou lhe mostrar o que aconteceu a seus pais, disse o velho. E levou o menino para o quarto, até a bola de cristal. Dentro da bola o menino pode ver o que acontecera naquela tarde que brincava no terreiro com sua irmã. O cachorro que entrou correndo dentro de casa. A tentativa de salvar sua mãe. Tarde demais. O cão, era o mesmo que rondava seu pai desde muito tempo. Entendeu porque seu pai sempre vivera acompanhado daquele cão. Fosse a onde fosse. Sua irmã até conversava com ele.

O velho disse para ter cuidado com a pedra. Levasse-a sempre consigo. Que a defendesse como sua própria vida. E que nada de mal deixasse lhe acontecer. Foi no ano quarenta de seu aniversário, resolveu voltar à velha casa onde morava quando criança. Onde vivera sua infância, junto com sua irmã. Invadido foi de melancolia ao vê-la. Estava abandonada. Fez questão de chegar por volta de três da tarde. A lembrar, daquela tarde que o homem estrangeiro os resgatou, pra casa da tia. Um sol semelhante aquele amarelava as coisas. As nuvens e o céu azul também estavam lá, tudo como antes. A solidão sempre, sempre lá estaria. Os túmulos detrás de casa.

Estava resolvido. Passaria a noite no velho sítio abandonado, sozinho. Onde sepultados estavam seus pais. O cantar dos pássaros, embalou sua tristeza. O calor do sol, aquecendo a rede no alpendre o fez voltar no tempo. Assim a tarde foi se indo. De repente, o céu antes azul, inflamou-se de nuvens negras, e caiu tempestuoso temporal. Uma chuva grossa com força castigou o velho telhado. E se fez trevas no mundo. Procurou uma vela, acendeu. Seu rosto amarelado projetou sombras, nas paredes de barro e taipa. Os móveis do tempo que morava ali rangiam de muito velhos. Abriu uma gaveta e encontrou a faca com a qual sua mãe preparava as comidas, matava as galinhas. A velha garrucha enferrujara. A pedra do cordão no seu pescoço por instantes pareceu perder o brilho. De repente um vento forte, e a porta da frente de um baque se escancarou. No umbral, o raio clareou, o vulto de um homem, de chapéu preto. Molhado até a alma. Na mão uma estrovenga. Pra ele olhava com ar de ódio, ameaçador.


Nenhum comentário:

Postar um comentário