Nunca Mais...




Nunca mais, era frase forte. Ficar olhado o pai, deitado na cama, imóvel, entendia ainda menos. Jamais imaginara que um dia iria vê-lo assim. A imagem que queria guardar era ele, de pé. No alpendre da casa do sítio, ocupado em fazer o seu cigarro, de fumo bruto. Encostar-se-ia a uma das vigas, que sustinha o telhado baixo, e entregava-se ao prazer de olhar o que a Mãe de Deus lhes dera.  Enquanto ela no beiral da porta. Talvez procurasse depois uma fotografia nestes termos. Lembrava com nitidez daquele dia. Era uma tarde de sol, de mês de setembro. Tempo da colheita, da safra de feijão e milho. Na fotografia em primeiro plano apareciam seus xodós “Rio Pardo” e “Paraná”. Parelha de nelore, bons de canga que ele tanto amara.

Os meninos, magros a mostrarem os ossos das costelas, cabeludos de cobrir os olhos com tanto cabelo, serelepes, um bom tanto eram. O dia era pouco pra danar-se pelos arredores a caça de preá, de balear de peteca, de ir olhar as arapucas que armaram à tardinha, no dia anterior, e ver se pegara algum mocó. Com cuidado pois, podia ter apanhado uma cobra. Lá perto do meio dia, tomariam banho de barreiro. Tinham medo do açude do governo, pois já matara tantos meninos que já perdera a conta. O último foi Lucas, o negrinho filho de dona Nena que morreu afogado no seco. O menino pegou um cará e ficou brincando com o peixe vivo, na boca, preso entre os dentes. Só o rabo de fora, balançando pra um lado e pra outro. Naqueles meios, o peixe escapuliu garganta à dentro. E o pobre negrinho morreu asfixiado. Se batendo no chão, se jogando, se cortando todo nos arames da cerca. Por essa e outras mortes o açude ficaria mal-assombrado. Em plena luz do dia, se ouvia os gritos dos pobres finados, e davam gemidos horríveis pedindo socorro, morrendo da pior morte que existe, afogado.

Um dia, voltando duma dessas empreitadas, um dos netos passou por detrás da casa da vó. Foi até lá. Após a benção, perguntaria pela sua mãe. Disse que estava bem. Na lida lavando panos no barreiro. Foi ao pote tomou água. Aguinha saborosa, salutar pra quem vem de dentro do mato, com sede, cansado. As faces, apesar do chapéu de palha, ardendo, vermelhas. Perguntou se tinha um prato de coalhada pra lhes servir. A vó disse que não. Deu desculpa dizendo que no verão as vacas diminuíam de dar leite. Concordou. Disse, e saiu da cozinha pra fazer alguma coisa. Talvez estivesse na despensa. Tempo suficiente pra descobrir dois imensos baldes de coalhada sobre o balcão da pia. Rápido, feito um gato, foi até terreiro catou um punhado de esterco de boi, com raiva espalhou sobre a coalhada. Tendo o cuidado de cobrir novamente, com os panos, como estava antes.

Sentada a mesa, mais o irmão, em casa. A frente dos dois, um balaio de tomates, recém colhidos no oitão de casa, convenientemente frutificados com as águas de uso. Teve a ajuda das trovoadas, sinais de fim de inverno magnífico. O irmão a desafiou. Aceitou o desafio, ver quem comia mais tomates. Parte considerável do conteúdo do balaio foi embora. Também a neta, era outra que gostava de comer tomates crus. Puxara a vó. Pra seu bem, ainda os sabores do mundo, não tinha tirado aquele paladar adquirido de família.

A novena de Santo Antonio. As quermesses nos sítios e vizinhanças arrastavam uma ruma de matuto pras rezas, também pras bebedeiras. Fogos de artifícios. Bandeirolas. A imagem do santo, amplamente tocada, beijada. Algumas velhas ao redor da imagem, entre cochilos, debulhavam incontáveis rosários. Madrugada a fora. A imagem enfeitada de fitas coloridas. Promessas pagas em agradecimento ao bom ano de fartura na mesa, de recorde de colheita de grãos, de bom pasto, de bois de engorda, de crias sadias das vacas parideiras. De bons negócios na venda de garrotes mansos, bons para puxar arado, bons de cangas, e de carro.  Os quitutes, as prendas, donativos adquiridos de promessas feitas ao santo. Uma garrafa de jurubeba, uma galinha assada. Arrematada por alguns escassos cruzeiros. Homens portando a cintura suas armas da lida do dia dia, facas peixeiras e facões de meio metro. A cantiga da ladainha. A procissão das velas. A missa em latim. O padre dizendo palavras que ninguém entendia.

"Ave Maria Mater dei
Ora pro nobis precatoribus
Ora, ora pro nobis
Ora, ora pro nobis precatoribus
Ora, ora pro nobis
Ora, ora pronobis precatoribus
Nune et in hora mortis
In hora mortis, in hora mortis, mortis nostrae
In hora mortis mostrae
Ave Mariae"

Pedro pedreiro, teve fim trágico. Teve vida breve como na música de bossa nova. Do tempo em que soldados prendiam por qualquer besteira. Ao encontrar quem quer que fosse vagando, bêbado nas pontas de rua. Primeiro batia, depois prendia. Raramente perguntava quem era. Pedro não teve essa sorte. Os tempos eram outros. Voltava da obra, as mãos, as unhas, os braços, as botas ainda tinham resto de cimento. Dois homens numa motocicleta o abordou a caminho de casa. Na baixada, da queimada do rio. O serrote testemunhou a cena. Calado, nada podia fazer. Os moços disseram. Ele nos reconheceu, se sabe quem somos, temos que matá-lo. De nada adiantou, pedir que o deixasse vivo. Que levassem o que quisesse. Não adiantou implorar pela vida. O primeiro tiro seria suficiente, atingido no peito caiu. Mesmo assim, não satisfeitos, mais outros tiros foram deflagrados. Trataram de cair fora, levaram pertences, carteira, dinheiro, motocicleta. 

Pedro pedreiro, nunca mais veria seu filho, nunca mais chegaria encostando a motocicleta no terreiro. Nunca mais olharia com aquele olhar só dele, a mulher que sempre o aguardava, apreensiva enquanto não chegasse, o filho no braço. No exato momento sentiu baque forte no coração. Só pode ter sido algo com ele. E realmente foi, no momento que o atingiram. Nunca mais, o jogo de bola, nas tardes de domingo, com os amigos. Nunca mais o sítio do cunhado, nos finais de semana. A vitrola tocando músicas alegres, ao cair da tarde. Nunca mais o banho de chuveiro, debaixo da mangueira, tudo isso a tomar muita cerveja. A alegria lhes faria dançar, a fazer os colegas rirem, a sentir-se leve, solto, vivo. Pedro, nunca mais.

"Nunca mais você ouviu falar de mim
Mas eu continuei a ter você
Em toda esta saudade que ficou
Tanto tempo já passou e eu não esqueci
Quantas vezes eu pensei voltar
E dizer que o meu amor nada mudou
Mas o meu silêncio foi maior
E na distância morro todo dia sem você saber"

Nunca mais o pai, a mãe, e seus filhos. Não mais. Da janela de casa ficava olhando. Nunca fora um herói de verdade. Mas era um gigante. Um gigante isso era, um deus agro. Um, como titã agrário, com poderes sobre as terras. O senhor dos campos, prados e campinas. Aplainava os caminhos, endireitava as veredas, como aprendera do batista. Como um guerreiro romano a cavalgar uma carruagem, puxada por dois bois. A arrastar a lâmina de aço, como a fazer a barba da terra. Começava detrás de casa. E ia indo, indo, de verde pintando de marrom a medida que o aço ia cortando. O Hércules do sertão, ia indo, ficando pequeno, cada vez mais pequeno, até virar um pontinho negro sobre a linha do horizonte.



A Máquina










Teve um tempo, lá atrás. Muitos dias já se passaram desde então. À rua da casa da minha vó, matuto passava pra lá, e pra cá. Jegue tombando carga gigante de capim. Mulher equilibrando pote d’água na cabeça, ia e vinha. De repente um enorme carro preto parou a porta. Desceram homens de paletó e gravata, óculos escuros, em rostos carrancudos. Brutamontes, comparados aquele povo franzino e feio do sertão. Queriam saber da história de uma máquina de costura, que pertencia a minha vó. Com a paciência de Jó, convidou os homens a entrar. Ofereceu bancos pra que se abancassem. Serviu-lhes café.

A casa da vó paterna, a neta mais nova a achava bonita. Dizia que se tivesse que morar ali, não mudaria nada. De certo que estava muito velha. No entanto, achava que não mudaria muita coisa. O piso com sua estampa variada de cerâmica. Um tipo para cada cômodo, também os corredores. O pai esclarecia. Não se tratava de cerâmica, mas de mosaicos de alvenaria, grossos, antigos. Assentados sem espaços entre eles. As paredes de reboco irregular dividiam os cômodos, subiam sem alcançar o teto. A servir de apoio pras traves que sustinham os caibros e ripas. O sagrado coração de Jesus, inflamado dentro do peito de Cristo, pendido dum cordão marrom. Em moldura ovulada, a gravura já bem desbotada. O tanto de orações que subira por aquelas paredes, a se perder nos tempos. Quantas teriam alcançado o céu? Quanto de olhos pios volvera aos céus. Alguns em dias azulados, outros anuviados. Quantos medos atravessaram aqueles portões, de madeira velha, de trancas inseguras. Telhados altos, de telhas quadradas, um dia já foram ainda mais velhas, bem mais gastas que aquelas. Gatos quebravam o silêncio ao passar sobre a folha de zinco. Preferia pensar que realmente fossem eles, andando sobre a bica. Na escuridão da alma, de outras noites ainda mais frias.

Olhando assim, parecia uma máquina comum. Como diria Thomas, só que não, né vô?  Minha vó então iniciou sua história. Esta casa guarda segredos que só Deus conhece, de onde vem, pra onde vai. Aconteceram coisas por aqui seu moço. Coisas com essa máquina de costura, que correu o mundo. Vou contar. Uma vez estávamos todos na calçada, era uma bonita noite de lua nova, dum mês de agosto como este. Havia chegado a vizinhança um povo de Pernambuco. Eram como ciganos. Dentre eles tinham um tipo que não merecia confiança. E deu pra sumir uns objetos daqui de dentro de casa. Primeiro desapareceu um relógio de pulso, de Tomaz meu marido. Passou-se um bom tempo. Daí foi a vez duma corrente banhada a ouro, que ganhei no dia do meu casamento. Eu guardava uns trocados dentro de uma lata vazia de biscoitos de manteiga. A porta dos fundos, tenho a mania de deixar aberta. De repente, de lá da calçada, ouvimos um forte grito, bem aqui dentro da cozinha. Tomaz e outros amigos que estavam com a gente correu pra cá, pra ver o que era.

A cozinha da casa da vó paterna, tinha uma área verde. Na verdade uma adaptação que tomou metade do espaço. Assentada estrategicamente onde antes havia um balcão de muitas portinholas. Guarnecido de prateleiras também cheias de portinhas enxadrezadas. Uma parafernália de apetrechos de culinária tomava toda a bancada. Tigelas de vários tamanhos, terrinas, travessas, compoteiras, paliteiros, portas-guardanapos, bandejas, xícaras, talheres, copos, bules de café, jarras de leite, açucareiros, e pratos de porcelana. Tudo decorado com muito esmero. Um souvenir mexicano que servia pra coçar as costas, como uma pata de macaco. ali era intrusa. Teve um tempo que estava muito feio, àquele recanto verde. Agora tinha plantas vistosas e bem cuidadas. Pedras redondas chamadas de corisco, subiam até o alto iam ao encontro de vigas de concreto que evocavam cadeias. Trazendo ancestrais do tempo colonial que chegaram de navios. E desejaram ardentemente sobreviver, e outras vez pisar  terra firme. O céu, somente ele trazia a liberdade Pra dentro dos corações aflitos. Acalmando o espírito que dá vida a casa.

Vô, Deus tem asas? Creio que sim. Deve ser das bem grandes né vô? Deus come? Deus come o quê? Pão. A mãe falou que pão engorda. Deus não é gordo. Mas, é só se comer muito. Não, Deus não é guloso como o vovô, ele come pouco. Desisti de fazer a história em quadrinhos. Vou escrever histórias com palavras mesmo. Contar sobre homens que conseguem desaparecer. E aparecer de novo, onde e quando quiserem. E se quiser conseguem voar também. Para sumir eles precisam entrar numa máquina, vô. Isso, me fez lembrar, dum filme que assisti, faz muito tempo. A história se passava no final do século trasado. Contava a história de um homem e uma máquina que era uma espécie de trenó. Uma máquina de viajar no tempo. Dotada de uma cadeira, onde o único tripulante se assentava, sobre sua cabeça ficava uma espécie de sobrinha, e num painel de controle umas manivelas e mostradores onde apareciam números, que indicavam o ano a qual o navegante pretendia viajar no tempo. Ao acionar os mecanismos, a sobrinha girava freneticamente. E o piloto era levado pro passado, ou pro futuro.

Então Tomaz, e os amigos, ao chegarem aqui na cozinha, se depararam com uma cena de arrepiar.  Eu e algumas amigas chegamos logo atrás, a tempo de ver também. Esta máquina de costura que vocês estão vendo aqui, como que tomada de vida própria funcionava sozinha. E com força costurava a mão do ladrão que se esvaía em sangue. Era inacreditável, até pra quem via, imagine pra quem apenas ouve contar. A máquina de costura como que agia contra o homem prendendo sua mão. Até que chegasse alguém pra descobrir sua má ação. Se vocês me perguntarem de onde vinha aquilo. Sou sincera a dizer que não sei. Talvez seja preciso voltar mais no tempo. Eu porém, preciso saber qual o interesse de vocês, pela história desta máquina de costura.

A menina dos olhos azuis, dos cabelos galegos, não era bonita. Tinha rosto triste. Rosto ossudo, sofrido. Um que de rebeldia  havia naquele olhar. Tinha tantos irmãos que já perdera a conta. Um dia se enfezou com tanto sofrimento, resolveu ir morar com uma das irmãs mais velha. Uma que vivia com um homem que era metido a vaqueiro. Um tipo boçal que andava de vaquejada em vaquejada. Só pra sair de casa fez isso a menina. O companheiro da irmã tentou, em surdina, abusar dela. E sempre se esquivava. Tinha medo que a irmã pensasse que fosse ela a culpada. Procurou uns meios de fazer dinheiro. Resolveu plantar hortaliças detrás de casa. E vendia macaxeira, de porta em porta. Num carrinho de mão com a ajuda de um irmão mais novo. Vendia milho assado ao lado da bomba de gasolina. As roupas, ia lavar no riacho do bode. Feito criança que ainda era, brincava a tarde inteira. Outras meninas da sua idade, tinha vergonha de vender na feira, ou de porta em porta. O vaqueiro, um dia alcançaria seu intento, a obrigou fazer sexo com ele. Se não fizesse não teria mais direito de morar com eles. Pra piorar obrigava-a a dividir com ele o dinheiro que arrumasse com as vendas das hortaliças. Não demoraria a engravidar.

Os homens de paletó preto, que foram à casa de minha vó investigar a história da máquina de costura, eram do serviço de investigações científicas do governo. Eles receberam da Nasa, a missão de descobrir no sertão nordestino no Brasil, um fenômeno que estaria afetando todo tipo de maquinário. Fosse manual, a motor, a tração animal. Talvez uma força vinda de um campo magnético do subsolo para a atmosfera, que precisava ser localizado. Um campo de energia cósmica. Minha vó jamais ficou sabendo dessa história, soubera apenas que aqueles homens eram do governo. Sem sucesso os homens tentaram levar a máquina.

O vaqueiro não entendia o que lhe acontecia.  Estava perdido de amor. Perdera interesse por mulher dama, também por mulher senhora. E mesmo pela mulher que lhe servia. O coração, só, palpitava pela menina. A galega dos olhos azuis. Uma frangota de pouca beleza física. Puramente selvagem. A menina dos olhos azuis, teve um bebê. Um rebento varão cujo pai, era o caubói. O homão de quase dois metros de músculos e força, sucumbido a alguns quilos de loira paixão. Alguém que era pra ser só dele. Precisando de doma ainda. Um dia a menina chegou da cidade, na garupa dum motoqueiro. Ao ver a cena, o vaqueiro ficou possesso. O cuidador de gado tinha uma máquina, a invenção de Samuel Colt tinha uma guardada. Um protótipo invento do cão pra fazer buraco em gente. Misturado com álcool e marijuana, o sangue subiu-lhe a cabeça. Com a máquina satânica de Colt fez cinco buracos na galega. Nem sequer ouvia os estampidos. Como num filme de faroeste, que estivesse com problema de som, A queda em câmara lenta. Muito perturbador foi ver o pequeno no berço. Dormia inocente sono de anjo. O resto de sua vida, esperaria a mãe que nunca mais viria lhe dar de mamar. O boiadeiro selou o cavalo, doidamente. Tinha um plano urgente a executar. Parado, de pé na estrada encontrou um homem negro, chapéu preto, paletó preto, óculos escuros, luvas de couro. Sorriu, pondo a ver os dentes de ouro. Disse ao vaqueiro, só uma coisa havia a fazer. Que fizesse rápido. Cavalgou indiscriminadamente, até chegar a frondoso pé de cajarana. A beira do riacho do Bode. Um laço de corda alcançou um braço da árvore. Passou pelo pescoço, enxotou o animal com as esporas. Ficou pendurado, balançou, até ficar imóvel. Para sempre. 

Os vizinhos da minha vó. Depois do ocorrido voltaram pra Pernambuco. Pra região do Caetés, de onde vieram. O caboclo, consigo levaria, sequela pro resto da vida. O dedo mínimo da destra, decepado pela máquina de costura. A despeito do destino, aquilo tornar-se-ia um mal de família.

Ilustração feita por Aika Vieira Melo, de 6 anos de idade, neta do autor.


PAI-VÔ



































A vida, devagar, e branda. As adversidades, calmamente iam se ajeitando amargas e doces, dentro dos corações. Embrulhadas pra presente algumas. Os prédios, as casas, os estabelecimentos comerciais tinham mais o que fazer, a ficar se preocupando com coisas pequenas. E cada um sabia exatamente o quanto não era feliz. Não precisava ficar esperando o dia vir dizer isso. Se esticaria pra cima das coisas com gosto, no momento certo. Apreciaria os cavalos exibindo músculos luzidios, e crinas bem cuidadas. Toc toc-toc os cascos no passeio. Se tempo fosse de flamboians o chão da praça estaria salpicado de rubro e cinza. Cinza e rubro.

Lá vinha serelepe um dia de domingo. Tempo do sertão largar sua dureza. Secura de Judéia. A s noites não eram pra ficar assim, porém acabavam pensativas. Os violões, depois da guerra, não tiveram ânimo pra mais nada. Coragem não tinha de sacudir a poeira. Os pirilampos seduziam anfíbios que voluptuosamente os devoravam. As tarefas escolares dormiam nas bolsas, pacientes esparavam as correções, os pontos de exclamação. A data corriqueira passando, pra lá e pra cá, por cima das horas lentamente. A agenda, a assinatura da mãe.

E Deus quis ir conversar com ele. Embora, soubesse que não estava muito pra conversa. Não porque não quisesse, mas por estar dopado. Em coma induzido. Ficou olhando-o ao lado da cama alta, do hospital. As vestimentas verdes. O forte cheiro de amônia. A luz do dia, artificial. Numa mesma calha lâmpada feixe solar, na outra neve polar. Observava os olhos do pai, serrados. O que será que viam? De certo estaria no sertão. Lembrava do dia que o pai dele contratou um táxi. Um Aero Willys, branco, conversível, rabo de peixe. Pra levá-lo até o aeroporto Zumbi dos Palmares, dali embarcaria rumo a São Paulo. A mala cheia de dinheiro. Notas de mil cruzeiros. Seria mesmo cruzeiro o dinheiro? Naquele tempo, no comando da nação o marechal Castelo Branco. Lembranças gastas, feito filme antigo, sem cor. Como película velha que ameaça romper-se a qualquer instante. Estava sim, no sertão, era um sertão vazio. Imperfeito. Sem cheiro de bosta de boi. Nem de mato verde recém quebrado. Mas gosto de uísque, a isso tinha. Levara consigo o litro. Saiu sem se despedir do pai que se recolhera aos aposentos. Não queria ver a sua saída. Na cozinha, deu um cheiro e um abraço em Tonha, a preta velha.
 
A bisavó, deitada na cama do quarto. A neta carinhosamente chamava-a de “bisa”. Na cama baixa, de olhos fechados, meio que acordada, meio que dormindo. Gastando os últimos anos de vida. Vida árdua que vivera. Naquele tempo, aliás, tudo era difícil. Ainda mais sendo ela uma mulher, e de cor. Sofria calada. Preconceitos racistas na escola. Fingia que não se importava. Ainda criança tinha um medo mórbido que sua mãe morresse primeiro que ela. Verdadeiro pavor. Se chovia, mais aflita ficava. Enquanto a mãe não chegasse da roça não sossegava. E começava logo a rezar. Os meninos tinham que dar a lição. O casebre, tudo muito simples. Móveis, uma mesa uns tamboretes. Não havia luxo naquele mundo de meu Deus. O sonhos de ser cantora, morria junto com a voz, no oitão de casa. Uma pilhéria bastava, e tudo se acabava na beira do fogo. De olhos fechados chamava: Mãe? Mãe me perdoa. Achava que dera muito trabalho quando pequena. A asma, o remédio caseiro que não quis engolir, com nojo. O cheiro horrível, a dar-lhe ânsia de vômito só de aproximar o copo a boca. A febre que não cedia. A reza sussurrada, que produzia uns assobios baixos. Pai? ô que homem calado meu Deus! Esse povo calado me deve uma conta.

O terno branco, mesmo recém engomado, tinha vincos nas dobras do joelho. Na barra do encosto das cadeiras. O chapéu branco dava-lhe um ar de gangster americano, dos filmes de Al Capone. Um cigarro entre os lábios. A carteira e o volume retangular no bolso. Os sapatos bem engraxados. O pai o enchera de mimos. Se arrependia, mas agora era tarde. O gado, agora era coisa do passado. Achava que não nascera pra lida com o gado. Identificava-se com aquele jeitão de homem da metrópole, mesmo tendo pouca leitura. Tinha jeito pra medicina. Com destreza curava as feridas dos animais. Aplicava bem uma injeção. Quem sabe abriria uma farmácia. Agora estava na cidade. Na cidade só queria saber de casa noturna. De gastar o dinheiro do pai. De cassinos e jogatinas. De bordéis, mulheres e bebidas. De noitadas de serestas. De boemia, de tomar um litro de uísque até ficar bêbado, e não se preocupar com mais nada.

No que será que pensava? Deus sabia. Velava-o ao pé da cama.  Quem é esse homem? Quem pai? Esse ali encostado... Não tem homem nenhum ali. Lembrava do dia que foi, de carro de boi, pra Laje Grande com a família. A primeira experiência do futuro genro, junto ao sogro. E de repente um desafeto, um quase genro da filha mais nova. Apareceu na estrada. Estava bêbado e atravessou a bicicleta na estrada interrompendo a passagem do carro de boi. Deu de mão do facão. Só não cortou o homem ao meio porque o genro  da filha mais velha entrou em luta corporal com ele. Foi afronta demais se atravessar na estrada com a bicicleta. Cheio de cachaça só pra encrencar. Outro dia encontrou-os no meio da feira, eram amigos ainda. Tinha tirado o dia pra tomar cachaça. A desavença foi por causa de mulher mundana. E ficara sabendo que aquelas camisas limpinhas, bem passadas, que vestia era fruto da dedicação da mulher companheira, as custas de lágrimas, de ameaças, de impropérios. E pensar que teria que dormir ao lado dele, bêbado lavado. Depois de ter deitado, nos cabarés da vida, com outras mulheres. Com elas, as rameiras esbanjava sem reclamar. Em casa chegava brabo, quebrando tudo. A família era como um fardo pesado de carregar. Lares desfeitos, vidas desmoronadas. A filha  mais nova, que tanto sofrera na unha dele agora cuidava, na doença.

Se formara como enfermeira. Só nunca imaginava que usaria seus conhecimentos para cuidar do pai. Aquelas mãos cascudas que tantas vezes aprumava o arado na terra, e gritava com os bois, agora quedavam inertes, sobre os forros verdinhos da cama do hospital. Mãos tantas vezes lhe batera, de cinto de couro. Mãos que  esmurravam com raiva a mesa. E os pés? As unhas brutas apontando pro teto. Pés que tanto andaram pelas areias da beira dos riachos, pelas touceiras de capim elefante. Insensíveis as mordidas dos formigões. Mãos insensíveis agora, ao aperto imprimido pela filha, como a pedir-lhe a benção. Pés de agrimensor, na época de botar roça, a medirem cada palmo de tarefa de terra que encheria de palma, e  enterraria caroço de milho e feijão. E tirando o chapéu, a pedir a Mãe de Deus que mandasse chuva pra que o inverno fosse bom. Aqueles pés e aquelas mãos, tão deslocados ali.

A professora agora dormia, sem querer ser incomodada. Só queria levantar-se se fosse pra ir ao banheiro, ou ir a cozinha fazer as refeições. Abusara de ir pra porta. Não queria mais ver gente, não queria ver ninguém. Abusara de ver pessoas de verdade. Só queria ver gente no sonho, ver sua mãe. Ô menininho? Afaste-se desse barranco, é perigoso aí. Padrinho Pizeca. E como ficou feliz ao ver compadre Zé Lagoa. Perguntou por comadre Maria.

Ficar assim, sem vontade de ver gente. Não era a primeira vez que lhe acontecia. Só que não dizia. Perguntou quando lhes levaria de volta pra casa. De certo sua mãe estaria preocupada. Como podia fazer isso com ela.  Se a gente bem soubesse jamais fazia isso com as mães. Acho que Deus deve ter um castigo, e dos bem grandes pra quem faz a mãe sofrer. E todo castigo do mundo seria pouco pra quem fizesse uma mãe sofrer.

A traumática e dolorida travessia do rio. Nunca, jamais esqueceria, enquanto vida tivesse. Era um grande medo, tinha muito medo, pois não sabia nadar. Chegar do outro lado com vida, era como nascer de novo. Se dependesse dela, nunca mais enfrentaria o rio. Não mais queria ver tanta água na vida. As águas do mundo todo, lhes parecia que foram parar ali. Coisa triste deve ser morrer afogada. Qualquer morte menos afogada. E pedia a todos os santos que viessem em seu auxilio pra que não morresse, sem ver de novo, a sua mãe. Pai? Pai é tão calado. Esse povo calado me deve uma conta.

Lá estava o pai. Sozinho na cozinha. Sentado a mesa, calado. Um dos filhos mais novo ia passando. Disse: Sente aqui. Queria falar-lhe. Fora pego de surpresa. Além de surpreso, intrigado. Por pouco mais de meia hora, tivera uma conversa franca com o pai. Não foi bem um diálogo. Não se atreveu falar. Ouviu apenas. Mas foi o bastante. Em suas rudes palavras disse-lhe basicamente o que era a vida. Na começo pensou tratar-se de mais uma reprimenda, pensou em algo que tivesse feito. Mas o pai veio falar sobre o que um homem precisa para ser homem. Falou, acho, que do respeito aos mais velhos, a hora da família. Talvez, tivesse dito que considerava pouco o que tivera pra dar a ele, e aos irmãos. Muitos anos depois revendo isto, pensou que foi como estivesse se redimindo. Será que sentira que o fim estava próximo? Mas, seria mesmo preciso. Passar por aquilo? Precisavam ambos, pai e filho. Poderia ser de outro jeito. Mas fora daquele, e pronto.

Pai! Aliás, Vô! Vai ter uma festa dos pais na escola. Mas não irei, meu pai não poderá ir, vai estar trabalhando neste dia. Sentiu muito. Embora, nada pudesse fazer. Avô, não é a mesma coisa de pai. Vô, minha primeira história em quadrinhos já tem capa. E o título é: “Primeiros Desastre,,,” Os principais personagens: Puppet; Willian After; Henry; Charlie. A história se passa dentro de um restaurante. Tem um robô que é o guardião. Ele permite, ou não, a entrada e saída das pessoas ao estabelecimento. O robô ele não é do mal. Daí tem Dorothy uma menina que não estava na história, daí ela aparece. Só que ela quer entrar no bar, e o Robô, o Puppet não deixa. Daí o Willian After ataca a menina na rua, para roubá-la. Só que ele acaba desferindo-lhe vários golpes com uma faca. Daí começa uma chuva muito forte. O robô então, se vê na obrigação de ir resgatá-la. E quem sabe tentar reanimá-la...

A velha mãe, estava deitada na cama. De olhos fechados. Ao pressentir sua presença abriu os olhos. E pediu-lhe a benção: benção meu pai. Era a mãe que pedia a benção ao filho. E ele sorria. E a abençoava. Dizendo que já tantas bênçãos recebera. Agora porque não as devolver. E perguntava. Então pareço com vovô? E não é? Respondia. Ao passar perto da máquina de costura, paravam. Olhando as fotografias e repetia: Minha mãe... E está aí a raça toda! A mesma espontaneidade que a mãe tinha. Ao ver-se a si própria pelo visor da máquina fotográfica, quase eufórica exclamava: Olha minha mãe! Futucava no prato pra comer. E comia devagar. Depois com olhar meio que de quase aflição pedia: Me leva até a cama.

A cama do hospital, ainda tinha um pai. Olhos serrados. O peito subindo e descendo, lentamente. Inclinando-se Deus sussurrou-lhe ao ouvido, que tivesse fé, que iria sair daquela. Ele agora, ocupava-se em fazer um cigarro imaginário. Deitado. Olhos fechados. As mãos grossas, cascudas a arremedar o que tantas vezes repetira. Por força do vício fazia. Alisava o papel inexistente, colocava o fumo imaginário. Levava aos lábios, a passar saliva, fechava. E repetia o gesto de acender, e levava a boca. Como se realmente tivesse, o velho amigo, entre os dedos. 





BONNIE




Era uma vez uma estrada. Estrada de barro. Estrada, marcada, e margeada dos dois lados, por cercas de arame farpado. Estradona bonita, boa de matuto passar. Passar montado a cavalo a ir à feira. De passar de jegue, com destino ao povoado, ou à casa de um dos compadres. Um casal de noivos montado numa carroça de burra, indo pra igreja, casar. Estrada boa também de passar a pé. Olhando os carneirinhos de nuvem branquinha, admirando o azulão do céu, As alpercatas fazendo chat-chat no calango de areia. Estrada de passar carro de boi cantando bonito, cantiga de cocão, de canga e canzil. De parelha de bois grandões, até de fazer sombra, de tão grandes. Lá iam os bois, no chão as sombronas, imitando os gestos dos bichos. O chão vermelhão da estrada. E o carreiro com sua vara com um ferrão na ponta. Os pés descalços, o facão pendido dum lado. 



Dona boninha era uma senhora velha. Dessas que quando ia pra roça amarram um lenço na cabeça. Uma vez em casa fazia com uma trança e um cocó no alto da cabeça que mais parecia uma rodilha. Acendia um cachimbo de madeira, pintado de preto, com dois anéis prateados, um na ponta do braseiro e outro no bocal. Guarnecia-o de fumo, acendia, pendurava entre os lábios, desguarnecido de dentes. E partia pros afazeres tranquila, tranquila. Pegava um tacho enorme pra fazer sabão caseiro, bem detrás de casa. Acendia um fogo a lenha, colocava os ingredientes no imenso caldeirão. E iam os meninos curiosos pra beira do tacho olhar o que estava fazendo. Daquela borra fumegante se fazia sabão? E a gosma espumosa de cheiro forte fervia e fervia. Dona Boninha, do jeito que estava ali, com Um vestidão comprido, um avental a cobrir-lhe o imenso ventre, o cachimbo na boca, o lenço na cabeça, o tacho fumegante. Enquanto mexia a poção com uma enorme colher de pau. Olhando assim, dona Boninha lembrava uma daquelas bruxas dos livros infantis, das histórias em quadrinhos. Mas se dona Boninha bruxa fosse, com certeza uma bruxinha boa seria. 

Mas, tudo isso passava longe, muito longe da civilização, não dava sequer pra ouvir o ronco dos automóveis a motor. Naquele fim de mundo, o progresso só existia na bandeira hasteada, num mastro tosco, na frente da casa da professora. E quando iam lá longe, na ladeira, ouvia-se o carro de boi cantando, gemendo, descendo. Descendo e gemendo até lá embaixo. E se chovia por muitos dias. Lá no alto da serra um espelho d’água feito mecha de cabelo de prata, na cabeleira verde da serra escorria. Um raio da silibrina, serpenteando, rumo ao abismo do mundo. Os cachorros latiam, os bois se irritavam, fungavam hálito morno, cheiroso a palma moída. Remoída, e o fio da baba se esticava, se esticava ao vento. Os meninos levavam gritos do carreiro, para que parassem a folia com os cachorros, pois aquilo assustava, irritava o gado. 

Vô, eu vou fazer uma história em quadrinhos. Poxa que legal! Já criei o primeiro personagem. Ele chama-se Bonnie. Ah é, e que poderes ele tem? Não vô, não se trata de um super-herói. Ele é um garoto, um menino como eu, quase comum. Eu disse quase... É, se não fosse alguns poderes que ele possui. Por exemplo, ele é capaz de ficar verde. Ora, mas todos nós também não ficamos verdes, às vezes? Verdes de raiva, de alguma coisa, que alguém faz contra nós, que não gostamos. Não estou falando de sentido figurado vô. Mas verde de verdade. Mudando a cor da pele. A vantagem nisso é poder se camuflar no mato. Outro poder que ele tem é de ficar invisível. Ah! Quantas vezes já não me senti assim. Às vezes sinto-me sozinho, mesmo rodeado de pessoas. A gente fala, e parece que ninguém nos escuta. É Muito triste sentir isso. Ah! vô, isso aí é solidão. Mas o Bonnie ele consegue entrar em qualquer canto sem ser visto. Não é legal? Você pode aprontar um monte com as pessoas. Ir a cozinha pegar uns bolinhos e vó nem o vê. O Bonnie também consegue voar! Não é massa vô?! Sim, ora voar, nós podemos também, igual ao Bonnie, É só imaginarmos que estamos lá no céu. Lá no alto. Veja, peguemos uma toalha azul, estendamos na instante. Daí deitamos no tapete, e ligamos o ventilador direto no nosso rosto. Não temos a sensação que estamos voando? Verdade vô! Isso é muito legal. 

Dona Boninha, como é mesmo o seu nome? Sabemos, que Boninha trata-se de apelido. Como então a senhora realmente se chama? Meu filho, você nem queira saber. Na verdade não gosto da história do meu nome. Assim a senhora deixa a todos nós, ainda mais curiosos. É isso mesmo, conta dona Boninha! Conta! Pois bem, meus bisavós são do tempo do império. E admiravam um certo comerciante chamado de Bonifácio. Meu avô chamava-se Bonifácio Neto, e meu pai Bonifácio Filho. Virou tradição de família, alguém ter esse nome. Meu pai tinha prometido que seu primeiro filho também teria o nome da linhagem. Só que contrariando a sua vontade, nasci eu, menina. Mas meu pai não se intimidou, e pôs-me o nome de Bonifácia. Só que sempre achei horrível. Sofri muito na escola. Daí minha irmã Libória, teve a excelente idéia de dar-me esse carinhoso apelido de Boninha, que prontamente adotei e todos chamam-me assim, até hoje. 

Boni o papagaio de Libória. Dona Boninha ensinava o papagaio a rezar. E ele sabia o santo ofício, a ladainha a Nossa Senhora, e mesmo cânticos gregorianos que o padre rezava na missa da quermesse. Na capelinha de Nossa Senhora Aparecida, fundada pelo pai de dona Boninha. Na semana santa, ainda de manhãzinha, nem o sol ainda tinha saído e Boni, basta ver dona Boninha com o rosário nas mãos, iniciava a reza junto com ela. O candeeiro ardendo seu fumo negro na parede de taipa. Mais tarde as crianças, invadiriam o terreiro. E rumariam pra casa da professora. Lá perto do Tanque Novo, onde existia um açude grande, onde os homens iam pegar água. Em pipas no carro de boi, em ancoretas nos jumentos. Em potes na cabeça. E lá longe ainda dava pra ouvir o eco das vozes das meninas: “Passarás, passarás/ uma delas a de ficar/ se não for a da frente/ há de ser a de detrás/ De detrás de detrás. Tenho meus filhos pequeninos/ não posso mais demorar/ demorar, demorar.” Os pequenos em fila iam. Tentando passar por um portal mágico que lhes davam acesso a um outro mundo onde existiam muitos Bonnies. Um lugar maravilhoso, onde o sol não apenas brilhava, sorria e dava bom dia! Um lugar em que para alcançar as nuvens bastava estirar as mãos e era como algodão doce. Um lugar onde todos eram felizes. 

Thômas, fez a tarefa escolar, mas acabou esquecendo o desenho do Bonnie em cima da mesa. Lá estava o personagem que muito lembrava um boneco. A cabeça pelada, vestido com roupas de astronauta todo verde. Dona Boninha, desde menina, dentro de uma velha arca mantinha bem guardado o desenho de um patriarca da família Bonifácio de Andrada. Ele aparecia de pé, com belíssimas vestes do período colonial, longas botas, uma majestosa espada. A extensa cabeleira dividida ao meio ia-lhe até os ombros. Só que poucos sabiam, o Bonifácio, assim como o Bonnie, era calvo. Mas a vaidade falando mais alto fazia-o usar peruca, importada da França. 

Um dia, não, um dia qualquer. Um belo dia, lá estava um velho agricultor na roça. A enxada vadiando na erva daninha. O mato roçava com afinco. Tanto que lhes subia as ventas o cheiro de terra, terra úmida revolvida. As brocas que abria no solo, feito feridas abertas. Cheiro de barro, cheiro de minhoca, que ia misturando-se com o cheiro de mato, arrancado. Era cheiro bom. Daí ele teve uma visão. Ao olhar pro céu, bem assim onde o sol estava, ele disse que viu Nossa Senhora Aparecida. Sabia que era ela, por causa da cor do seu rosto, das suas mãos pretinhas, da coroa na cabeça, de seu vestido azul. Ela veio, a santinha, com cara de menina, veio vindo, veio vindo, e parou bem ali assim, no ar. Õ que santa linda! Bem negrinha, com o seu belo vestido azul, a coroa na cabeça! E dela saía como uma fumaça de luz. E a santinha de meu Deus, falou com aquele homem. Falou com Seu Bonifácio Filho. 

Ela, Nossa Senhora Conceição Aparecida, queria fazer um pedido àquele lavrador. Nossa senhora queria que ele fizesse uma capelinha. Podia ser bem simplezinha, não carecia de muito luxo. E na capela colocasse uma sua imagem. E que o homem chamasse o povo daquelas redondezas para rezar na igrejinha, construída em sua homenagem. Tinha que ser bem ali no meio daquele mato. E nem adiantava perguntar por que, no pé daquela serra. Conhecida até hoje, como serra do Bonifácio.

p,s. O desenho que ilustra este Conto foi feito a partir de esboço de um desenho original de Aika, de 6 anos de idade. Neta do autor.