DÊ LÍRIOS...



A montanha de frente, semelhando um cuscuz de espinafre gigante. O entardecer se deitando por baixo de si mesmo, se cobrindo com forro de um azul índigo. Os olhos do sol aos poucos se fechando. Sob pesadas pálpebras de sono. O enfado devagar entrevando as engrenagens do dia. As casas com seus telhados achocolatado. Sobrepunham paredes de arroz doce, em barras de cocada de coco queimado. Os meninos, pobres meninos, tão satisfeitos, voltavam do jogo de bola no campinho, pelado de grama. Arremedando jogadores de verdade. Os meões acima do número que calçavam. Os calções também, uns 5 anos maiores do que vestiam. As bicicletas de aros e raios cantantes estalos. A subirem ladeiras íngremes. De faróis que acendiam com o auxílio de dínamos, na imensa descida da ladeira da serra.

Os campeonatos, tinha deles que ocorriam em campos tão longe da cidade. Ao encerrar o certame, os meninos jogadores, suados, iam comprar cajuína, salame e pães francês. A festejar e se deliciarem com o fim do dia de domingo. Os alçapões de gaiolas que pegavam pequenas aves. Se não tivessem valor como canoras, matavam-nas de petelecos. Assopravam a cabeça pra ver se estavam mortos. A beira do açude Aproveitariam pra fazerem novas balas de barro. Árvores que contavam histórias, histórias de cada vida. Cajueiro, mamoeiros, trapiás, umbuzeiros. As goiabeiras e limoeiros detrás da casa de vó. As goiabas que não deixava pegar no quintal, pois quebrariam galhas, derrubariam muitas folhas. A bicicleta de papo pro ar, com um pneu furado. O menino pedalava, e jogava lama na roupa. Roupa que a mãe iria ralar pra lavar. As bicicletas tinham que ser resistentes, bem como os ciclistas. Aparatados andava com gêneros de socorro mecânico, cola, lixa, pedaço de câmara de ar, bomba de encher pneus. Ao entrar no ínfimo povoado, um dos meninos, achou de perguntar onde ficava o comércio. O velho ficou bravo. Entendeu a indagação como pilhéria. Respondeu com meia dúzia de impropérios. Era domingo de setembro, a noite caiu e foram os meninos jogadores pra missa. Depois iriam assistir ao filme no cine Glória. Se o dinheiro que ganhara do pai não fosse o suficiente para a entrada do cinema, ao invés de colocar, tirava da caixa de coleta da igreja. Na brincadeira da praça, as embalagens das carteiras de cigarro viravam dinheiro de brincadeira. Mais valor teria, quanto mais difícil fosse adquirir mais valiosas. Os brinquedos daqueles tempos eram outros, a vida era outra, as coisas tão diferentes de hoje, parecia pertencer a um outro mundo.

As estatuetas de elefantes ficavam de costa pra porta. Os patos brancos, três biscuits na parede da sala. As maçãs de cera, na fruteira, receberiam mordidas de criança traquinas que achou-as apetitosas. A calminha chegando na criança, a noite. Um terço dedilhado a luz de vela. Nossa Senhora tão bonita, a pele tão límpida, jamais ficaria velha. Serena, a dizer com o coração aberto o quão valiosa seria a oração. Tia Maria tinha câncer. No meio da reza lembrou-se de pedir por ela. Como ia ser quando ela morresse? A sua filha não tinha um pingo de juízo. Dizia, se soubesse que a mãe tinha câncer, ia se matar e mataria também ela. Se alguém lhe pedir rosas. Dê lírios.

Os preás, fruto da caça de ontem, quaravam no arame. Tratados com sal, abertos a faca, da cabeça ao ânus, despelados, os rins de fora. Tinha que se por cuidados, se não, os cassacos viriam no faro, tentar pegar. A neta, chegava cansada, as bochechas vermelhas do sol quente. Tinha uma lição pra responder. O vô dizia pra dobrar as roupas da farda quando chegasse da escola,  ajuntasse os sapatos e as meias, embaixo da cama. O lanche que sobrava, às vezes esquecia de tirar da bolsa. Daí acabava arruinando lá dentro. Os jornais, estes nunca arruinavam, nunca ficavam velhos. As crianças, e suas imensas mochilas as costas. Era tudo o que possuíam de mais valioso. Nada na vida tinha mais valor pra uma criança que seus pertences. O lápis, a borracha, a cola, a lapiseira, o caderno. O livro de tarefas. O inimigo trama, sempre. O inimigo está sempre tramando contra as criaturas de coração reto. De coração puro. Se alguém surtar. Dê lírios.

O menino Thômas, também chegando da escola, disse: Vô, o senhor sabia que podemos fabricar uma bomba caseira? Apenas com material encontrado dentro da própria escola, vô? Não. Não sabia. De onde tirou esta ideia? Um colega viu num livro, de química. As bombas, são feitas de material explosivo. Vô, sabe o que é um explosivo? Não... É tudo capaz de entrar em combustão tão rapidamente,  que provocaria o deslocamento do ar instantaneamente! E isso causa um estrago danado! Ora, vô, um explosivo pode ser conseguido com três componentes básicos: salitre, carbono e enxofre. O salitre vô, é muito fácil de encontrar. Na escola, basta ir no depósito da horta comunitária. Nas aulas de Técnicas agrícolas. O carbono ainda mais fácil conseguir, o grafite da ponta do lápis! O enxofre, encontramos na cabeça do palito de fósforo. É também um dos minerais da aula de pecuária. Como vê vô, é fácil produzir uma bomba!

Os tempos eram outros. Era jovem, estudante do curso de direito na faculdade da Bahia. Enquanto o homem pisava na lua. Aqui na terra, se queria liberdade para consumir drogas. Tempo do viva a paz e não a guerra. Os filhos da elite virando hippes. Os festivais da canção, Woodstock, os Beatles, o iê iê iê, a Bossa Nova. Caetano, Gilberto Gil e Gal Costa iniciavam um movimento chamado Tropicália. Tempo bom de ouvir Paulo Diniz e Tim Maia e Os Mutantes. Início da era de Aquarius. Levar as crianças a Disney World era um sonho de consumo. Domingo no parque Ibirapuera. No Rio praia de Copacabana, Ipanema, Leblon.  Fazer uma tatuagem sobre o amor livre, curtir as praias de nudismo, Saquarema, Angra, Búzios, Cabo Frio. A camiseta pedia a liberação da maconha, tempo de querer ir pra Cuba, Berlim, Copenhagen. Estava na moda os jovens defender o comunismo.. Se era uma Juventude transviada, da calça Lee, do jeans, do viva a revolução, do nylon e do anticoncepcional, do LSD, e do Haxixe, da heroína e do ópio. Dê Lírius.  De viagens sem volta.

As crianças tinham sonhos de voar, e de nascer. De ganhar disquinho de vinil colorido com histórias infantis: Pedro e o Lobo. Tão bem orquestrada, de sacha e o oboé, do vovô medroso. E Pedro tão corajoso. Raul dizendo Pedro aonde você vai eu também vou. Aika pra fazer sua tarefa teria que conseguir três palavras que começassem com a sílaba “va”. Palavras garrafais de velhos jornais: “Viva a Revolução!” não servia, por que o “va” estava no fim da palavra. Tinha que ser no início. “Presidente Vargas visita hospital...” Vargas também não servia. Por que era nome próprio. “Vai um tigre no seu carro?” O vai, na propaganda da Esso, serviu. Mais uma: “Vaticano se manifesta sobre a guerra.” 

Os dias de criança deviam ser para sempre. As ruas com seus ladrilhos de pedras, antiquíssimos levaram chuvas e poeira, a lavarem a alma das avenidas. Até o rio levariam. Pelas sarjetas escoaram as velhas lembranças e as verdades e mentiras que soaram de boca em boca. E os homens que ficaram velhos adoeceram, e morreram de câncer, e de tantas doenças incuráveis. Tramaram nas caladas da noite, nas madrugadas frias traíram suas esposas. E chegaram em casa embriagados. Revoltados com o que souberam a respeito de um político em quem tanto confiara e votara, na eleição passada. Aquele pelo qual tinha alguma consideração e respeito. Atitudes inescrupulosas, para com o amigo, a que muito o considerava, e a quem daria um filho para ser padrinho, e portanto se diziam compadres. Em sua casa o recebeu, e serviu-lhes os melhores pratos, e as melhores bebidas. E por ele fora traído. E marcariam outros encontros que jamais ocorreriam, por que a morte chegaria antes. Os cafés acabariam gelando nas garrafas térmicas. Mesmo assim tomariam com o maior gosto. E acenderiam cigarros que fariam fumaça em torno da lâmpada até se dissiparem. E vieram-lhe pensamentos maus de destruição, de procurar meios para matar o adversário, o inimigo. Sim, porque agora, nisso ele se tornara. Eliminá-lo de sua vida, para sempre.

Naquele tempo não se podia esculhambar com os que estavam no poder, não assim tão abertamente. As crianças eram usadas para dar recados em forma de afagos, de carinho, de poesia, de flores. Usadas, inocentemente. Uma criança foi a casa do candidato levando um embrulho. A polícia foi acionada. Suspeitou-se que podia ser uma bomba. Como o amigo  podia ser tão sórdido a esse ponto? Usar uma criança, uma menina, de apenas seis anos levando um presente pro deputado. Sem saber que se tratava de uma carga explosiva a ser detonada, assim que chegasse as mãos do deputado. Assim que ele abrisse. O serviço secreto foi acionado. As ruas foram interditadas. Ninguém se aproximava da residência do parlamentar. 

De repente, a menina surge, sozinha no meio da rua, com o embrulho na mão. O exército com sua tropa de choque, fechou todas as ruas das proximidades. Atiradores de elite se posicionaram em pontos estratégicos. Na cobertura dos edifícios. Do alto de um prédio a menina era monitorada. As lentes das armas de longo alcance, tinham sua cabeça na mira. Se disparasse o tiro pegaria na nuca. Um homem com roupas especiais do esquadrão anti-bombas se aproxima, pega o embrulho da mão da menina. Perplexa, atônita, indefesa. A menina é resgatada por um fuzileiro que descera de helicóptero no meio da rua.  Ao abrir a caixa o que havia. Um bilhete alguns ramos de lírios, colhidos no jardim da escola. Um lencinho xadrezado, uma frase bordada: “Te amo papai!”. Dê Lírios...

Do Nada...


["Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados." S. Lucas 12,7]

O rádio ligado. Canções caindo dentro do coração. Coisas boas trazendo, pra casa. O mundo, quase sem cor, a melodia tonalizando. Acordes o universo a sincronizar. A casa do sítio tinha calçada alta. Duas irmãs se faziam sentadas a porta. Do nada, uma ficou triste. Sequer pensava em coisa ruim, nem boa. Simplesmente chegou-lhe a tristeza. Chorou muito, um choro desprendido, desgovernado. Isso foi o que lhe salvou, porque se não tivesse chorado, sabe lá Deus o que lhe poderia ter acontecido.

Lembranças de coisas de quando era menina, de quando precisava andar muitas léguas tangendo um burro. Indo levar uma carga de carvão no povoado. Sobrava-lhe tamanha empreitada. Atravessava o riacho seco. Calcando a areia, o barro. Na caieira tinha outros meninos. A carga já estava pronta. Trabalho pesado. E quando dava a dor de veado, colocava entre a calcinha e o ventre, um ramo de melão de São Francisco. Se dava fome, metia-se a comer maturis de umbu e goiaba, quente do sol. Aí era dor de barriga na certa. Travava os dentes. A água do cacimbão, o pano d’água salobra. As aves no céu num perfeito bailado. Perguntava-se por que o mundo fora tão cruel. A fora ter espalhado os irmãos. A irmã mais velha, preguiçosa que só. Ó Deus de Jacó, Deus Isaac e de Abraão, que os unisse, porque o diabo tentava desunir, odiar. Os dias de mágoas, que pensara haver passado. Nem neste, nem no outro mundo, tão cedo se acabaria.

As cabras, e ovelhas, berravam beirando o terreiro de casa. O barro dos tapumes ressequido. Assoprava o vento a doer nos olhos. Disse bem assim: A vó estava boazinha. Do nada, sentiu uma dor, foi parar no hospital. Teve hemorragia interna, vomitou sangue. Foi a sorte, ter vomitado, porque senão, uma hora dessa estaria morta. O seu apocalipse não tinha chegado não dessa vez. Mesmo assim, doravante, preparados estivessem para qualquer eventualidade. Pelas brechas das tampas de madeira, enroladas com tiras de pano. As ancoretas iam cuspindo no lombo do burro. Os meninos foram caçar, com espingarda soca-tempero, e peteca. Nos alforjes farinha de mandioca, rapadura e carne seca. Passavam dias dentro do mato. Só voltava  com boa caça. A moça da janela, com seu jeito de olhar, dizia coisas do tempo passado. A boca vermelha, de tanto chupar umbu com sal. Dali a pouco iria à cata de ovos das galinhas. Varria as capoeiras, o terreiro. Achava estranho o que o mundo um dia ainda ia lhe fazer. Sem perguntar se queria, se podia. Apenas faria.

Uma noite caiu doente, teve febre. Na sala do médico, deitada na maca, ficava olhando quadros, admiradamente, mesmo sem saber o que queriam dizer. Talvez não fosse pra qualquer um, o dom de ver o que diziam os quadros. Doenças são providenciais quando precisam ser. Por conta de uma delas teve que viajar. De olhos bem abertos, aos poucos viu, o único mundo que tinha, ficando pra trás. Foi parar na terra do azul do mar, donde se abriria portas pra descoberta de muitas outras coisas. Lembrava nitidamente dum baile de carnaval. Pela primeira vez, provou bebida alcoólica. O namorado ofereceu lança-perfume. Naquela noite perdeu a virgindade.  E se tudo não passasse de um sonho? A tristeza, a vontade de cortar os pulsos.  Acordou toda suada.

O tio do pai, já fora dono de tantas terras. Muitas mesmo, nem sabia direito o que possuía. Os vizinhos vinham dizer: Seu Pedro uma ruma de retirantes se arranchou lá no baixio da ema, dentro das suas terras. Então dizia: deixe eles, tem nada não. Um quarto dum dia, inteirinho de caminhada, da casa grande até lá. Dias depois os contrataria, para o preparo da lavoura. E assim, foi perdendo terra. Lembrou de quando estavam conversando e o vô disse, estou com tanto sono. Foi fechando os olhos, fechando, e morreu. No dia do enterro, sempre vinha alguém e dizia: mas, ainda ontem estive com ele. Outra comentava: assim quietinho, parece que está dormindo. Um outro: não mudou nada. A vida assim tão volátil, as velas votivas. Os que ficavam se comunicavam passando a mão nos cabelos, encostavam o braço junto a parede, metia o pau a chorar. Esfriava-lhe o couro cabeludo, suando suor gelado.

O céu, a dizer, você está aqui. Quem partiu, partiu. Nada havia a fazer, a não ser dar continuidade ao que ficou. Uma folha não cai da árvore sem que vós permitais, Senhor. Um cabelo não deixará a cabeça sem seu consentimento. Talvez fosse preciso a família se reunir com urgência, forças do mal convergiam pra um único ponto, e isso não era bom. Quando se mexe com dinheiro a conversa e outra. As decisões de alguém tomadas sozinhas podem ser mal interpretadas. Os meninos, alheios a tudo, brincavam e era de todo inocência seus agires, seus pensares. Tomar banho de barreiro, ir pra debaixo da mangueira, correr até a barragem. Não é sensato cobrar sentimentos de quem não os têm, ou não precisa ter em relação a luto de morte.

Ninguém era obrigado a fazer o que não queria. Na encomendação da alma o sacerdote esclareceu muita coisa, o que seria orar, como se devia rezar. A reza não é pra ofender os ouvidos de Deus. Nem pra tentar vencê-lo pelo cansaço. As moças escandalizavam-se de tanto sofrimento. E não queria, mas acabava dizendo coisas absurdas para o que erraram. A mão passando pelo cabelo cada vez mais escasso. O rosto criando sulcos profundos que diziam:  pare de cobrar o que não foi possível. O padre mesmo falou, se você mesmo não deu, porque agora cobra do outro. Isso é hipocrisia.

A casa, a barragem. O menino correndo, o sol quente. A tarde de domingo. O vento soprando onde um dia não haveria mais tia, nem avó, nem vô, nem o pai do pai. E a foto seria o que ia restar, dizendo pra que entendessem que era assim mesmo. O menino que havia um dia. Já se fora e ao mesmo tempo ficara. Como isso era possível? No retrato. A frase desconcertante: você continua o mesmo, não mudou nada. Agora tinha a obrigação de não ter mudado. Dar abraço foi uma concepção de si. Abraçar fortemente foi decisão acertada. A outra irmã que ainda não aprendera a abraçar. Abraçava, mas queria algo em troca. Não era correspondida.

A moça da foto, a irmã mais velha, tinha pernas grossas, pele alvíssima, cabelo escorrido, lábios finos bem pintados. O que será que faltava pra aquele moço se decidir? Talvez não quisesse se decidir. Talvez fosse mais cômodo deixar do jeito que estava. Não a assumia definitivamente, porém visitava-a todo dia. E ficavam por horas nos jardins. Os jardins com sua linguagem própria. Muito mais conteúdo que os ambientes de dentro de casa. Nele repousava as almas das flores, e insetos alados. Os espíritos dos antepassados, feito guardiões. Outro dia a mãe da moça encontrou um senhor estranho, de paletó, sentado nos degraus. Disse perguntando: Ai não está quente? Não é bom sentar num lugar quente. Só não sabia explicar porque não era bom. Apenas dizia por respeito aos mais velhos. A música desenhando coisas muito legais no ar. A tornar a vida mais doce. Mesmo que levasse pra lá atrás. Mesmo que dissesse coisas melancólicas. Só não podia dizer que tudo aquilo era, do nada.

O homem do jardim perguntou por seu irmão. O que já havia morrido. Talvez fosse o próprio. E perguntava só para lhe testar. Mas não estava prestando atenção. Não naquele momento. Foi numa festa de casamento, que algo incrível lhe aconteceu. Resolveu sair pra fumar. Outro fumante se aproximou, e ficaram conversando, conversa fútil, pra fazer fumaça. Depois pensaria: era ele... Meu Deus, como não o reconhecera. Um papo legal, que só ele tinha. Só ele conhecia. Nunca disse ao esposo, com medo de sua reação, de ter uma crise de ciúme. A vida era assim, a gente acendia um palito de fósforo, e do nada...fogo. E fogo aquece, alumia. Mas também, destruidor. 

Queria que Deus livrasse do mal. Dos maus, ninguém consegue ficar livre totalmente. As orações, o fogo queimando o mato. Avançando em direção a casa, o homem apenas olhando sem esboçar a menor reação. As desilusões da vida podem levar as pessoas a cometerem loucura. Ainda que aparentemente não parecesse capaz daquilo. Já tivera momentos de surto, em que se sentia perseguido por seres que não sabia, se desse, ou de outro mundo. Tinha dias que se trancava em casa, e até as brechas da porta tapava com sabão. Do nada, pegou uma estrovenga, e saiu destruindo tudo que via pela frente. Matou a parelha de bois. Matou ovelhas, destruiu a plantação de milho. Queimou a plantação de feijão, tocou fogo no armazém. E foi embora.

As moças sentadas na calçada alta, descascavam laranja. Enchendo o ar do orvalho adocicado, do fruto cítrico. Olhavam a serra. Lá no alto os homens capinavam. e comentavam sobre o dia de serviço. Um olho no serviço, outro nas moças. E tomava água olhando pra lá. As costas suadas, a copa do chapéu de palha, molhada de suor. O rádio, a música trazendo coisas muito legais. Tornando a vida mais doce, ainda que melancólica. Só não dava pra dizer que tudo aquilo era, do nada.



P.S A ilustração: Desenho de Aika [ 6 anos] neta do autor. 
Usou tinta acrílica sobre papel sulfite. Com caneta esferográfica azul, o autor, acrescentou o burrinho e o tangedor.


Sem Chão


O carro ia deslizando na pista, negra, úmida. Deixando para trás fumegante rastro, de gotículas de água, que o vento ia levando vertiginosamente. Enquanto ia fumando pensamentos, de outros tempos. Bois pastando no cercado, não tinham a menor ideia da dor que sentia. Não era dor de doer, era dor de sentir. Estava indo ao sepultamento do pai. Os óculos de ler o mundo ficaram em casa. Agora usava um que deixava triste, sulcos profundos próximo aos olhos. No banco de trás a menina. Brincava de era uma vez. Era uma vez umas nuvens, muitas nuvens, céu azul. Vô quem pintou esse céu? Era uma vez uma árvore, duas árvores, muitas árvores, era uma vez uma serra.  Lá longe, muito longe. Quase não dava pra acreditar.

Um monte de coisas, na cabeça. Muitas nem merecia estar lá, mas estavam. Não sabia por que, mas detalhes de coisas pequenas. O tempo todo o preocupava demais. Não achava normal, o quanto cobrava de si mesmo. De não se perdoar. De querer obter lucro em tudo que fazia. Não entendia por que não dava valor, uma vez ou outra, jogar conversa fora. Olhar o sol nascer. Como pode alguém pensar em tirar lucro disso? A obrigação de ganhar. Tirar proveito de tudo que ia fazer. De não se perdoar, caso falhasse, fosse no que fosse. Ficar uma tarde inteira numa roda de amigos, até anoitecer. O que ganharia com isso? O cair da tarde convidando a todos a ir à padaria. O aroma do café que nem tinha sido feito ainda. A barba de um dia por fazer. Colocar o lixo pra fora. Seria dia de coleta? A conta de luz que não chegara. Será que o talão caiu da caixa de correspondência, e ninguém viu?  O remédio pra gastrite, quase acabando. O leite em pó que comprara, seria marca confiável?

O menino de infância, ia morrendo um pouco a cada dia, toda vez que pensava demasiadamente nessas coisas. Mas a menina não o deixava partir. Segurava-o pela mão, puxava-o pelo braço. Vô, eu queria tomar banho de piscina. Compra uma piscina pra mim, vô? Vô, quando aqui vai ter neve? Queria tanto brincar na neve. Na minha vida toda, nunca brinquei na neve! Tinha só seis, o avô sessenta anos. Ter brincado na neve, nenhum dos dois tinha. Vou desenhar a menina da neve. Não está parecendo uma menina da neve. As meninas da neve precisam ser gordinhas. Por que vô? A gordura mantém-nas aquecidas. Sabe os esquimós? Os índios da terra de papai Noel? Sim. Eles costumam passar óleo de baleia por todo corpo para conseguirem o aquecimento extra. A outra finalidade, é que o odor atrai os ursos que costumam caçar.  

Lavar pratos, ficar cego. Duas realidades tão próximas. Mentalizava as tarefas que teria mais dificuldade de realizar quando um dia viesse a cegueira completa. Imaginou-se fazendo um desenho qualquer de olhos vendados. Pôs uma venda nos olhos. Vô pra que isso? Vamos brincar de cabra cega. Achou estranho, e inquietante, viver num mundo sem luz. Ter que aprender a enxergar, com as mãos.  Não ia sentir muito a falta de dirigir um automóvel. Dirigia, mais por necessidade que prazer. Disso não sentiria muita falta. Do céu, desse sim sentiria muita saudade. Saudade de vê-lo, contemplá-lo. Tocá-lo com as mãos. Também o mar. Verdadeira paixão por aquele bonitão.  O mar quando aquele dia chegasse viria pelo nariz, pelas mãos, pela boca. O céu o envolveria, com seu hálito. Seria doce morrer no mar. Lembrou da última vez que fora a praia, estava com o pai. Caminharam até a água. A água fria, tocando os pés, a areia, entrando entre os dedos, e ao mesmo tempo saindo. Fazendo cócega boa. Caminhava sem nada dizer um ao outro. Não precisava. Ele fez elogios a umas moças que passaram em sumaríssimos biquínis.

Tinha uma música que era sua cara. Lembraria sempre. Toda vez que ia lavar as louças do almoço, lembrava. Era como se aquele pensamento, aquela música, ficassem ali pendurado junto com os panos de prato. Esperando por ele. Fausto e Verônica formavam um belo casal. A imagem dos dois também estava ali, congelada, feito carne no freezer. Tão modestos, tão tranquilos, nasceram um pro outro. E ia pra casa da moça de bicicleta, namorar. E namoravam quase sem dizer nada um pro outro. O dia todo na casa de praia. O pai de Verônica era pescador. Nos finais de semana ficavam juntos. Na segunda-feira de volta a vida. Sempre traziam alguma coisa pra casa: peixe, fruta-pão, lagosta, siri. Carambola, fruta perigosa. Conseguiu comprar uma motocicleta. Só vivia limpando, passava uma flanela vermelha com um pouco de cera. Sentia no ponto cego do olho como que alguém que lhe observava. Dizia: agora mesmo um menino passou pra lá. Rapidamente olhava não via ninguém. Talvez tivesse sido um passarinho. Encasquetou que podia ser espíritos, que já rondava espreitando-o como a morte.

O dia, de morno, passando paulatinamente a quente. Assim seguiu o cortejo. Debaixo do céu nuzinho de nuvem. Enquanto o galegão, astro rei, batendo nos costados, tarefa árdua um cortejo. O suor pingando em cima da própria sombra. Calcularam mal que àquela hora da tarde, o sol estivesse mais brando. O sepultamento do pai. Já algum dia na vida imaginara aquele momento. Porém jamais pensara que chegaria tão de repente. Tudo agora seria comparado entre o antes e o depois, daquele momento tão difícil. Lembrou que era véspera de desfile cívico. A cidade em dia festivo, não dava valor aos mortos. Não precisava ficar cobrando isso, a si mesmo, o tempo inteiro. Iria superar. Só não sabia se ia ser logo ou se ia demorar séculos.

Lá perto da minha rua morava um menino. Algo de especial havia nele. Era um menino. Todos os dias, na ida pro trabalho passávamos um pelo outro. Sempre lá na baixada, do campinho, onde estavam construindo uma passagem molhada. Cumprimentava-o educadamente. Era um menino franzino. Será que saía de casa ao menos com uma xícara de café? Não, não era bem assim. Ele acordava era cinco da manhã, ia treinar no campinho. Às seis tomava banho. Às sete ia comprar pão no mercadinho da entrada da rua do Santuário. Toda vez se benzia bem em frente ao cruzeiro que o padre mandou construir, para marcar a virada do século. Trabalhava de auxiliar de serviços diversos, no mercadinho da entrada do condomínio residencial.

Diziam as más línguas que ele tinha um caso com um professor ,casado. Um triangulo amoroso. O que não estavam mais conseguindo disfarçar. Algo possessivo. O rapaz começou a interessar-se por garotas, na escola. E tinha sonhos pro futuro. Imaginava o dia da formatura, era sonho que dividia com seu pai, um velho agricultor. Criava uma parelha de bois. Toda vez que o professor passava no seu carro, o velho estava na beira da estrada pastoreando os bois que pastavam próximo da escola onde o filho estudava.

Como seria alguém golpear uma pessoa de faca? Uma única facada já não seria um ato de muita crueldade? Imagine repetir tal ato violento por trinta e seis vezes. O professor fora encontrado numa poça de sangue, dentro dum quarto de motel. O advogado, um defensor público, nomeado pelo estado, por não ter condições de pagar um. O promotor de justiça foi enérgico, chamava o menino de criminoso, frio e calculista, e que teria agido com requintes de crueldade, que premeditara ato tão ignóbil. O crime não fora caracterizado como passional, mas de latrocínio, roubo seguido de assassinato. E o réu, um menino, receberia a pena capital. Com ar de inocente, algemado, com um quase sorriso no canto da boca, o garoto posava pro repórter como quem tira foto numa festa de família.

O mês de setembro ficou tristemente molhado, as ruas cheias de lágrimas de final de outono. As meninas nascendo-lhes ainda os peitos, ruborizavam na aula de ciências, que falava de produção hormonal e de seus sexo. A praça era de meninas e meninos brincarem até se cansar. Os doces, suas taxas extras de energia. As bicicletas com seus pneus barulhentos, uma garrafa de plástico entre o pára-lama fazia um barulho engraçado, que acabava trazendo o carnaval, de muitos anos a trás.

A algazarra espantava os pombos, o barulho do ensaio das fanfarras sacudiu à tarde de nuvens vermelhas. Na porta da escola meninos marchariam com suas bandeirolas e fardas caqui. Na cabeça boinas de escoteiros. Na parede da pequena sala de visita, a foto do menino ainda pequeno. A caqueira com uma muda de “Comigo-ninguém-pode”. E não podia mesmo. 

Ilustra este conto um desenho de minha neta Aika Vieira Melo, de 5 anos de idade 12 de setembro de 2018.