Do Nada...


["Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados." S. Lucas 12,7]

O rádio ligado. Canções caindo dentro do coração. Coisas boas trazendo, pra casa. O mundo, quase sem cor, a melodia tonalizando. Acordes o universo a sincronizar. A casa do sítio tinha calçada alta. Duas irmãs se faziam sentadas a porta. Do nada, uma ficou triste. Sequer pensava em coisa ruim, nem boa. Simplesmente chegou-lhe a tristeza. Chorou muito, um choro desprendido, desgovernado. Isso foi o que lhe salvou, porque se não tivesse chorado, sabe lá Deus o que lhe poderia ter acontecido.

Lembranças de coisas de quando era menina, de quando precisava andar muitas léguas tangendo um burro. Indo levar uma carga de carvão no povoado. Sobrava-lhe tamanha empreitada. Atravessava o riacho seco. Calcando a areia, o barro. Na caieira tinha outros meninos. A carga já estava pronta. Trabalho pesado. E quando dava a dor de veado, colocava entre a calcinha e o ventre, um ramo de melão de São Francisco. Se dava fome, metia-se a comer maturis de umbu e goiaba, quente do sol. Aí era dor de barriga na certa. Travava os dentes. A água do cacimbão, o pano d’água salobra. As aves no céu num perfeito bailado. Perguntava-se por que o mundo fora tão cruel. A fora ter espalhado os irmãos. A irmã mais velha, preguiçosa que só. Ó Deus de Jacó, Deus Isaac e de Abraão, que os unisse, porque o diabo tentava desunir, odiar. Os dias de mágoas, que pensara haver passado. Nem neste, nem no outro mundo, tão cedo se acabaria.

As cabras, e ovelhas, berravam beirando o terreiro de casa. O barro dos tapumes ressequido. Assoprava o vento a doer nos olhos. Disse bem assim: A vó estava boazinha. Do nada, sentiu uma dor, foi parar no hospital. Teve hemorragia interna, vomitou sangue. Foi a sorte, ter vomitado, porque senão, uma hora dessa estaria morta. O seu apocalipse não tinha chegado não dessa vez. Mesmo assim, doravante, preparados estivessem para qualquer eventualidade. Pelas brechas das tampas de madeira, enroladas com tiras de pano. As ancoretas iam cuspindo no lombo do burro. Os meninos foram caçar, com espingarda soca-tempero, e peteca. Nos alforjes farinha de mandioca, rapadura e carne seca. Passavam dias dentro do mato. Só voltava  com boa caça. A moça da janela, com seu jeito de olhar, dizia coisas do tempo passado. A boca vermelha, de tanto chupar umbu com sal. Dali a pouco iria à cata de ovos das galinhas. Varria as capoeiras, o terreiro. Achava estranho o que o mundo um dia ainda ia lhe fazer. Sem perguntar se queria, se podia. Apenas faria.

Uma noite caiu doente, teve febre. Na sala do médico, deitada na maca, ficava olhando quadros, admiradamente, mesmo sem saber o que queriam dizer. Talvez não fosse pra qualquer um, o dom de ver o que diziam os quadros. Doenças são providenciais quando precisam ser. Por conta de uma delas teve que viajar. De olhos bem abertos, aos poucos viu, o único mundo que tinha, ficando pra trás. Foi parar na terra do azul do mar, donde se abriria portas pra descoberta de muitas outras coisas. Lembrava nitidamente dum baile de carnaval. Pela primeira vez, provou bebida alcoólica. O namorado ofereceu lança-perfume. Naquela noite perdeu a virgindade.  E se tudo não passasse de um sonho? A tristeza, a vontade de cortar os pulsos.  Acordou toda suada.

O tio do pai, já fora dono de tantas terras. Muitas mesmo, nem sabia direito o que possuía. Os vizinhos vinham dizer: Seu Pedro uma ruma de retirantes se arranchou lá no baixio da ema, dentro das suas terras. Então dizia: deixe eles, tem nada não. Um quarto dum dia, inteirinho de caminhada, da casa grande até lá. Dias depois os contrataria, para o preparo da lavoura. E assim, foi perdendo terra. Lembrou de quando estavam conversando e o vô disse, estou com tanto sono. Foi fechando os olhos, fechando, e morreu. No dia do enterro, sempre vinha alguém e dizia: mas, ainda ontem estive com ele. Outra comentava: assim quietinho, parece que está dormindo. Um outro: não mudou nada. A vida assim tão volátil, as velas votivas. Os que ficavam se comunicavam passando a mão nos cabelos, encostavam o braço junto a parede, metia o pau a chorar. Esfriava-lhe o couro cabeludo, suando suor gelado.

O céu, a dizer, você está aqui. Quem partiu, partiu. Nada havia a fazer, a não ser dar continuidade ao que ficou. Uma folha não cai da árvore sem que vós permitais, Senhor. Um cabelo não deixará a cabeça sem seu consentimento. Talvez fosse preciso a família se reunir com urgência, forças do mal convergiam pra um único ponto, e isso não era bom. Quando se mexe com dinheiro a conversa e outra. As decisões de alguém tomadas sozinhas podem ser mal interpretadas. Os meninos, alheios a tudo, brincavam e era de todo inocência seus agires, seus pensares. Tomar banho de barreiro, ir pra debaixo da mangueira, correr até a barragem. Não é sensato cobrar sentimentos de quem não os têm, ou não precisa ter em relação a luto de morte.

Ninguém era obrigado a fazer o que não queria. Na encomendação da alma o sacerdote esclareceu muita coisa, o que seria orar, como se devia rezar. A reza não é pra ofender os ouvidos de Deus. Nem pra tentar vencê-lo pelo cansaço. As moças escandalizavam-se de tanto sofrimento. E não queria, mas acabava dizendo coisas absurdas para o que erraram. A mão passando pelo cabelo cada vez mais escasso. O rosto criando sulcos profundos que diziam:  pare de cobrar o que não foi possível. O padre mesmo falou, se você mesmo não deu, porque agora cobra do outro. Isso é hipocrisia.

A casa, a barragem. O menino correndo, o sol quente. A tarde de domingo. O vento soprando onde um dia não haveria mais tia, nem avó, nem vô, nem o pai do pai. E a foto seria o que ia restar, dizendo pra que entendessem que era assim mesmo. O menino que havia um dia. Já se fora e ao mesmo tempo ficara. Como isso era possível? No retrato. A frase desconcertante: você continua o mesmo, não mudou nada. Agora tinha a obrigação de não ter mudado. Dar abraço foi uma concepção de si. Abraçar fortemente foi decisão acertada. A outra irmã que ainda não aprendera a abraçar. Abraçava, mas queria algo em troca. Não era correspondida.

A moça da foto, a irmã mais velha, tinha pernas grossas, pele alvíssima, cabelo escorrido, lábios finos bem pintados. O que será que faltava pra aquele moço se decidir? Talvez não quisesse se decidir. Talvez fosse mais cômodo deixar do jeito que estava. Não a assumia definitivamente, porém visitava-a todo dia. E ficavam por horas nos jardins. Os jardins com sua linguagem própria. Muito mais conteúdo que os ambientes de dentro de casa. Nele repousava as almas das flores, e insetos alados. Os espíritos dos antepassados, feito guardiões. Outro dia a mãe da moça encontrou um senhor estranho, de paletó, sentado nos degraus. Disse perguntando: Ai não está quente? Não é bom sentar num lugar quente. Só não sabia explicar porque não era bom. Apenas dizia por respeito aos mais velhos. A música desenhando coisas muito legais no ar. A tornar a vida mais doce. Mesmo que levasse pra lá atrás. Mesmo que dissesse coisas melancólicas. Só não podia dizer que tudo aquilo era, do nada.

O homem do jardim perguntou por seu irmão. O que já havia morrido. Talvez fosse o próprio. E perguntava só para lhe testar. Mas não estava prestando atenção. Não naquele momento. Foi numa festa de casamento, que algo incrível lhe aconteceu. Resolveu sair pra fumar. Outro fumante se aproximou, e ficaram conversando, conversa fútil, pra fazer fumaça. Depois pensaria: era ele... Meu Deus, como não o reconhecera. Um papo legal, que só ele tinha. Só ele conhecia. Nunca disse ao esposo, com medo de sua reação, de ter uma crise de ciúme. A vida era assim, a gente acendia um palito de fósforo, e do nada...fogo. E fogo aquece, alumia. Mas também, destruidor. 

Queria que Deus livrasse do mal. Dos maus, ninguém consegue ficar livre totalmente. As orações, o fogo queimando o mato. Avançando em direção a casa, o homem apenas olhando sem esboçar a menor reação. As desilusões da vida podem levar as pessoas a cometerem loucura. Ainda que aparentemente não parecesse capaz daquilo. Já tivera momentos de surto, em que se sentia perseguido por seres que não sabia, se desse, ou de outro mundo. Tinha dias que se trancava em casa, e até as brechas da porta tapava com sabão. Do nada, pegou uma estrovenga, e saiu destruindo tudo que via pela frente. Matou a parelha de bois. Matou ovelhas, destruiu a plantação de milho. Queimou a plantação de feijão, tocou fogo no armazém. E foi embora.

As moças sentadas na calçada alta, descascavam laranja. Enchendo o ar do orvalho adocicado, do fruto cítrico. Olhavam a serra. Lá no alto os homens capinavam. e comentavam sobre o dia de serviço. Um olho no serviço, outro nas moças. E tomava água olhando pra lá. As costas suadas, a copa do chapéu de palha, molhada de suor. O rádio, a música trazendo coisas muito legais. Tornando a vida mais doce, ainda que melancólica. Só não dava pra dizer que tudo aquilo era, do nada.



P.S A ilustração: Desenho de Aika [ 6 anos] neta do autor. 
Usou tinta acrílica sobre papel sulfite. Com caneta esferográfica azul, o autor, acrescentou o burrinho e o tangedor.


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