O carro ia deslizando na pista,
negra, úmida. Deixando para trás fumegante rastro, de gotículas de água, que o
vento ia levando vertiginosamente. Enquanto ia fumando pensamentos, de outros
tempos. Bois pastando no cercado, não tinham a menor ideia da dor que sentia.
Não era dor de doer, era dor de sentir. Estava indo ao sepultamento do pai. Os óculos
de ler o mundo ficaram em casa. Agora usava um que deixava triste, sulcos profundos
próximo aos olhos. No banco de trás a menina. Brincava de era uma vez. Era uma
vez umas nuvens, muitas nuvens, céu azul. Vô quem pintou esse céu? Era uma vez
uma árvore, duas árvores, muitas árvores, era uma vez uma serra. Lá longe, muito longe. Quase não dava pra
acreditar.
Um monte de coisas, na cabeça.
Muitas nem merecia estar lá, mas estavam. Não sabia por que, mas detalhes de
coisas pequenas. O tempo todo o preocupava demais. Não achava normal, o quanto
cobrava de si mesmo. De não se perdoar. De querer obter lucro em tudo que
fazia. Não entendia por que não dava valor, uma vez ou outra, jogar conversa
fora. Olhar o sol nascer. Como pode alguém pensar em tirar lucro disso? A
obrigação de ganhar. Tirar proveito de tudo que ia fazer. De não se perdoar,
caso falhasse, fosse no que fosse. Ficar uma tarde inteira numa roda de amigos,
até anoitecer. O que ganharia com isso? O cair da tarde convidando a todos a ir
à padaria. O aroma do café que nem tinha sido feito ainda. A barba de um dia
por fazer. Colocar o lixo pra fora. Seria dia de coleta? A conta de luz que não
chegara. Será que o talão caiu da caixa de correspondência, e ninguém viu? O remédio pra gastrite, quase acabando. O
leite em pó que comprara, seria marca confiável?
O menino de infância, ia morrendo um pouco a cada dia, toda vez que pensava demasiadamente nessas coisas. Mas a
menina não o deixava partir. Segurava-o pela mão, puxava-o pelo braço. Vô, eu
queria tomar banho de piscina. Compra uma piscina pra mim, vô? Vô, quando aqui
vai ter neve? Queria tanto brincar na neve. Na minha vida toda, nunca brinquei
na neve! Tinha só seis, o avô sessenta anos. Ter brincado na neve, nenhum dos dois
tinha. Vou desenhar a menina da neve. Não está parecendo uma menina da neve. As
meninas da neve precisam ser gordinhas. Por que vô? A gordura mantém-nas
aquecidas. Sabe os esquimós? Os índios da terra de papai Noel? Sim. Eles costumam
passar óleo de baleia por todo corpo para conseguirem o aquecimento extra. A
outra finalidade, é que o odor atrai os ursos que costumam caçar.
Lavar pratos, ficar cego. Duas
realidades tão próximas. Mentalizava as tarefas que teria mais dificuldade de
realizar quando um dia viesse a cegueira completa. Imaginou-se fazendo um
desenho qualquer de olhos vendados. Pôs uma venda nos olhos. Vô pra que isso?
Vamos brincar de cabra cega. Achou estranho, e inquietante, viver num mundo sem
luz. Ter que aprender a enxergar, com as mãos. Não ia sentir muito a falta de dirigir um
automóvel. Dirigia, mais por necessidade que prazer. Disso não sentiria muita
falta. Do céu, desse sim sentiria muita saudade. Saudade de vê-lo, contemplá-lo.
Tocá-lo com as mãos. Também o mar. Verdadeira paixão por aquele bonitão. O mar quando aquele dia chegasse viria pelo
nariz, pelas mãos, pela boca. O céu o envolveria, com seu hálito. Seria doce
morrer no mar. Lembrou da última vez que fora a praia, estava com o pai. Caminharam
até a água. A água fria, tocando os pés, a areia, entrando entre os dedos, e ao
mesmo tempo saindo. Fazendo cócega boa. Caminhava sem nada dizer um ao outro.
Não precisava. Ele fez elogios a umas moças que passaram em sumaríssimos
biquínis.
Tinha uma música que era sua
cara. Lembraria sempre. Toda vez que ia lavar as louças do almoço, lembrava.
Era como se aquele pensamento, aquela música, ficassem ali pendurado junto com
os panos de prato. Esperando por ele. Fausto e Verônica formavam um belo casal.
A imagem dos dois também estava ali, congelada, feito carne no freezer. Tão
modestos, tão tranquilos, nasceram um pro outro. E ia pra casa da moça de
bicicleta, namorar. E namoravam quase sem dizer nada um pro outro. O dia todo
na casa de praia. O pai de Verônica era pescador. Nos finais de semana ficavam juntos.
Na segunda-feira de volta a vida. Sempre traziam alguma coisa pra casa: peixe,
fruta-pão, lagosta, siri. Carambola, fruta perigosa. Conseguiu comprar uma
motocicleta. Só vivia limpando, passava uma flanela vermelha com um pouco de
cera. Sentia no ponto cego do olho como que alguém que lhe observava.
Dizia: agora mesmo um menino passou pra lá. Rapidamente olhava não via ninguém.
Talvez tivesse sido um passarinho. Encasquetou que podia ser espíritos, que já rondava espreitando-o como a morte.
O dia, de morno, passando
paulatinamente a quente. Assim seguiu o cortejo. Debaixo do céu nuzinho de nuvem. Enquanto o galegão, astro rei, batendo nos costados, tarefa árdua um cortejo. O suor
pingando em cima da própria sombra. Calcularam mal que àquela hora da tarde, o
sol estivesse mais brando. O sepultamento do pai. Já algum dia na vida
imaginara aquele momento. Porém jamais pensara que chegaria tão de repente. Tudo
agora seria comparado entre o antes e o depois, daquele momento tão difícil.
Lembrou que era véspera de desfile cívico. A cidade em dia festivo, não dava valor aos mortos. Não precisava ficar cobrando isso, a si mesmo, o tempo
inteiro. Iria superar. Só não sabia se ia ser logo ou se ia demorar séculos.
Lá perto da minha rua morava um
menino. Algo de especial havia nele. Era um menino. Todos os dias, na ida pro
trabalho passávamos um pelo outro. Sempre lá na baixada, do campinho, onde
estavam construindo uma passagem molhada. Cumprimentava-o educadamente. Era um
menino franzino. Será que saía de casa ao menos com uma xícara de café? Não,
não era bem assim. Ele acordava era cinco da manhã, ia treinar no campinho. Às
seis tomava banho. Às sete ia comprar pão no mercadinho da entrada da rua do
Santuário. Toda vez se benzia bem em frente ao cruzeiro que o padre mandou
construir, para marcar a virada do século. Trabalhava de auxiliar de serviços
diversos, no mercadinho da entrada do condomínio residencial.
Diziam as más línguas que ele
tinha um caso com um professor ,casado. Um triangulo amoroso. O que não estavam
mais conseguindo disfarçar. Algo possessivo. O rapaz começou a interessar-se
por garotas, na escola. E tinha sonhos pro futuro. Imaginava o dia da formatura, era sonho que dividia com seu pai, um velho agricultor. Criava uma parelha de
bois. Toda vez que o professor passava no seu carro, o velho estava na beira da
estrada pastoreando os bois que pastavam próximo da escola onde o filho estudava.
Como seria alguém golpear uma pessoa
de faca? Uma única facada já não seria um ato de muita crueldade? Imagine repetir
tal ato violento por trinta e seis vezes. O professor fora encontrado numa poça
de sangue, dentro dum quarto de motel. O advogado, um
defensor público, nomeado pelo estado, por não ter condições de
pagar um. O promotor de justiça foi enérgico, chamava o menino de criminoso,
frio e calculista, e que teria agido com requintes de crueldade, que premeditara
ato tão ignóbil. O crime não fora caracterizado como passional, mas de
latrocínio, roubo seguido de assassinato. E o réu, um menino, receberia a pena capital. Com ar de
inocente, algemado, com um quase sorriso no canto da boca, o garoto posava pro
repórter como quem tira foto numa festa de família.
O mês de setembro ficou tristemente
molhado, as ruas cheias de lágrimas de final de outono. As meninas nascendo-lhes
ainda os peitos, ruborizavam na aula de ciências, que falava de produção
hormonal e de seus sexo. A praça era de meninas e meninos
brincarem até se cansar. Os doces, suas taxas extras de energia. As bicicletas com
seus pneus barulhentos, uma garrafa de plástico entre o pára-lama fazia um
barulho engraçado, que acabava trazendo o carnaval, de muitos anos a trás.
A algazarra espantava os pombos,
o barulho do ensaio das fanfarras sacudiu à tarde de nuvens vermelhas. Na porta
da escola meninos marchariam com suas bandeirolas e fardas caqui. Na cabeça
boinas de escoteiros. Na parede
da pequena sala de visita, a foto do menino ainda pequeno. A caqueira com uma muda de “Comigo-ninguém-pode”. E
não podia mesmo.
Ilustra este conto um desenho de minha neta Aika Vieira Melo, de 5 anos de idade 12 de setembro de 2018.
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