A Oração


O Menino
Já ia alta a noite. Hora de se recolher.   Thômas veio, pediu-me a benção. E tinha outro pedido: Vô, o senhor me ajuda a rezar? Ali, de pé, ao meu lado, o menino e o pedido. Comoveu-me ambos. O céu, aquele que estava bem ali em cima, esse que conseguimos ver, cintilou. As estrelas todas, por instante, talvez tenham brilhado mais intensamente. O outro céu, aquele que não vemos, jubilou-se. A cima das nuvens, numa dimensão que não nos é acessível, com seus palácios e cortes celestiais. Em coro festejaram, regozijaram. Os que lá habitavam começaram a conversar alegremente, como se movidos por euforia momentânea. Os que se haviam do outro lado, ao ouvirem o que dissera o menino alegraram-se também mas não demonstraram. Na cozinha, uns anjos encostados na beira do fogo, depois disso espertaram. Passou o sono. Ouviu? O que? Alguém falou: Hosana!

O Homem
O homem veio chegando, olhando devagar, feito uma onça no meio do mato. Avaliando os que estavam lá. A fila, ia de um poste a outro da rua. Rua ensanguentada de sol. Eram oito da matina, parecia meio dia. Cansados de esperar [estavam lá desde as seis] alguns sentaram a calçada. Numa nesga de sombra murcha, tímida, feita das fachadas das casas, toscamente desenhavam figuras no chão ladeirado. Escorregavam lentamente pra junto dos rodapés com preguiça de ser sombra. Havia muitos tipos de mães, e pais de famílias, alguns poucos jovens. Mães de rostos luzidios, seios fartos, ventres volumosos, roupas de estampas coloridas, Homens franzinos, descarnados, descorados, ossudos, suados. Moças de sorrisos falhados, sem os dentes mais importantes. Rapazes esguios, tatuados nos deltas, chinelas de dedo, bermudas taquitel, camisas regata, bonés de time de futebol, cabelo de cortes estilizados. Os destinos de todos, a só tempo, idênticos, diferentes. Fila pra conseguir uma ficha, para atendimento médico no posto de saúde. O homem trazia um guarda chuva, longo, preto, pontudo, enganchado na gola da camisa, que descia pelas costas. Na mão, o cartão nacional de saúde, legitimamente o detinha. Havia no olhar, um quê de aflição. Tinha pressa. Impossível ter que esperar tanto! Não podia se demorar. A esposa, deixara doente, em casa. Sozinha, em cima duma cama. Dos que estavam na fila, um disse: Ave Maria!

A Mulher  
A mulher, aparentava ser mais velha do que era. Trinta e poucos anos. O lenço amarrado na cabeça realçava-lhes os sulcos da testa, as rugas. E disse bem assim: Eu vivo no escuro. Referia-se a escuridão da noite. Solidão que o ventre do mundo sente quando vira as costas pro astro rei. A noite mal caía, acendia o candeeiro. As cores iam tudo dormir. Se enrolavam todinhas debaixo dos lençóis. O gato em cima da pia, lambendo o papeiro de fundo preto, queimado. Aproveitava o resto  - duma papa - a ração da lactante. As sombras, muito mais volumosas que seus donos. Gordas, vorazmente iam engolindo os pedaços de parede de taipa, botando no ventre parca mobília. Uma mesa, uns tamboretes Umas sacas de feijão, outras de milho num canto. Grãos de feijão, caroços de milho, no chão. Para a mulher, dois eram os tipos de escuridão. A escuridão da noite, enquanto o candeeiro tivesse querosene pra queimar, livres estariam dessa. A escuridão das vistas. Meu pai, minha vó paterna morreram cegos. Deve ser triste ficar sem enxergar a luz do mundo. Para sempre o mundo apagado. O manto de Nossa Senhora não mais veria. Agora só na vida eterna. E a escuridão da alma? Não lembrava. Lembrava de Vera de Zefinha, sua prima. Depois que o marido morreu, ficou numa tristeza tão grande que dava pra ver no fundo dos seus olhos sua alma na escuridão. Desse dia em diante,  nada comia, nem água bebia, não falava mais com ninguém. Foi afinando, afinando. Durou só doze dias. A mulher fez o Sinal da Cruz.

O Rapaz
O rádio ligado, a dizer solenes notícias de dias anteriores. Resultado das eleições presidenciais, a extrema direita subira ao poder. O clima altamente quente, a temperatura baixamente temperada, a umidade relativa do ar, relativamente árida. O corpo de um rapaz, com sinais de espancamento, havia sido encontrado a margem da estrada de barro, ao lado de uma moto abandonada. O chefe da polícia fez averiguações. Quem o delegado chamaria pra depor? Talvez intimasse aquele céu esverdeado da cor das folhas da baraúna? Ou quem sabe aquela linda folhagem amarela da craibeira? Aquele azulado céu de domingo, muito provável queira servir de testemunha! Ou àqueles capuchos brancos, de nuvens veranescas. Não há de negar aquele era um céu interruptamente brasileiro. Nos trajes, no trágico acontecimento, no vislumbre das cores. No velório: No primeiro mistério vamos contemplar A Agonia de Jesus no Horto das Oliveiras!

O Negro, a Negra
Negro não é gente! Branco também não. São cores. Tia Maria não conseguia mais engolir os comprimidos inteiro. Era preciso machucar num pires, com uma colher, e fazer uma garapa com um pouco d’água. Só assim conseguia. As filhas deram pra brigar. Será que todos os irmãos do mundo brigam? Em especial quando as mães mais precisam deles? Gilda e Jane na verdade nunca se deram. A gente era que nunca prestara atenção. É desde pequenas que elas são assim. Agora, depois de velhas. A mãe doente deram pra esculhambar uma com a outra. A palavra mais bonita que uma diz com a outra é cachorra. E por aí vai. O carro vencendo a distância. Viajar a noite é perigoso. A estrada. O caminhão que vinha cegava sem cortar a luz. Um cachorro? Ou seria um cassaco? Se atrevendo atravessar a pista. Perigo iminente. Os livros que engoliam feriados prolongados. Engolia paciência. Engolia vistas ruim. Negro não é gente. Negra é a noite. Antes de sair de casa, reze um Pai Nosso.

O Filho
O cigarro aceso parecia não incomodar, mas incomodava. Fazia uma concha com a mão para escondê-lo. A saudade tudo suporta. Barba por fazer, já se acostumara com esse visual desleixado. O cabelo por cortar, o cavanhaque. O descuido com a aparência. E a saúde? Como estaria? Quando se encontravam sempre perguntava as mesmas coisas. Como estava? Chove por lá? E os serviços, sempre aparecem? O carro? Não dera mais problemas? Tinha tempo pra compor? Recebera todas mensagens que lhes enviara? Por que não respondia? Onde ia passar o natal? E ano novo? Uma barata doida invadiu o ar. Se interpor num momento tão solene, entre pai, mãe e filho que a muito não se viam. Pediu pra ser assassinada. O pensamento foi lá pra baixo, rente ao piso esmagado, junto aos restos mortais do pobre inseto fêmea. Talvez tivesse prometido não matar mais nenhum animal? Deve ter algum nome especial tal filosofia, de não matar nenhum ser vivo. Parece que os chineses, que nada matam? Nem uma formiga? Só humanos. Nossa Mãe!

A Oração

Vô? Por que temos que rezar? Lá vinha Thômas com mais uma perguntas desconcertante. Já deitado, coberto até a altura do peito, virado pro outro lado. Nada fácil responder. Nada fácil ser avô. Não fora fácil viver até ali. E ir pra fila de um posto de saúde, às sete da manhã. Não era fácil ter uma filosofia de vida. Lembrou que no umbral da porta, de tia Maria havia uma Nossa Senhora nordestina, uma Sagrada Família barroca, um panfleto avisando que haveria reunião bíblica. Àquela altura já passara. 

É pra gente conversar com Deus, Thômas. Alguns usam essa conversa, e aproveita pra pedir alguma coisa, outros simplesmente agradecem. Thômas? Está me ouvindo? Silêncio. Adormecera. Acho que olhar para o céu, já seria uma oração. Isso parece tão bonito. Meu Deus. Seria assim mesmo?

?...

A Bailarina [The Clock]




Uma menina, de patins, rodopiava na plataforma da estação rodoviária. Não estava lá pra viajar. Se apresentava, tentando ganhar algum trocado. Com bambolês, chapéus, bolas, fazia malabares. A passarela, escaldada de sol daqueles dias, seu palco. Transeuntes, passageiros e ambulantes, sua platéia. O vapor da tarde quente a cortina, o pano de fundo, do seu espetáculo. Devagar, como em câmara lenta, o show circense findo. De baixo do imponente teto de ligas metálicas e fibra de vidro em parábola. Aplausos vinham voando, das asas dos pombos que perfuravam incólumes o crepúsculo.
Em breve o mundo apagaria sua luz, os postes acenderiam as suas. Todos aguardavam aquele momento mágico. Momento exato, em que o dia, nem fica azul intenso, nem escuro negro. Ia devargamente ficando, um pouco lilás, um pouco rosáceo. Quase violáceo, para os lados que o rei se recolhe aos seus aposentos. E depois morrer. Quem mente rouba. A frase caiu de cima de um pé de fícus, morta. Ficou lá ressecada, dobrada sobre si mesma, no chão. Veio o vento e a levou para longe. Muito longe, pra terra onde tudo tornar-se-ia pó, e acabaria caindo no esquecimento.

A mãe que era vó, e também bisavó, pediu a benção. O pai que era vô, e também filho abençoou pediu de volta. O silêncio, em stand by, desligado. O som do mundo, em sua louca sinfonia, psicodélica. Inescrupulosamente, sem limites, a ninguém obedecia. Não respeitava os mais velhos, transgredia barreiras, infringia leis. Nada o impedia de ir onde bem quisesse. Som dos pássaros, das vozes humanas, dos motores dos carros, aceleração, freadas, buzinas, músicas de alto-falantes. Transpunham muros, fachadas, portas, janelas, frestas das telhas, das casas. Nada o intimidava, nem polícia, nem governos esquerdistas disfarçados de direita que pretendesse tomar o poder. A luz vermelha olhando infinitamente. O padre dissera umas verdades, cristalinas, como água, pelas ondas do rádio disse. Na verdade vivia adormecida dentro da gente, aí vinha alguém e acordava. As máquinas cumprindo suas funções em fim, de medir o tempo, minuto a minuto, mensurar a temperatura, obediente a construir palavras a cada teclada, a bombear combustível pro tanque do automóvel, bombear o sangue pro corpo, taxar, registrar, sair, cuspir, fumaça. Uma mentira dita muitas vezes vira verdade. As letrinhas correram ligeiras pelo luminoso out door. Conveniências, tudo era conveniências.

A mãe deitada, toda enrolada no cobertor. Descobriu a cabeça. Perguntou que horas era. Dez. Da noite? Não, da manhã. Suspirou, decepcionada. Misto de incrédula. Queria estar em sua casa. Não gostava da casa dos outros. Mas a senhora está em casa. Não concordava. Minha casa fica longe daqui. E tem paredes de taipa. Minha mãe foi pra roça. Saiu cedo. Tenho medo quando ela demora. Vou-me embora pra minha casa! Só era o que faltava Manuel Bandeira vindo parar dentro do quarto de mamãe. Passárgada agora, era no Pedrão, Casteado era o amigo do rei. Se não o próprio. O Gavião sua insígnia. Batista o primo, amigo de confiança, prometera que iria visitá-la. O Capim com suas próprias leis. Querosene ‘Jacaré’ não queima cheirando a comunismo, farinha de mandioca não tem gosto de bolsa do governo, cassáco não quer dinheiro sujo, gosta mesmo é de galinha. Automóvel é bicho que ronca, tem os pés de borracha, vai devorar estrada. 
     
O menino, humilde, solícito. Acompanhava o desenrolar das coisas. Feito fiel escudeiro, seguia a menina da bicicleta, andando rápido, para não ficar pra trás. Conversava coisas que menino conversa com menina. Todo pabuloso, dizendo que se quisesse um dia, viraria super-herói,  daqueles que voam, e tinha outros super-poderes. Ainda não era hora de contar. Se quisesse teria uma bicicleta. Minha bicicleta vai ter muitas marchas, e pedais pretos, e selim de couro, e guidões cromados, e uma campainha que faz trim-trim. A menina desconversava. Você sabe falar inglês? Nem esperava a resposta emendava, que estava aprendendo xadrez. Estudaria, ela e a prima Luana, música e teatro. Iriam apresentar na escola o auto de natal.

A ordem era pra prender. Os soldados fielmente cumpririam. Naquele fim de mundo, os dizeres da bandeira do Brasil ‘Progresso’ era empresa de ônibus. Já a ‘Ordem’, era mantida na base do cassetete, na botinada de coturno.  Os ‘Praça’ invadiam casas, batiam em pessoas, se não dissesse o que eles queriam ouvir, espancavam. E se dissesse, apanhariam mesmo assim, justamente porque diziam. O cassetete até apelido tinha, “Mané gostoso”. Padre Cícero dizia que haveria um tempo que os homens iam querer ser maior que Deus. Feijão, ia ser engarrafado. As pessoas iam andar na rua falando sozinho. A besta-fera haveria de estar no meio do povo, e ninguém ia se escandalizar com isso. Os sinais levavam a isso.

O filho teve um sonho assim. Estava todos sentados a mesa. Toda a família. O pai, a mãe, os irmãos, almoçavam tranquilamente. O som que se ouvia era dos talheres chocando-se nos pratos de louça, raspando panela. Alguém bateu a porta. Todos se olharam. A visita, talvez, não fosse bem vinda, quem sabe. O irmão mais novo foi ver quem era. Abriu a porta, levantou os olhinhos assustados. Os soldados afastaram-no do caminho. Na cozinha pegou o irmão do meio pelos braços. Aos gritos inutilmente pedia que o deixasse em paz. O pai, impotente, resignado, sem nada poder fazer. Perguntar não adiantava. Foi preso.

O menino, se quer lembrava do quão exímio atirador com estilingue era, e que com maestria subia no pé de fícus, rápido como um foguete escalava o lombo de um jumento. Gostava de brincar com minhocas, besouros, lagartixas, pererecas. E como sabia pescar. Outro dia inventou de empinar uma pipa, uma aventura e tanto. Acabou que ficou presa no alto da craibeira ao lado da cadeia. O muro do cemitério estava destruído, entrava e saía quem quisesse. A mula aproveitou pra comer capim nos cantos das catacumbas, um mendigo abrigara-se na capelinha dum túmulo. Dois anjos encostados nas lápides cochilavam cansados de noites insones. Alguns finados saíram a passear. Um homem de terno preto, chapéu preto, luvas pretas, bigode e óculos pretos, de pele escura, ficou parado só olhando.

O homem negro, trajado com esmero, disse: O capitão chegara ao poder. Ao contrário do que muitos pensam. Choro e ranger de dentes, não será tudo. Os que precisam dizer, nada dirão. Os que precisam ouvir nada ouvirão. Os que precisa ser, nada serão. Os que gostariam de ver, nada verão. Por enquanto tudo é verão. O sol os cegará. Tentarão se aproximar, mas serão repelidos. Água tornar-se-á algo mais caro que combustível dos carros. Alimentos irão desaparecer das prateleiras dos mercados. As mercearias irão pro subterrâneos. E os únicos mantimentos que muitos vão querer e não encontrarão sal, fósforo, e vela, produtos raros. Será criado o imposto do ar que se respira.

Todo esse rodeio pra concluir a história da menina. Foi assim. Certa noite, de um dia qualquer do final da década de oitenta. Uma mulher chegou à estação rodoviária, lá da cidade, do interior do sertão. Trazia consigo uma bolsa, uma mala de rodinhas. E uma menina, dos seus quatro, cinco anos, que dormia em seus braços. Era meia noite e vinte minutos. Quem disse isso foi o relógio redondo, mais parecia uma lua amarelada, pregado na torre da velha banca de revista, fechada. Dez anos se passara desde que fora colocado lá. E sempre a dizer minuto a minuto, hora a hora, sem se cansar, sem falhar, sem adiantar, sem atrasar. A lanchonete fechada, os guichês de compra de passagem idem. As únicas coisas funcionando ali, àquela hora era, o vigilante noturno, o relógio, e um funcionário do correio que aguardava o último ônibus que passaria de madrugada. 
A mulher aproximou-se do rapaz do malote e perguntou: moço você quer essa menina pro senhor? Assustado disse que não. O vigilante, que era casado e não tinha filhos, ouvindo a conversa perguntou incrédulo: a senhora quer dar essa menina? Isso mesmo, vou pra capital, ganhar a vida num bordel. Não tenho como levá-la. Aturdido o vigia pediu-lhe um instante. Correndo foi consultar a esposa, pois morava ali perto. Cansado da carreira que dera chegou dizendo que a patroa aceitava ficar com a menina.

Hoje. É carinhosamente chamada de ‘Bela’ pelos amigos. Isabela tem vinte anos, formada em Educação Física, vive de acrobacia. Na vida, na academia, na rodoviária.

[a dizer minuto a minuto, hora a hora, sem se cansar, sem falhar, sem adiantar, sem atrasar, O relógio continua lá. Agora com 40 anos idade.]  

12h20m.

DEBAIXO DOS PÉS



A folhinha do Sagrado Coração de Jesus. O calendário pregado na parede, definhando, emagrecendo. Mais um ano se [esva]indo. A velha casa, em breve cobraria decoração natalina. A lapinha, os reis magos de novo sairiam da velha caixa de sapato. Serenos empreenderiam jornada, rumo à gruta de Belém, logo ali, na sala. Velhos meninos, outra vez, ririam de seus enormes narizes nos reflexos das bolas coloridas. Alegre fustão. Aguerrida guirlanda. O sino que jamais badalara. O repicar, porém, a muito havia dentro das cabeças decorada com a imagem do bom velhinho. Apesar do tempo, nunca envelhecera. A despeito de tantos anos, jamais adoecera. Não que eles soubessem.

As crianças, e as tarefas escolares. O dia, pela noite se encolhia. O dia, pelo dia se esticava. O sol com sua carruagem de fogo. Danado de demorado pra passar. Lentamente traçando seu rumo no firmamento. As andorinhas em revoada festejando a vida, muito para além da vidraça. As roupas no varal, retesadas de cores. Esturricadas, desmaiadas de tão desidratadas. O cansaço disputando cabo de guerra com a obrigação, e a preguiça. Os mais velhos arrastando, debaixo dos pés e da língua o peso dos, pesados, benditos ditos populares. Ainda assim, foi triste, muito doído. Sentir a dor que a menina sentiu. Não sei como, mas ela conseguia lembrar até a cor da casa que morava. Era verde, vô. Também o vô, lembrava. Na verdade era um apartamento de um só vão, quatro por três, mais um quarto, e cozinha. Nele, coubera toda a felicidade do mundo. Era tão bom vô. A frase espremia de saudade o coraçãozinho. Tudo o que restara, do tempo que vivera com os pais, só os três. Doeu sentir a dor, que sequer sabia que sentia.

A praça de gastar resto de dia, continuava lá. Esperando pacientemente as bicicletas que disputariam espaço, querendo ganhar o céu, equilibrando-se numa das rodas. As crianças as véspera do seu dia, que era também de Senhora Aparecida. Os gritos ecoando no infinito. Os que já se foram chegavam, apenas observavam. As mãos, metidas nos bolsos da calça do paletó. Aceitavam tudo, do jeito que estava. Nada diziam, nada perguntava, nada comentava, vinham ali, só pra ver. Olhavam, viam o quanto estavam felizes. E depois se iam, do mesmo jeito que chegaram. Sem direito de perguntar nada. Não precisava.

A cruz no alto da igrejinha pedia oração. O céu varrido de tudo. E tudo que queria era ficar lilás. As mães, os filhos, os netos, os bisnetos, a menor importância a nada disso davam. Viver era muito mais interessante. Correr e sorrir. O rio secara os olhos de quem um dia chorou. A poesia ficou pregada no muro, da saudade. Como parafina de vela derretida e seca, como sabão. Uma camada de poeira por cima. Não fossem os meninos, cairiam no poço do esquecimento. Os recantos, as calçadas, as luminárias. Nada ali era mais os mesmos de antes. E se todos os meninos que um dia brincara naquela praça aparecessem? Todos. Duma só vez. Era ideia meio louca. Mas, e se acontecesse? Rir-se-iam das roupas que vestiam. Do jeito engraçado que falavam. Os brinquedos estranhos que tinham. E se divertiriam muito ao partilharem o que sabiam, uns com os outros.  Não teve como não lembrar as chacotas sofridas, por conta de um par de alpercatas que tivera na infância. O colega apelidava de alpercata de matuto. O corte de cabelo, de soldado de cuia. Engraçado, perceber que por esses dias havia voltado à moda.  

O cachorro exercendo sua função de cão. Atento a tudo e a todos. Balançava o rabo. A tudo queria cheirar. Tudo que se movesse virava caça. O vento que balançava o dia, que balançava o cabelo, que balançava os balanços. Os olhos olhavam, às vezes vendo o que não queria ver. Um corpo andando, aparentemente bem real, se afastando. Um vulto igualmente verídico se aproximando e ficando parado a sua frente, apenas lhe olhando. Tinha vontade, mas não iria perguntar: o que você quer? Ora.  Quem se aproxima é que tem que perguntar. Uma alma piedosa foi pôr-se de joelho diante do altar. Só dava pra ver o cabelo, a nuca, as costas, a sola dos calçados. Vô, tenho medo de cachorro! Eu sei, eu tenho também. O segredo é não demonstrar que está com medo. O medo nos salva. Você só não pode deixar ele lhe dominar. Outro dia o senhor falou que foi mordido por um cachorro de rua. Fui sim, mas foi porque eu invadi o seu território. Sem pressentir me aproximei demais, no momento em que ele iniciava o cortejo com uma cadela. Só entendi isso depois, ao analisar os fatos. A gente precisa ver o lugar onde pisa.

Uma xícara de café fumegante. O líquido escuro, sorvido com vigor. O deleite do aroma, do sabor. Os pensamentos indo e voltando, pra casa. As pernas, os músculos obedientes pra subir degraus. A coragem assim dentro das veias. As lembranças de outros dias muito pra trás. A perguntar, por que Deus não ficava velho? Não ficava porque já nascera velho. O alfa e o ômega. Sem saber por que, lembrou de sua mãe a cantar cântico de igreja, fazendo as coisas de casa. “Diz um A Ave Maria, diz um B bondosa e bela, diz um C confins de graça, diz um D divina estrela. Ave Maria confins de graça...” Naquele tempo, novela se ouvia no rádio, Marcelino Pão e Vinho. Não lembrava qual fora primeiro: “Direito de Nascer” ou “Irmãos Coragem”? E o irmão mais novo cantava assim: “Marcelino pão e vinho é um bom aviador/ quando falta gasolina/ ele mija no motor.” Lembrou da primeira novela assistida na televisão, na casa do senhor Oliveira, a última casa da rua. Meu Pé de Laranja Lima, foi também o livro mais grosso que teve coragem de começar a ler. Por incentivo da professora dona Letície. Não lembrava se leu todo. “Mariana conta um/ Mariana conta dois/ é um é dois, é três é Ana/ viva Mariana.”

Enquanto cortava-lhe o cabelo, o jovem barbeiro falava da política partidária. O rosto no espelho, a cada tesourada, ganhando formato novo. Velho rosto, velha carcaça, novo visual. Nos últimos dois mil anos, sempre com o mesmo rosto. Deus nunca fez a barba, nem nunca cortou o cabelo? Por isso ficaram tão grandes. Gostava da imagem que Michelangelo fez no teto da capela Cistina, no momento da “Criação de Adão”.  O cabelo embranquecera, os pecados dos homens acabariam por lhes criar algumas rugas.

Abro aqui um parêntese, pra contar uma história, no mínimo curiosa. É sobre o senhor Fulano de Tal. É assim que vamos chamá-lo. Senhor Fulano de Tal vereador de prestígio, em sua cidade natal. Vivia, antes de ser vereador, de renda própria. Era agricultor. Tinha orgulho de dizer que,  não precisava do cargo de vereador pra viver. Foi porque o povo quis. A minha leitura é pouca - dizia - mas vivo com dignidade. Um caminhão d’água pra um eleitor aqui, cavar um poço pra outro, ali. Mantimentos pra uma mãe de família. Dinheiro pra o filho de um amigo tirar a carteira de motorista. Isso ainda dava pra fazer. Um dia, senhor vereador Fulano de Tal, foi convidado a ir à emissora de rádio local. Na ocasião, se empolgou com o microfone. E meteu o pau a cobrar do prefeito, benefícios pro povo, que ajeitasse as estradas da zona rural. Arranjasse urgente médico pra população carente, pois tinha gente morrendo a míngua no posto de saúde. Pronto! Foi o estopim. O suficiente pro famigerado gestor se intrigar dele. O prefeito desde então, passou a investigar a vida do pobre homem. Queria por queria desmoralizá-lo politicamente. Contratou um cabra pra colar nele, vinte quatro horas por dia, em surdina, ninguém podia saber.

Diz o ditado que Deus não dorme, mas o diabo das uns cochilos. O senhor, vereador de respeito, homem de palavra, cumpridor de suas obrigações tinha um pequeno defeito, que era segredo seu. Mas quem, nesse mundo não tem. O vereador tinha uma tara. Gostava de fazer sexo com animais. Era esse seu segredo. Lá estava ele, andando pela propriedade. Olhando a roça, o plantio de palma, a silagem, o gado no pasto. Daí foi chegando junto da jumentinha Mimosa. Olhou em volta, ninguém por perto. Baixou as calças e mandou ver na jeguinha. O coiteiro do prefeito escondido, não só viu, como fotografou tudo. No outro dia, a cidade amanheceu chocada. Fotos do vereador praticando sexo com a jumenta, em todo canto. Envergonhado, o coitado teve que ir embora, resultado, perdeu o mandato. No exílio morreu. Alguns dizem que de desgosto, outros que foi uma zoonose, por conta do seu vício sexual. 

P.S. Conto ilustrado por outro desenho de Thomas Kael [8 anos] 

      


FACE a FACE



Os dias, dizendo, o que tinha pra dizer. Bem devagar, dizendo. A observância disso, a depender de quem ouvia, custava meio mundo. Os mais velhos pensavam exatamente o contrário. Achavam que o mundo estava girando cada vez mais rápido. Melhor decepcionar-se com o sol que com gente. Os bancos da praça aguardavam sentados. O homem que olhava pro céu, fielmente cumpria seu papel. Tudo que via, descrevia. Tudo que ouvia, escrevia. Tudo que cheirava, tudo que comia, tudo que tocava. Se alguém lhe perguntasse por que, não saberia responder. Sempre a lembrar de Deus. E de coisas de outros tempos, que (achava que) não voltariam mais. E de músicas velhas.

Tia Maria, cada vez mais doente. Não sabia como seriam os próximos dias. Sabia que fácil não seria. Já não conseguia andar direito. Mesmo assim, teria que ficar só, por uns dias. A filha viajaria a capital. Três dias, teria que ficar sozinha. A filha, também doente, precisava fazer consultas, exames, regularizar documentos. No próximo final de semana as eleições federais. Tinha que ir, alguém pra ficar com a mãe não tinha. Tia Maria teria que se virar sozinha. Ficava imaginando ela, sozinha, indo ao banheiro. E se caísse? Melhor nem pensar. O mundo, à dias, entrara naquele burburinho de povo. A turba se violentava em descalabros, impropérios entre eles mesmos. Desaforos, de uns contra os outros. Iam as ruas por qualquer motivo, como no carnaval. Do nada formavam blocos, levantavam bandeiras, faixas. Qualquer coisa que fizesse zoada. Buzinas, latas velhas, rostos melados de graxa.

Tia Maria, teria consciência que morria? Será que sentia a presença da morte? O corpo definhando, as carnes secando, se acabando. Câncer é doença terrível. Thômas disse que na aula de ontem, a professora falara da morte. Não da morte personagem do Pânico, aquele com  uma foice, um gorro, todo de preto, o rosto de caveira. Contou o que acontecia com o nosso corpo depois que morremos. Achei estranho. Disse-lhe que achava tal assunto, nem um pouco interessante. Ele naturalmente, tentou convencer-me do contrário. Disse que o corpo da gente, é considerado morto depois que o coração para de bater, e paramos de respirar. 

A primeira coisa que se nota, vô, de diferente acontecendo no corpo que morreu é mudança de cor, em algumas partes: lábios, pálpebras, ponta dos dedos, ficarão levemente roxo; as veias levemente azuladas, e a maior parte da pele ficará mesmo pálida; o corpo vai cair de temperatura, aos poucos de 36ºC cairá para a temperatura do ambiente; a rigidez cadavérica acontecerá umas trinta horas depois da morte; mas o corpo vai novamente amolecer, depois de quarenta e oito horas, que estranho não é vô? Também é com esse tempo que vai iniciar o mau-cheiro, devido a ação das bactérias de decomposição em ação; os olhos podem querer abrir, depois de 24 horas vô, causando certo medo, mas isso é porque vão inchar; as unhas e cabelos darão a impressão de crescer, mas isso vô, é por conta do inchaço provocado em baixo da pele. E o mais interessante vô, depois de morto o defunto pode gemer, e soltar puns! Não é engraçado, vô?! 
  
O Coringa, apareceu na televisão. Com seu sorriso enigmático. Sua bocarra, repleta de dentes encheu todo o tubo da tevê, de um canto a outro, era candidato a cargo eletivo. Todos sabiam, todos o tinham como do mal. Todos sabiam, odiava o Batman e o Robin. O menino prodígio candidato estava, ao senado federal. Batman por sua vez não se candidatara a nada. O Pinguim, não saiu candidato porque estava preso. Mesmo assim o segundo vilão mais famosos de Gothan City, apoiaria a mulher gato. Tudo estaria indo bem, se das cinzas não surgisse o Charada. Ninguém nem lembrava mais desse personagem Os repórteres portavam suas possantes máquinas fotográficas. Impecáveis em ternos engomados, e sapatos bem engraxados.  Nos chapéus etiquetas identificava a qual emissora ou redação de jornal pertenciam.

Um dia desses, estava lendo um livro que falava de encontros e desencontros. Das andanças de um aventureiro que viajava pela primeira vez pra outros países, distante do seu. E via povos com outros costumes, gente que falava outros idiomas, outras culturas. E contava isso como uma espécie de diário de bordo. Dos mundos que viveu, e das vidas que teve oportunidade de viver. Viu gente que passeava de carro pelas avenidas de sua vida. Alguém a abrir o teto solar da limousine, com uma garrafa de champanhe brindava fazendo chuva de espumante no pára-brisa de outros carros. A atirar buquês de flores nas vias públicas. Entre bebedeiras distribuir alegria noite a dentro. História de um casal que programara um cruzeiro, viajaram de navio.Foram parar no outro lado do mundo. Enquanto outros jamais iriam, simplesmente porque tinham medo de avião. Outros que foram andando estradas a fora. E criaram um roteiro que nunca tem fim, até hoje estão andando! Que loucura! Apenas uma mochila às costas. E batem o mundo inteiro, a pé mesmo. Na televisão passou reportagem dum certo americano que atravessou os Estados Unidos, de um lado a outro, de uma praia do Atlântico, a outra no Pacífico, simplesmente para tentar encontrar-se consigo mesmo.

Uma doença, seria como uma viagem? Quem sabe, uma chance para que se pudesse encontrar consigo mesmo? Adoecer seria como um portal entre a vida e a morte. Espécie de passaporte para o eterno. Nos delírios, na agonia, na angústia, causadas pelas dores. Levando-nos a encontrarmos face a face com nós mesmos. E enxergarmos neste outro rosto nosso. A face desfigurada do Cristo Jesus, na paixão. A hora da dor, é hora de nos despirmos, de tirarmos toda maquiagem que a vida vai nos colocando, ao longo da nossa existência. Hora de nos despojarmos da vaidade, do orgulho, da maledicência, do desamor. A hora da dor seria oportunidade para nos sentirmos mais perto Dele. Ele quem vô? O Cristo.

Thômas disse que inventara uma personagem de mil faces. Quis saber como era. Ele vô, muda de rosto a hora que quer. Ora Thômas, mas esse personagem já existem: são os políticos. Citei um que era calvo num tempo, e logo depois tinha cabelo. Um cujo largo sorriso jamais largara da cara, a mais de trinta anos. Os cabelos esbranquiçaram nas fontes. As maçãs do rosto porém, rosadas permanecia. O nariz de Pinóquio.

Uma história triste, dentro da história triste de tia Maria. Um rapaz resolveu por fim a própria vida. Ele morava no sítio, com seus pais. Era numas brenhas, tão esquisitas no mundo. A ponto de dar medo só de ir lá. O moço decidiu que não morreria sozinho. Junto com ele, iriam também seus pais. E outra mais, o maluco bolou um plano para que todos, depois pensassem que teria havido um triplo assassinato. O suicida maluco, primeiro mataria os pais. Colocaria os dois mortos, com um tiro na cabeça, sentados no sofá assistindo televisão. Daí inventou uma engenhoca: a qual amarrou uma espingarda calibre doze numa cadeira apontada pro seu peito, que dispararia, assim que puxasse uma corda. O psicopata treinou o cachorro, um pastor alemão, para depois do fato consumado, o cão desamarraria a espingarda e enterraria bem longe, no meio do mato. Acredite, ainda estão, até hoje, procurando a tal arma do crime. E ninguém sabe, se foi suicídio, ou tripla execução.
      
Jane, a filha de tia Maria, foi mesmo pra capital. Já era noite quando o busão saiu da rodoviária. Os potentes faróis do monobloco alumiando o asfalto, os olhos de gato clareando a madrugada. Jane ouvia música, com os fones de ouvidos. O frio do ar condicionado. O breu do mato, passando rápido na janela. As mãos congelando. O cansaço, Jane acabou adormecendo. De repente,sobressaltada acordou. Tia Maria sentada ao seu lado. Oxente mãe, o que a senhora está fazendo aqui?


P.S. O desenho que ilustra esse conto é de autoria do meu neto Thômas Kael (de 8 anos de idade 05/10/2018.)