A Bailarina [The Clock]




Uma menina, de patins, rodopiava na plataforma da estação rodoviária. Não estava lá pra viajar. Se apresentava, tentando ganhar algum trocado. Com bambolês, chapéus, bolas, fazia malabares. A passarela, escaldada de sol daqueles dias, seu palco. Transeuntes, passageiros e ambulantes, sua platéia. O vapor da tarde quente a cortina, o pano de fundo, do seu espetáculo. Devagar, como em câmara lenta, o show circense findo. De baixo do imponente teto de ligas metálicas e fibra de vidro em parábola. Aplausos vinham voando, das asas dos pombos que perfuravam incólumes o crepúsculo.
Em breve o mundo apagaria sua luz, os postes acenderiam as suas. Todos aguardavam aquele momento mágico. Momento exato, em que o dia, nem fica azul intenso, nem escuro negro. Ia devargamente ficando, um pouco lilás, um pouco rosáceo. Quase violáceo, para os lados que o rei se recolhe aos seus aposentos. E depois morrer. Quem mente rouba. A frase caiu de cima de um pé de fícus, morta. Ficou lá ressecada, dobrada sobre si mesma, no chão. Veio o vento e a levou para longe. Muito longe, pra terra onde tudo tornar-se-ia pó, e acabaria caindo no esquecimento.

A mãe que era vó, e também bisavó, pediu a benção. O pai que era vô, e também filho abençoou pediu de volta. O silêncio, em stand by, desligado. O som do mundo, em sua louca sinfonia, psicodélica. Inescrupulosamente, sem limites, a ninguém obedecia. Não respeitava os mais velhos, transgredia barreiras, infringia leis. Nada o impedia de ir onde bem quisesse. Som dos pássaros, das vozes humanas, dos motores dos carros, aceleração, freadas, buzinas, músicas de alto-falantes. Transpunham muros, fachadas, portas, janelas, frestas das telhas, das casas. Nada o intimidava, nem polícia, nem governos esquerdistas disfarçados de direita que pretendesse tomar o poder. A luz vermelha olhando infinitamente. O padre dissera umas verdades, cristalinas, como água, pelas ondas do rádio disse. Na verdade vivia adormecida dentro da gente, aí vinha alguém e acordava. As máquinas cumprindo suas funções em fim, de medir o tempo, minuto a minuto, mensurar a temperatura, obediente a construir palavras a cada teclada, a bombear combustível pro tanque do automóvel, bombear o sangue pro corpo, taxar, registrar, sair, cuspir, fumaça. Uma mentira dita muitas vezes vira verdade. As letrinhas correram ligeiras pelo luminoso out door. Conveniências, tudo era conveniências.

A mãe deitada, toda enrolada no cobertor. Descobriu a cabeça. Perguntou que horas era. Dez. Da noite? Não, da manhã. Suspirou, decepcionada. Misto de incrédula. Queria estar em sua casa. Não gostava da casa dos outros. Mas a senhora está em casa. Não concordava. Minha casa fica longe daqui. E tem paredes de taipa. Minha mãe foi pra roça. Saiu cedo. Tenho medo quando ela demora. Vou-me embora pra minha casa! Só era o que faltava Manuel Bandeira vindo parar dentro do quarto de mamãe. Passárgada agora, era no Pedrão, Casteado era o amigo do rei. Se não o próprio. O Gavião sua insígnia. Batista o primo, amigo de confiança, prometera que iria visitá-la. O Capim com suas próprias leis. Querosene ‘Jacaré’ não queima cheirando a comunismo, farinha de mandioca não tem gosto de bolsa do governo, cassáco não quer dinheiro sujo, gosta mesmo é de galinha. Automóvel é bicho que ronca, tem os pés de borracha, vai devorar estrada. 
     
O menino, humilde, solícito. Acompanhava o desenrolar das coisas. Feito fiel escudeiro, seguia a menina da bicicleta, andando rápido, para não ficar pra trás. Conversava coisas que menino conversa com menina. Todo pabuloso, dizendo que se quisesse um dia, viraria super-herói,  daqueles que voam, e tinha outros super-poderes. Ainda não era hora de contar. Se quisesse teria uma bicicleta. Minha bicicleta vai ter muitas marchas, e pedais pretos, e selim de couro, e guidões cromados, e uma campainha que faz trim-trim. A menina desconversava. Você sabe falar inglês? Nem esperava a resposta emendava, que estava aprendendo xadrez. Estudaria, ela e a prima Luana, música e teatro. Iriam apresentar na escola o auto de natal.

A ordem era pra prender. Os soldados fielmente cumpririam. Naquele fim de mundo, os dizeres da bandeira do Brasil ‘Progresso’ era empresa de ônibus. Já a ‘Ordem’, era mantida na base do cassetete, na botinada de coturno.  Os ‘Praça’ invadiam casas, batiam em pessoas, se não dissesse o que eles queriam ouvir, espancavam. E se dissesse, apanhariam mesmo assim, justamente porque diziam. O cassetete até apelido tinha, “Mané gostoso”. Padre Cícero dizia que haveria um tempo que os homens iam querer ser maior que Deus. Feijão, ia ser engarrafado. As pessoas iam andar na rua falando sozinho. A besta-fera haveria de estar no meio do povo, e ninguém ia se escandalizar com isso. Os sinais levavam a isso.

O filho teve um sonho assim. Estava todos sentados a mesa. Toda a família. O pai, a mãe, os irmãos, almoçavam tranquilamente. O som que se ouvia era dos talheres chocando-se nos pratos de louça, raspando panela. Alguém bateu a porta. Todos se olharam. A visita, talvez, não fosse bem vinda, quem sabe. O irmão mais novo foi ver quem era. Abriu a porta, levantou os olhinhos assustados. Os soldados afastaram-no do caminho. Na cozinha pegou o irmão do meio pelos braços. Aos gritos inutilmente pedia que o deixasse em paz. O pai, impotente, resignado, sem nada poder fazer. Perguntar não adiantava. Foi preso.

O menino, se quer lembrava do quão exímio atirador com estilingue era, e que com maestria subia no pé de fícus, rápido como um foguete escalava o lombo de um jumento. Gostava de brincar com minhocas, besouros, lagartixas, pererecas. E como sabia pescar. Outro dia inventou de empinar uma pipa, uma aventura e tanto. Acabou que ficou presa no alto da craibeira ao lado da cadeia. O muro do cemitério estava destruído, entrava e saía quem quisesse. A mula aproveitou pra comer capim nos cantos das catacumbas, um mendigo abrigara-se na capelinha dum túmulo. Dois anjos encostados nas lápides cochilavam cansados de noites insones. Alguns finados saíram a passear. Um homem de terno preto, chapéu preto, luvas pretas, bigode e óculos pretos, de pele escura, ficou parado só olhando.

O homem negro, trajado com esmero, disse: O capitão chegara ao poder. Ao contrário do que muitos pensam. Choro e ranger de dentes, não será tudo. Os que precisam dizer, nada dirão. Os que precisam ouvir nada ouvirão. Os que precisa ser, nada serão. Os que gostariam de ver, nada verão. Por enquanto tudo é verão. O sol os cegará. Tentarão se aproximar, mas serão repelidos. Água tornar-se-á algo mais caro que combustível dos carros. Alimentos irão desaparecer das prateleiras dos mercados. As mercearias irão pro subterrâneos. E os únicos mantimentos que muitos vão querer e não encontrarão sal, fósforo, e vela, produtos raros. Será criado o imposto do ar que se respira.

Todo esse rodeio pra concluir a história da menina. Foi assim. Certa noite, de um dia qualquer do final da década de oitenta. Uma mulher chegou à estação rodoviária, lá da cidade, do interior do sertão. Trazia consigo uma bolsa, uma mala de rodinhas. E uma menina, dos seus quatro, cinco anos, que dormia em seus braços. Era meia noite e vinte minutos. Quem disse isso foi o relógio redondo, mais parecia uma lua amarelada, pregado na torre da velha banca de revista, fechada. Dez anos se passara desde que fora colocado lá. E sempre a dizer minuto a minuto, hora a hora, sem se cansar, sem falhar, sem adiantar, sem atrasar. A lanchonete fechada, os guichês de compra de passagem idem. As únicas coisas funcionando ali, àquela hora era, o vigilante noturno, o relógio, e um funcionário do correio que aguardava o último ônibus que passaria de madrugada. 
A mulher aproximou-se do rapaz do malote e perguntou: moço você quer essa menina pro senhor? Assustado disse que não. O vigilante, que era casado e não tinha filhos, ouvindo a conversa perguntou incrédulo: a senhora quer dar essa menina? Isso mesmo, vou pra capital, ganhar a vida num bordel. Não tenho como levá-la. Aturdido o vigia pediu-lhe um instante. Correndo foi consultar a esposa, pois morava ali perto. Cansado da carreira que dera chegou dizendo que a patroa aceitava ficar com a menina.

Hoje. É carinhosamente chamada de ‘Bela’ pelos amigos. Isabela tem vinte anos, formada em Educação Física, vive de acrobacia. Na vida, na academia, na rodoviária.

[a dizer minuto a minuto, hora a hora, sem se cansar, sem falhar, sem adiantar, sem atrasar, O relógio continua lá. Agora com 40 anos idade.]  

12h20m.

Nenhum comentário:

Postar um comentário