DEBAIXO DOS PÉS



A folhinha do Sagrado Coração de Jesus. O calendário pregado na parede, definhando, emagrecendo. Mais um ano se [esva]indo. A velha casa, em breve cobraria decoração natalina. A lapinha, os reis magos de novo sairiam da velha caixa de sapato. Serenos empreenderiam jornada, rumo à gruta de Belém, logo ali, na sala. Velhos meninos, outra vez, ririam de seus enormes narizes nos reflexos das bolas coloridas. Alegre fustão. Aguerrida guirlanda. O sino que jamais badalara. O repicar, porém, a muito havia dentro das cabeças decorada com a imagem do bom velhinho. Apesar do tempo, nunca envelhecera. A despeito de tantos anos, jamais adoecera. Não que eles soubessem.

As crianças, e as tarefas escolares. O dia, pela noite se encolhia. O dia, pelo dia se esticava. O sol com sua carruagem de fogo. Danado de demorado pra passar. Lentamente traçando seu rumo no firmamento. As andorinhas em revoada festejando a vida, muito para além da vidraça. As roupas no varal, retesadas de cores. Esturricadas, desmaiadas de tão desidratadas. O cansaço disputando cabo de guerra com a obrigação, e a preguiça. Os mais velhos arrastando, debaixo dos pés e da língua o peso dos, pesados, benditos ditos populares. Ainda assim, foi triste, muito doído. Sentir a dor que a menina sentiu. Não sei como, mas ela conseguia lembrar até a cor da casa que morava. Era verde, vô. Também o vô, lembrava. Na verdade era um apartamento de um só vão, quatro por três, mais um quarto, e cozinha. Nele, coubera toda a felicidade do mundo. Era tão bom vô. A frase espremia de saudade o coraçãozinho. Tudo o que restara, do tempo que vivera com os pais, só os três. Doeu sentir a dor, que sequer sabia que sentia.

A praça de gastar resto de dia, continuava lá. Esperando pacientemente as bicicletas que disputariam espaço, querendo ganhar o céu, equilibrando-se numa das rodas. As crianças as véspera do seu dia, que era também de Senhora Aparecida. Os gritos ecoando no infinito. Os que já se foram chegavam, apenas observavam. As mãos, metidas nos bolsos da calça do paletó. Aceitavam tudo, do jeito que estava. Nada diziam, nada perguntava, nada comentava, vinham ali, só pra ver. Olhavam, viam o quanto estavam felizes. E depois se iam, do mesmo jeito que chegaram. Sem direito de perguntar nada. Não precisava.

A cruz no alto da igrejinha pedia oração. O céu varrido de tudo. E tudo que queria era ficar lilás. As mães, os filhos, os netos, os bisnetos, a menor importância a nada disso davam. Viver era muito mais interessante. Correr e sorrir. O rio secara os olhos de quem um dia chorou. A poesia ficou pregada no muro, da saudade. Como parafina de vela derretida e seca, como sabão. Uma camada de poeira por cima. Não fossem os meninos, cairiam no poço do esquecimento. Os recantos, as calçadas, as luminárias. Nada ali era mais os mesmos de antes. E se todos os meninos que um dia brincara naquela praça aparecessem? Todos. Duma só vez. Era ideia meio louca. Mas, e se acontecesse? Rir-se-iam das roupas que vestiam. Do jeito engraçado que falavam. Os brinquedos estranhos que tinham. E se divertiriam muito ao partilharem o que sabiam, uns com os outros.  Não teve como não lembrar as chacotas sofridas, por conta de um par de alpercatas que tivera na infância. O colega apelidava de alpercata de matuto. O corte de cabelo, de soldado de cuia. Engraçado, perceber que por esses dias havia voltado à moda.  

O cachorro exercendo sua função de cão. Atento a tudo e a todos. Balançava o rabo. A tudo queria cheirar. Tudo que se movesse virava caça. O vento que balançava o dia, que balançava o cabelo, que balançava os balanços. Os olhos olhavam, às vezes vendo o que não queria ver. Um corpo andando, aparentemente bem real, se afastando. Um vulto igualmente verídico se aproximando e ficando parado a sua frente, apenas lhe olhando. Tinha vontade, mas não iria perguntar: o que você quer? Ora.  Quem se aproxima é que tem que perguntar. Uma alma piedosa foi pôr-se de joelho diante do altar. Só dava pra ver o cabelo, a nuca, as costas, a sola dos calçados. Vô, tenho medo de cachorro! Eu sei, eu tenho também. O segredo é não demonstrar que está com medo. O medo nos salva. Você só não pode deixar ele lhe dominar. Outro dia o senhor falou que foi mordido por um cachorro de rua. Fui sim, mas foi porque eu invadi o seu território. Sem pressentir me aproximei demais, no momento em que ele iniciava o cortejo com uma cadela. Só entendi isso depois, ao analisar os fatos. A gente precisa ver o lugar onde pisa.

Uma xícara de café fumegante. O líquido escuro, sorvido com vigor. O deleite do aroma, do sabor. Os pensamentos indo e voltando, pra casa. As pernas, os músculos obedientes pra subir degraus. A coragem assim dentro das veias. As lembranças de outros dias muito pra trás. A perguntar, por que Deus não ficava velho? Não ficava porque já nascera velho. O alfa e o ômega. Sem saber por que, lembrou de sua mãe a cantar cântico de igreja, fazendo as coisas de casa. “Diz um A Ave Maria, diz um B bondosa e bela, diz um C confins de graça, diz um D divina estrela. Ave Maria confins de graça...” Naquele tempo, novela se ouvia no rádio, Marcelino Pão e Vinho. Não lembrava qual fora primeiro: “Direito de Nascer” ou “Irmãos Coragem”? E o irmão mais novo cantava assim: “Marcelino pão e vinho é um bom aviador/ quando falta gasolina/ ele mija no motor.” Lembrou da primeira novela assistida na televisão, na casa do senhor Oliveira, a última casa da rua. Meu Pé de Laranja Lima, foi também o livro mais grosso que teve coragem de começar a ler. Por incentivo da professora dona Letície. Não lembrava se leu todo. “Mariana conta um/ Mariana conta dois/ é um é dois, é três é Ana/ viva Mariana.”

Enquanto cortava-lhe o cabelo, o jovem barbeiro falava da política partidária. O rosto no espelho, a cada tesourada, ganhando formato novo. Velho rosto, velha carcaça, novo visual. Nos últimos dois mil anos, sempre com o mesmo rosto. Deus nunca fez a barba, nem nunca cortou o cabelo? Por isso ficaram tão grandes. Gostava da imagem que Michelangelo fez no teto da capela Cistina, no momento da “Criação de Adão”.  O cabelo embranquecera, os pecados dos homens acabariam por lhes criar algumas rugas.

Abro aqui um parêntese, pra contar uma história, no mínimo curiosa. É sobre o senhor Fulano de Tal. É assim que vamos chamá-lo. Senhor Fulano de Tal vereador de prestígio, em sua cidade natal. Vivia, antes de ser vereador, de renda própria. Era agricultor. Tinha orgulho de dizer que,  não precisava do cargo de vereador pra viver. Foi porque o povo quis. A minha leitura é pouca - dizia - mas vivo com dignidade. Um caminhão d’água pra um eleitor aqui, cavar um poço pra outro, ali. Mantimentos pra uma mãe de família. Dinheiro pra o filho de um amigo tirar a carteira de motorista. Isso ainda dava pra fazer. Um dia, senhor vereador Fulano de Tal, foi convidado a ir à emissora de rádio local. Na ocasião, se empolgou com o microfone. E meteu o pau a cobrar do prefeito, benefícios pro povo, que ajeitasse as estradas da zona rural. Arranjasse urgente médico pra população carente, pois tinha gente morrendo a míngua no posto de saúde. Pronto! Foi o estopim. O suficiente pro famigerado gestor se intrigar dele. O prefeito desde então, passou a investigar a vida do pobre homem. Queria por queria desmoralizá-lo politicamente. Contratou um cabra pra colar nele, vinte quatro horas por dia, em surdina, ninguém podia saber.

Diz o ditado que Deus não dorme, mas o diabo das uns cochilos. O senhor, vereador de respeito, homem de palavra, cumpridor de suas obrigações tinha um pequeno defeito, que era segredo seu. Mas quem, nesse mundo não tem. O vereador tinha uma tara. Gostava de fazer sexo com animais. Era esse seu segredo. Lá estava ele, andando pela propriedade. Olhando a roça, o plantio de palma, a silagem, o gado no pasto. Daí foi chegando junto da jumentinha Mimosa. Olhou em volta, ninguém por perto. Baixou as calças e mandou ver na jeguinha. O coiteiro do prefeito escondido, não só viu, como fotografou tudo. No outro dia, a cidade amanheceu chocada. Fotos do vereador praticando sexo com a jumenta, em todo canto. Envergonhado, o coitado teve que ir embora, resultado, perdeu o mandato. No exílio morreu. Alguns dizem que de desgosto, outros que foi uma zoonose, por conta do seu vício sexual. 

P.S. Conto ilustrado por outro desenho de Thomas Kael [8 anos] 

      


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