FACE a FACE



Os dias, dizendo, o que tinha pra dizer. Bem devagar, dizendo. A observância disso, a depender de quem ouvia, custava meio mundo. Os mais velhos pensavam exatamente o contrário. Achavam que o mundo estava girando cada vez mais rápido. Melhor decepcionar-se com o sol que com gente. Os bancos da praça aguardavam sentados. O homem que olhava pro céu, fielmente cumpria seu papel. Tudo que via, descrevia. Tudo que ouvia, escrevia. Tudo que cheirava, tudo que comia, tudo que tocava. Se alguém lhe perguntasse por que, não saberia responder. Sempre a lembrar de Deus. E de coisas de outros tempos, que (achava que) não voltariam mais. E de músicas velhas.

Tia Maria, cada vez mais doente. Não sabia como seriam os próximos dias. Sabia que fácil não seria. Já não conseguia andar direito. Mesmo assim, teria que ficar só, por uns dias. A filha viajaria a capital. Três dias, teria que ficar sozinha. A filha, também doente, precisava fazer consultas, exames, regularizar documentos. No próximo final de semana as eleições federais. Tinha que ir, alguém pra ficar com a mãe não tinha. Tia Maria teria que se virar sozinha. Ficava imaginando ela, sozinha, indo ao banheiro. E se caísse? Melhor nem pensar. O mundo, à dias, entrara naquele burburinho de povo. A turba se violentava em descalabros, impropérios entre eles mesmos. Desaforos, de uns contra os outros. Iam as ruas por qualquer motivo, como no carnaval. Do nada formavam blocos, levantavam bandeiras, faixas. Qualquer coisa que fizesse zoada. Buzinas, latas velhas, rostos melados de graxa.

Tia Maria, teria consciência que morria? Será que sentia a presença da morte? O corpo definhando, as carnes secando, se acabando. Câncer é doença terrível. Thômas disse que na aula de ontem, a professora falara da morte. Não da morte personagem do Pânico, aquele com  uma foice, um gorro, todo de preto, o rosto de caveira. Contou o que acontecia com o nosso corpo depois que morremos. Achei estranho. Disse-lhe que achava tal assunto, nem um pouco interessante. Ele naturalmente, tentou convencer-me do contrário. Disse que o corpo da gente, é considerado morto depois que o coração para de bater, e paramos de respirar. 

A primeira coisa que se nota, vô, de diferente acontecendo no corpo que morreu é mudança de cor, em algumas partes: lábios, pálpebras, ponta dos dedos, ficarão levemente roxo; as veias levemente azuladas, e a maior parte da pele ficará mesmo pálida; o corpo vai cair de temperatura, aos poucos de 36ºC cairá para a temperatura do ambiente; a rigidez cadavérica acontecerá umas trinta horas depois da morte; mas o corpo vai novamente amolecer, depois de quarenta e oito horas, que estranho não é vô? Também é com esse tempo que vai iniciar o mau-cheiro, devido a ação das bactérias de decomposição em ação; os olhos podem querer abrir, depois de 24 horas vô, causando certo medo, mas isso é porque vão inchar; as unhas e cabelos darão a impressão de crescer, mas isso vô, é por conta do inchaço provocado em baixo da pele. E o mais interessante vô, depois de morto o defunto pode gemer, e soltar puns! Não é engraçado, vô?! 
  
O Coringa, apareceu na televisão. Com seu sorriso enigmático. Sua bocarra, repleta de dentes encheu todo o tubo da tevê, de um canto a outro, era candidato a cargo eletivo. Todos sabiam, todos o tinham como do mal. Todos sabiam, odiava o Batman e o Robin. O menino prodígio candidato estava, ao senado federal. Batman por sua vez não se candidatara a nada. O Pinguim, não saiu candidato porque estava preso. Mesmo assim o segundo vilão mais famosos de Gothan City, apoiaria a mulher gato. Tudo estaria indo bem, se das cinzas não surgisse o Charada. Ninguém nem lembrava mais desse personagem Os repórteres portavam suas possantes máquinas fotográficas. Impecáveis em ternos engomados, e sapatos bem engraxados.  Nos chapéus etiquetas identificava a qual emissora ou redação de jornal pertenciam.

Um dia desses, estava lendo um livro que falava de encontros e desencontros. Das andanças de um aventureiro que viajava pela primeira vez pra outros países, distante do seu. E via povos com outros costumes, gente que falava outros idiomas, outras culturas. E contava isso como uma espécie de diário de bordo. Dos mundos que viveu, e das vidas que teve oportunidade de viver. Viu gente que passeava de carro pelas avenidas de sua vida. Alguém a abrir o teto solar da limousine, com uma garrafa de champanhe brindava fazendo chuva de espumante no pára-brisa de outros carros. A atirar buquês de flores nas vias públicas. Entre bebedeiras distribuir alegria noite a dentro. História de um casal que programara um cruzeiro, viajaram de navio.Foram parar no outro lado do mundo. Enquanto outros jamais iriam, simplesmente porque tinham medo de avião. Outros que foram andando estradas a fora. E criaram um roteiro que nunca tem fim, até hoje estão andando! Que loucura! Apenas uma mochila às costas. E batem o mundo inteiro, a pé mesmo. Na televisão passou reportagem dum certo americano que atravessou os Estados Unidos, de um lado a outro, de uma praia do Atlântico, a outra no Pacífico, simplesmente para tentar encontrar-se consigo mesmo.

Uma doença, seria como uma viagem? Quem sabe, uma chance para que se pudesse encontrar consigo mesmo? Adoecer seria como um portal entre a vida e a morte. Espécie de passaporte para o eterno. Nos delírios, na agonia, na angústia, causadas pelas dores. Levando-nos a encontrarmos face a face com nós mesmos. E enxergarmos neste outro rosto nosso. A face desfigurada do Cristo Jesus, na paixão. A hora da dor, é hora de nos despirmos, de tirarmos toda maquiagem que a vida vai nos colocando, ao longo da nossa existência. Hora de nos despojarmos da vaidade, do orgulho, da maledicência, do desamor. A hora da dor seria oportunidade para nos sentirmos mais perto Dele. Ele quem vô? O Cristo.

Thômas disse que inventara uma personagem de mil faces. Quis saber como era. Ele vô, muda de rosto a hora que quer. Ora Thômas, mas esse personagem já existem: são os políticos. Citei um que era calvo num tempo, e logo depois tinha cabelo. Um cujo largo sorriso jamais largara da cara, a mais de trinta anos. Os cabelos esbranquiçaram nas fontes. As maçãs do rosto porém, rosadas permanecia. O nariz de Pinóquio.

Uma história triste, dentro da história triste de tia Maria. Um rapaz resolveu por fim a própria vida. Ele morava no sítio, com seus pais. Era numas brenhas, tão esquisitas no mundo. A ponto de dar medo só de ir lá. O moço decidiu que não morreria sozinho. Junto com ele, iriam também seus pais. E outra mais, o maluco bolou um plano para que todos, depois pensassem que teria havido um triplo assassinato. O suicida maluco, primeiro mataria os pais. Colocaria os dois mortos, com um tiro na cabeça, sentados no sofá assistindo televisão. Daí inventou uma engenhoca: a qual amarrou uma espingarda calibre doze numa cadeira apontada pro seu peito, que dispararia, assim que puxasse uma corda. O psicopata treinou o cachorro, um pastor alemão, para depois do fato consumado, o cão desamarraria a espingarda e enterraria bem longe, no meio do mato. Acredite, ainda estão, até hoje, procurando a tal arma do crime. E ninguém sabe, se foi suicídio, ou tripla execução.
      
Jane, a filha de tia Maria, foi mesmo pra capital. Já era noite quando o busão saiu da rodoviária. Os potentes faróis do monobloco alumiando o asfalto, os olhos de gato clareando a madrugada. Jane ouvia música, com os fones de ouvidos. O frio do ar condicionado. O breu do mato, passando rápido na janela. As mãos congelando. O cansaço, Jane acabou adormecendo. De repente,sobressaltada acordou. Tia Maria sentada ao seu lado. Oxente mãe, o que a senhora está fazendo aqui?


P.S. O desenho que ilustra esse conto é de autoria do meu neto Thômas Kael (de 8 anos de idade 05/10/2018.) 

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