Halley

Na madrugada do dia 18 de Maio de 1975, uma bola cor de fogo riscou a via láctea, por cima dos céus do sertão de Santana do Ipanema. Passou traçando um arco no negro firmamento, por sobre o serrote do Pintado, como se viesse do sul em direção ao norte. Tinha a aparência de um sol, desses que vemos todos os dias. Um pouco menor devido aos milhões de anos-luz mais afastado do nosso sistema solar. Uma estrela de Belém dois mil anos longe do propósito de anunciar a vinda do Messias, ainda mais distante da Galiléia. Era o cometa Halley. Meio que atordoado fomos acordado por papai, pra ter aquela visão magnífica. Uma imagem e um momento que guardaremos pro resto da vida. Seguindo seu trajeto o astro incandescente, desenhou no espaço sideral e nas memórias de quem presenciou, parte de sua bela história.

Muitos anos precisaram se passar até que ficássemos sabendo do legado de vida daquele asteróide. Seu passado, sua eterna viagem, cuja trajetória se repetiria em sucessivas parábolas. Tão longo caminho teria a transcorrer pela frente que só tornaria a passar próximo ao nosso planeta azul dali a quase um século. Só vampiros, duendes e magos, dentre os que habitam entre nós mortais, conseguirão viver o suficiente para tornar a vê-lo. E lá ia ele, como um filho do sol, feito incandescente espermatozóide. Indo dar a luz sabe-se lá onde. Seguia e seguia, lenta e calmamente, até sumir na imensidão do cosmo.

Na Rua de São Pedro à casa de número 238, a uma singela moradia, residia a menina Maria Francisca. O que passamos a contar aconteceu um ano depois que o cometa de nome inglês passou sobre nosso céu. A Casa ficava no lado de baixo da rua, onde os quintais oferecem aos moradores a paisagem e a brisa meridional. De onde se tem também a visão do leito do Ipanema, até a ponte dos canos. Donde no verão dava pra se ver bandos de garças voando em “v” migrando pro sul. Nos dias de inverno se chovia a caída d’água das telhas proporcionava bicas que enchiam tonéis na varanda das cozinhas. E os meninos aproveitavam pra tomar banho. Maria Francisca tinha seis irmãos, todos estudavam no grupo Escolar Padre Francisco Correia. Os pais da menina tudo faziam para agradá-la e a mimava, por ser a única dentre tantos irmãos homens. A menina mimada gostava de bichos, quis ter e teve diversos animais de estimação. Da fazenda o pai teria trazido-lhe filhotes de ovelhas, coelhos, cágados e preás. Pássaros seus irmãos já os tinha, e de toda variedade.

Na casa de Maria Francisca também tinha cães e gatos. E nem eram estes os preferidos dentre os seus outros bichos de estimação, mas eis que um dia uma bela gata angorá ficou prenhe e teve uma ninhada de sete gatinhos. A um deles a menina deu o nome de Mickey. Devido ao pelo negro do bichano, quis colocar o nome do famoso rato de Walter Disney. Era um belo filhote de angorá, o único que nascera com a pelagem negra. Maria Francisca iria carregar por toda sua vida, um trauma de infância. Seu irmão Everaldo, numa aula de Religião da professora Marinalva, contaria no grupo escolar. Pobre menina acabaria chorando muito, ao ver revelado a professora e aos colegas da escola, seu drama até então mantido em segredo. Maria Francisca fora brincar no quintal de sua casa colocou Mickey sobre a tampa de uma das tinas d’água. O gatinho acabou caindo dentro do tonel e morreu afogado, sem que ela nada pudesse fazer para salvá-lo. Por conta do ato inconsequente teria tomado uma bruta sova de sua mãe. Tão forte foi a comoção da menina que adoeceu. Passaria alguns dias com febre, sem se alimentar tendo convulsões e delírios.

Muitos anos se passaram desde então. Maria Francisca cresceu e se formou. Tornou-se professora. Casou-se com um agrônomo e foi morar na capital, de volta a Santana foi residir à Avenida Professora Marinita Peixoto Nóya. Tivera três filhos o casal. Átila, Arquimedes e Angelina. A menina assim como sua mãe, viveu cercada de mimos por ser a caçula e única dentre os filhos de sexo feminino. Os irmãos tinham dela ciúmes pelo excesso de agrados dispensados por seus pais. Repetiu-se com ela o apego a bichos de estimação. E o quintal da casa acabaria dotado de jaulas e gaiolas que abrigava as mais variadas espécies de pequenos animais. Papagaios, araras, piriquitos. Lebres, porquinhos da índia e um pequeno Pudle. O belo aquário com peixinhos ornamentais na sala também lhe pertencia. Um dia a menina ganhou do morador da fazenda um filhote de gato, de pelo acinzentado que ela deu o nome de Apolo em referência ao deus grego.

Angelina não demoraria e logo se tornaria uma moça. Junto com a meninice foi deixando pra trás o apego aos bichinhos, fruto de seu mimo e estima. O único que jamais abandonaria em zelo e carinho era Apolo, o gato de pelo plúmbeo. O felino parecia compreender perfeitamente o amor de sua dona para com ele, e correspondia em igual proporção dentro da sua limitação de gato. Acompanhava-a nos eventos domésticos. Ao comer, estudar, brincar, assistir televisão e até dormir. Só a perdia de vista quando a moça ia pra escola. Angelina teve seu primeiro namorado, um rapaz de nome Bruno que foi devidamente apresentado a Apolo. Muito embora ambos estranharam-se e passariam a ter ciúmes um do outro. Bruno propôs outro nome pro gato e sugeriu que mudasse pra Halley. O rapaz era admirador de motos e carros possantes. Sonhava um dia possuir uma Halley Deivson. Angelina achou legal e passou a chamar o bichano por aquele nome.

Num final de semana foi o rapaz pra Pão de Açúcar. Junto com alguns amigos numa grande farra, onde acabou tomando todas. De repente apareceu ali um rapaz com um Jet Sky e Bruno aproximou-se pra conhecer a máquina. Tornaram-se amigos, e àquele ofereceu-lhe para que se dispusesse a andar na moto flutuante. Afoito Bruno se atreveu a esquiar no Jet sky mesmo sem saber nadar. Numa manobra mais arriscada foi jogado na água. Em segundos Bruno foi tragado pela correnteza e desceu. Desceu as profundezas do São Francisco. Desesperado em vão se debateu, não demoraria a ficar inerte, sem vida. Foi sendo arrastado mais e mais pro fundo. À medida que afundava iam as águas ficando cada vez mais escuras. Sua alma não mais afundava. Seu espírito agora parado via seu corpo imerso sendo arrastado. Bruno olhou pro alto e viu a superfície, tão distante, parecia o firmamento. O Jet Sky continuava lá na superfície boiando. A máquina ainda ligada tinha o farol aceso voltado pro fundo, visto por Bruno lá de baixo o farol parecia uma imensa bola de fogo. Parecia um cometa cruzando o céu e a via láctea. Se fosse o Halley, só dali a um milênio voltaria um dia a aparecer. E isso apenas fadas e faunos, dentre os que habitam entre nós, conseguirão viver para vê-lo.


Fabio Campos

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